Merece reflexão o que ocorreu nas últimas semanas, ao abrigo da despregadura de um draconiano plano de ajuste, com os quadros do Partido Socialista Obreiro Espanhol. Por concretar o argumento no sucedido num recinto relevante, o Congresso de Deputados em Madri, tenha-se presente que nem um só dos 169 representantes socialistas que tomam assento nessa instituição teve a bem expressar, em público, nenhuma dissensão, nem maior nem menor, no que faz ao conteúdo do mentado plano. Falamos das mesmas pessoas --não se esqueça-- que uns dias antes sostinham uma e outra vez que o Governo socialista não toleraria em modo algum cortes nos direitos sociais...
Não sei se a estas alturas faz algum sentido examinar as escassas e precárias explicações oferecidas para justificar uma mudança tão drástica, e tão patética, de atitude. Para não ficarem cabos soltos resgatemos, ainda com tudo, as duas que parecem desfrutar de maior presença. A primeira assinala sem mais que o plano de ajuste é uma imposição da União Europeia. Ainda que o argumento em si resulta irreprochável, deixa em mau lugar, claro, os nossos governantes e os seus acólitos: se, por um lado, revela bem às claras que os primeiros --os governantes-- não tinham feito seus deveres, pelo outro põe de manifesto a sua incapacidade para preservar, retórica aparte, um projecto diferente do que preconiza uma UE visivelmente neoliberalizada. A segunda das explicações, já muito sobada, é assente na superstição de que os numerosos e graves problemas que arrasta a economia espanhola nada têm que ver com as políticas abraçadas pelos dirigentes socialistas: muito ao invés remeteriam --diz-se-nos-- a fenómenos externos e responsabilidades alheias, como os vinculados com a crise estadunidense, a herança recebida em 2004 do Partido Popular ou, em soma, as impresentáveis práticas dos especuladores que se movem por todas as partes.
Sobram as evidências para repudiar, e fazê-lo sem nenhuma margem para a dúvida, a tese que acabamos de pôr em boca de outros. Baste com recordar ao respeito que o Governo espanhol, com José Luis Rodríguez Zapatero à cabeça, não só permitiu as práticas especulativas e o engordamento da borbulha imobiliária: antes bem, estimulou com clareza um e outro processo. Para além disso, e no que se refere aos últimos anos, assumiu medidas tão inapresentáveis como as que se traduziram no desaparecimento do imposto sobre o património, a concessão de 400 euros de rebaixa fiscal a todos os cidadãos --beneficiando por igual, lamentavelmente, o mais rico e o mais pobre--, uma subida do IVA na qual é impossível apreciar nenhuma vocação redistributiva, a preservação de uma laxísima legislação no que respeita aos paraísos fiscais ou, em fim, a extrema inanidade de uma luta contra a fraude que permite que as práticas delitivas continuem sendo uma realidade. Para que nada falte, o mesmo Governo que, aliás, reduziu os salários dos servidores públicos e congelou as pensões não teve maior problema em atribuir somas hipermilionárias ao resgate de instituições financeiras em crise.
Convém prestar atenção a um dado que sobresai, contudo, acima dos demais: faltam as notícias que dêem conta da abertura de causas legais contra aquelas pessoas que é razoável supor foram no seu momento responsáveis de práticas financeiras e contáveis pouco edificantes. Alguém poderá perguntar-se se isso é assim de resultas de uma atitude inapresentavelmente relaxada do lado dos juízes. Pois não parece que seja esse o problema: o que ocorre, tanto mais indignante, é que as normas legais que os nossos governantes decidiram alentar e aplicar são extremamente permisivas no que faz às condutas correspondentes. Afinal de contas, isso é o que veio a significar a tão trazida e levada desregulación que marcou indelevelmente a lógica neoliberal: se as normas legais reguladoras desaparecem, fazem-no também, como por ensalmo, os delitos. De novo há de se me permitir que sublinhe que o anterior remete, no que atinge os nossos governantes, a algo mais que uma mera cumplicidade com condutas reprováveis.
Para encerrar o círculo, não está a mais que façamos um glosa da singularísima atitude que, em relação com tudo isto, assumiu o Partido Popular. Uma de suas dimensões a configura o facto, paradóxico, de que nestas horas se negue a apoiar um plano de ajuste que nos factos, e mau que bem, defendeu calorosamente durante muito tempo. Para dar conta de uma conduta tão surpreendente não há que ir bem longe: por detrás estão, claro, as misérias do jogo político, com as eleições no depósito. Maior relevo corresponde, ainda assim, à segunda dimensão: só os mais ingénuos parecem chamados a abraçar a conclusão de que, quando o Partido Popular governou, com José María Aznar, em Madri suas práticas foram diferentes das alentadas mais adiante pelo seu rival socialista. Não parece fora de lugar recordar ao respeito, por verdadeiro, que por motivo do primeiro mandato presidencial de Rodríguez Zapatero os populares repetiam incansáveis que as cousas em economia iam bem --que tino no diagnóstico, por verdadeiro-- porque o Governo socialista se limitava a aplicar as mesmas receitas preconizadas pelos seus antecessores...
Postos a resenhar uma surpresa mais, a última, aí está a que oferece a certificación de que gregos e troianos, socialistas e populares, afinal oferecem-nos, com solene descaro, mais do mesmo: se a globalização em curso acarretou que os lucros se privatizem enquanto as perdas, em mudança, se socializan --já o sabem servidores públicos e pensionistas--, nenhuma garantia há de que os desmandos e dislates dos últimos anos não se vão repetir à volta da esquina.
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