“Os Direitos Humanos são o conjunto de processos de luta pela dignidade humana”, Joaquín Herrera Flores
A convocação, pelo Presidente Lula, da Conferencia Nacional de Comunicação (CNC) constitui um pano de fundo extremamente concreto e instigante para uma reflexão política sobre a relação que pode ligar democratização da “comunicação” e Direitos Humanos. Poderíamos até dizer que um dos temas de deliberação constituinte da CNC deveria visar responder a duas perguntas: (1) Qual política de comunicação é adequada a uma política dos Direitos Humanos ? (2) O que é um “direito humano à comunicação” ?
“A vergonha de ser um homem”
Em 1991, no meio da globalização de um neoliberalismo que afirmava que a história tinha chegado a seu fim, Félix Guattari e Gilles Deleuze publicaram seu último livro escrito em parceria: O que é a filosofia? O livro é um manifesto de resistência e se propõe de oferecer uma série de conceitos e ferramentas para uma “filosofia” que eles definem como uma prática: processo de constituição dos homens livres, de um novo povo e de uma nova terra porvir . Num capitulo dedicado ao conceito de “geofilosofia”, eles desenvolvem uma crítica pioneira da globalização neoliberal e de sua retórica. Nele encontramos uma afirmação emblemática para nossa reflexão: “Os direitos humanos não nos farão abençoar o capitalismo” . O desenvolvimento seguinte explicita e aprofunda: “É com muita ingenuidade ou até malandragem que uma filosofia da comunicação pretende restaurar uma sociedade dos amigos ou até dos sábios por meio da formação de uma opinião universal enquanto é capaz de moralizar as nações, os Estados e o mercado” . A crítica dos Direitos Humanos visa imediatamente a idéia de uma comunicação que funcionaria como o instrumento neutral de implementação, por meio dessa nova retórica do poder, do consenso em torno da soberania do mercado. Com efeito, a crítica se dirige contra a mistificação liberal (e ultraliberal) do discurso dos direitos humanos e do humanismo eurocentrico (ocidental) que nele está embutido.
De maneira afirmativa, isso significa afirmar que não é possível pensar os Direitos Humanos sem uma crítica do capitalismo e dos valores que lhe permitem de impor o mercado como forma universal. A universalização dos direitos humanos como mera abstração individualista torna universal apenas o mercado e seu direito de propriedade que, na realidade, os contradiz e suspende. As conseqüências políticas são conhecidas: relegados a uma existência meramente formal, os Direitos Humanos se transformam em elemento retórico de legitimação das novas formas de poder e exclusão: seja quando eles acompanham os aviões dos exércitos imperiais que bombardeiam os palestinos em nome da paz, os afegãos em nome da luta ao terrorismo, os iraquianos em nome da democracia e os ex-yugoslavos em nome da tolerância; seja quando eles sustentam as operações de polícia destinadas a manter a miséria dentro de seus limites “democráticos”: atrás dos muros das favelas. Aqui, a retórica dos Direitos Humanos se articula com aquela do fim da história: não haveria porque, nem como se opor a sua soberania. Nas novas formas de soberania imperial, paz e guerra se misturam: o exército vira polícia (como nos territórios ocupados da Palestina ou do Iraque) e a polícia vira exército (como nas favelas cariocas).
A nova centralidade da comunicação
No terreno da comunicação, a ambigüidade do discurso ultraliberal sobre os direitos humanos aparece nitidamente: a dimensão formal da chamada liberdade de imprensa serve, na realidade, para defender uma “grande” mídia (televisão, rádios e imprensa) que associa concentração econômica e total falta de pluralismo. No caso do Brasil temos um diagnóstico alarmante: não apenas cada grupo da comunicação desenvolve uma única linha editorial (de massacre sistemático do governo Lula e de suas reformas), como não há praticamente nenhuma nuance entre os vários grupos. Ao mesmo tempo, qualquer tentativa de discutir a democratização das concessões de radio e teledifusão, da concentração da propriedade e dos recursos de propaganda (estatais e privados), de implementar novos marcos de regulação (como foi com a Ancinav) é rotulada como ameaça ao Direito Humano que é a “liberdade de opinião” [como aconteceu com a Venezuela Chavista; N. do blogger].
Na realidade, por trás da postura anti-democrática da mídia oligopolista , há uma grande fraqueza determinada pelo esgotamento do modelo sobre o qual ela construiu seu poder e sua fortuna. O modelo de comunicação que está em crise é fundamentalmente aquele, de tipo industrial, baseado – por um lado – na relação hierárquica “emissor – receptor” e – pelo outro – no controle estatal (direto ou indireto, de toda maneira centralizado) das concessões e do financiamento. A mídia oligopolista fala de “liberdade” e “opinião pública”, mas está assustada diante da sua crescente incapacidade de continuar formando e disciplinando as opiniões. Ao mesmo tempo, ela fala de mercado e eficiência, mas só pensa em voltar a controlar o Estado do qual ela depende inteiramente. A dimensão estatal (e anti-democrática) da mídia oligopolista não é uma questão de estatuto de sua propriedade, mas da relação de subordinação da esfera da comunicação por parte daquela da produção. A mídia era, no modelo fordista (das economias centrais) e nacional-desenvolvimentista (das economias periféricas), um aparelho de reprodução e legitimação das relações sociais de produção. Ela tinha um papel preciso: legitimar o projeto industrialista e as formas de disciplina (e exploração) que lhe estavam atreladas. Essa mídia funcionava (e ainda funciona) de maneira hierarquizada, produzindo hegemonia a partir de um centro. Mesmo quando ela veiculava um discurso crítico, esse não deixava de ser estruturalmente anti-democrático. A mídia contra – hegemônica é, nesse sentido, especular à hegemônica. Os direitos que estavam em disputa eram materialmente aqueles produzidos dentro e a partir da relação (e do conflito) entre capital e trabalho, quer dizer na relação salarial. Não se falava de Direitos Humanos, mas de direitos do trabalho: a cidadania tinha como cédula de reconhecimento não a “carteira de identidade” mas a “carteira de trabalho”, sobretudo quando ela era assinada. O direito coincidia, nesse sentido, com o emprego e a luta por direitos acabava sendo uma luta pelo pleno emprego e pelas taxas de crescimento que o proporcionariam.
O capitalismo contemporâneo implica um duplo deslocamento desse modelo. Por um lado, o trabalho se descola do emprego e isso implica em sua crescente fragmentação, bem como na redução dos direitos do trabalho (enfraquecimento das organizações sindicais, desmonte da proteção social, amplificação da informalidade e da precariedade do trabalho). Por outro, o único modo que o capitalismo tem de organizar a produção e continuar fragmentando a relação salarial (quer dizer mobilizando o trabalho diretamente nas redes de terceirização e terciarização) é de recorrer, de maneira imediatamente produtiva, às novas tecnologias de informação e comunicação de modo a estruturar a produção dentro da própria circulação. De repente, a comunicação encontra uma nova centralidade: ela não desempenha apenas um papel de reprodução e legitimação das relações de exploração próprias do processo de produção, pois as relações de produção como um todo dependem da comunicação. Ao mesmo tempo, as redes integradas de circulação e produção atravessam a esfera da comunicação, transformando radicalmente seu modo de funcionar. A nova centralidade da comunicação (o fato de que toda a produção depende de sua dinâmica) implica: por um lado, que ela se torna o terreno fundamental de controle e mobilização de um trabalho que não coincide mais com o emprego; pelo outro, que todo tipo de trabalho se torna comunicativo e carrega consigo um potencial de liberdade sem precedente. Nessa clivagem de tipo novo, a democratização da mídia se torna o terreno potencial de luta e produção do trabalho em geral.
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