28/10/2010

Trabalhai mais duro para ganhar menos: a fúria francesa na jaula da União Européia

Diana Jonhstone. Artigo tirado de aqui. A passagem para galego-português é de nosso.




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Aí estão de novo os franceses: de greve, bloqueando o transporte, armando uma boa pelas ruas, e tudo simplesmente porque o governo quer elevar a idade de aposentação dos 60 anos aos 62. Têm que estar loucos.

Suponho que essa é a forma em que se vê o actual movimento de massas -ou mostra-se, pelo menos- em boa parte do mundo, e sobretudo no mundo anglosajón.

Talvez o primeiro que tenha que dizer com respeito às actuais greves em massa em França é que em realidade não têm que ver realmente com "elevar a idade de aposentação dos 60 aos 62 anos". Isto equivale a descrever o livre mercado capitalista como uma espécie de posto de limonada. Uma simplificación propagandística de questões muito complexas.

Permite-lhes aos comentaristas arremeter contra portas de par em par abertas. Afinal de contas, observam sagazmente, a gente de outros países trabalha até os 65 anos, de modo que por que se vão livrar os franceses aos 62? A população envelhece, e se não se eleva a idade de aposentação, o sistema de pensões irá à bancarrota tendo que pagar as pensões de tantos idosos.

No entanto, o actual movimento de protesto não tem a ver com "elevar a idade de aposentação dos 60 aos 62". Trata-se de bem mais.

Para começar, este movimento expressa a exasperação com o governo de Nicolas Sarkozy, que de forma descarada favorece os ricaços sobre a maioria da classe trabalhadora deste país. Foi elegido com o lema, "Trabalhar mais para ganhar mais", e a realidade terminou sendo que se trabalha mais para ganhar menos. O ministro de Trabalho que introduziu a reforma, Eric Woerth, conseguiu-lhe à sua mulher um emprego entre o pessoal de escritório da mulher mais rica de França, Liliane Bettencourt, herdeira de L´Oréal, o gigante dos cosméticos, ao mesmo tempo que como ministro a cargo do orçamento fazia a vista gorda a suas abultadas evasões fiscais.

Enquanto as deduções fiscais aos ricos ajudam a esvaziar as arcas públicas, este governo faz o que pode por jogar abaixo o conjunto do sistema de segurança social surgido depois da Segunda Guerra Mundial com o pretexto de que "não o podemos permitir".

A questão das aposentações resulta bastante mais complexa que a "idade de aposentação". A idade legal de aposentação significa a idade à que pode um se aposentar. Mas a pensão depende do número de anos trabalhados, ou para ser mais precisos, do número de cotisação do plano conjunto de pensões. Com a desculpa de "salvar ao sistema da bancarrota", o governo vai elevando gradualmente o número de anos de cotação de 40 a 43 anos, dando indícios de que ampliar-se-á ainda mais no futuro.

À medida que se prolonga a educação e se começa a trabalhar mais tarde, para ter uma pensão completa a maioria da gente terá que trabalhar até os 65 ou os 67. Uma "pensão completa" vem a estar em torno do 40% do salário no momento da aposentação.

Mas ainda assim, pode que não seja possível. A cada vez é mais difícil encontrar empregos a tempo completo e os patronos não necessariamente desejam conservar empregados maiores. Ou bem a empresa desaparece e o trabalhador de 58 anos se encontra permanentemente desempregado. A cada vez volta-se mais difícil trabalhar a tempo completo num emprego assalariado durante mais de quarenta anos, por muito que um queira. De maneira que na prática a reforma de Sarkozy-Woerth significa singelamente reduzir as pensões.

Isso é, de facto, o que a União Européia recomendou a todos os estados membros como medida económica, com a intenção, como no caso da maior parte das actuais reformas, de reduzir custos sociais em nome da "competitividade", querendo dizer concorrência para atrair o investimento de capital.

Os trabalhadores menos qualificados, que em lugar de prosseguir seus estudos, tenham podido entrar na população activa jovens, digamos aos dezoito anos, terão estado inscritos num plano durante quarenta e dois anos à idade de 60 se conseguem, desde depois, seguir com emprego durante todo esse período. As estatísticas mostram que a sua esperança de vida é relativamente breve, de maneira que precisam deixar de trabalhar cedo se querem desfrutar de alguma classe de aposentação.

O sistema francês baseia-se na solidariedade entre gerações, no sentido de que as cotações dos trabalhadores de hoje se destinam a pagar as pensões da gente hoje aposentada. O governo tentou subtilmente enfrentar a uma geração contra outra, arguyendo que é necessário proteger o futuro da juventude de hoje, que paga pelos pensionistas do baby boom. Portanto resulta extremamente significativo que nesta semana os estudantes universitários e de instituto se unissem ao movimento huelguístico de protesto. Esta solidariedade intergeneracional é um sério golpe ao governo.

Os jovens são bem mais radicais inclusive que os velhos sindicalistas. São muito conscientes da crescente dificuldade de fazer-se uma carreira. A tendência é que o pessoal qualificado entre no mercado de trabalho a cada vez mais tarde, após ter passado por anos de ensino. Com a dificuldade de encontrar um posto de trabalho estável, a tempo completo, muitos dependem de seus pais até os 30 anos. É questão de simples aritmética dar-se conta de que neste caso não terá aposentação plena até a idade de 70 anos.

Produtividade e desindustrialização

Como é já prática habitual, os autores das reformas ultraliberales apresentam-nas não como eleição senão como necessidade. Não há alternativa. Devemos competir no mercado global. Ou seguir a nossa via ou vamos à quebra. E esta reforma ditou-a essencialmente a União Européia, num relatório de 2003, ao concluir que fazer trabalhar mais à gente era necessário para recortar os custos das pensões.

Estes ditados impedem qualquer discussão dos dois factores básicos que subyacen ao problema das pensões: productividad e desindustrialização.

Jean-Luc Mélenchon, antigo membro do Partido Socialista que encabeça o Partido da Esquerda [Parti de Gauche] relativamente novo, é quase o único dirigente político em apontar que ainda que tenha menos trabalhadores que contribuam aos planos de pensões, a diferença pode se compensar com um aumento da produtividade. Desde depois, a productividad do trabalhador francês está entre as mais altas do mundo (é maior que a de Alemanha, por exemplo). Ademais, ainda que França tenha a segunda esperança de vida mais alta de Europa, também tem a taxa de natalidad é mais elevada. E ainda que sejam menos os que têm emprego, devido ao desemprego, a riqueza que produzem deveria ser suficiente para manter os níveis das pensões.

Voilá! Mas, eis a armadilha: durante décadas, conforme a produtividade sobe, os salários estancam-se. Os benefícios do aumento da produtividade desviam-se ao sector financeiro. A sobredimensão do sector financeiro e o estancamento do poder aquisitivo conduziu à crise financeira, e o governo conservou o desequilíbrio resgatando aos despilfarradores financeiros.

Assim que, logicamente, conservar o sistema de pensões exige basicamente elevar os salários para que reflitam a maior productividad: uma mudança de política de verdadeira envergadura.

Mas existe outro problema crucial unido à questão das pensões: a desindustrialização. Com o fim de manter os elevados benefícios drenados pelo sector financeiro e evitar pagar ordenados mais altos, uma indústria depois de outra deslocou sua produção a países de trabalho barato. As empresas rendíveis fecham enquanto o capital segue procurando benefícios ainda maiores.

É isto simplesmente resultado inevitável da ascensão das novas potências industriais de Ásia? É inevitável uma rebaixa dos níveis de vida de Ocidente devido a sua ascensão em Oriente?

Talvez. No entanto, se deslocar a produção industrial termina por fazer baixar o poder aquisitivo de Ocidente, isso sofrê-lo-ão então as exportações chinesas. A mesma Chinesa está a dar os primeiros passos para fortalecer seu mercado interior. O "crescimento orientado à exportação" não pode ser a estratégia de todos. A prosperidade mundial depende em realidade de fortalecer tanto a produção interna como os mercados interiores. Mas isto exige a classe de política industrial deliberada que proíbem as burocracias da globalização: a Organização Mundial do Trabalho e a União Européia. Operam com o dogma da "vantagem comparativa" e a "livre concorrência". Sobre a base do livre comércio, China enfrenta-se actualmente a sanções por promover sua própria indústria de energia solar, vitalmente necessária para acabar com a mortal contaminação do ar que assola a esse país. Trata-se a economia como um grande jogo no que seguir as "regras do livre mercado" é mais importante que o médio ambiente ou as necessidades básicas dos seres humanos.

Só os financeiros podem sair ganhando neste jogo. E se perdem, pois, bom, conseguem dos governos servis mais fichas para outro jogo.

Punto morto?

Em quê acabará tudo isto? Deveria acabar em algo bem como uma revolução democrática: uma completa posta a ponto da política económica. Mas há razões muito poderosas para que isto não suceda.

Para começar, não há direcção política em França disposta e capacitada para dirigir um movimento verdadeiramente radical. Mélenchon é o que mais se acerca, mas seu partido é novo e sua base ainda é reduzida. A esquerda radical vê-se maniatada por sua sectarismo crónico. E há uma grande confusão entre a gente que se rebela sem programas nem líderes claros.

Os dirigentes sindicais são bem conscientes de que os empregados perdem num dia de salário a cada vez que vão à greve, e o verdadeiro é que andam sempre inquietos tratando de encontrar modos de terminar uma greve. Os estudantes são os únicos que não sofrem essa limitação. Os sindicalistas e os dirigentes do Partido Socialista não pedem nada mais drástico que a abertura de negociações com o governo sobre os detalhes da reforma. Se Sarkozy não fora tão tozudo, é uma concessão que poderia fazer o governo e que poderia devolver a tranquilidade sem mudar tantísimo.

Seria necessária a milagrosa aparecimento de novos dirigentes para levar adiante o movimento.

Mas ainda que isto sucedesse, há um obstáculo ainda mais formidable para uma mudança básica: a União Européia. A UE, edificada sobre os sonhos populares de uma pacífica e próspera Europa unida, converteu-se num mecanismo de controle social e económico em nome do capital e especialmente do capital financeiro. Ademais, está unida a uma poderosa aliança militar, a OTAN.

Abandonada a seus próprios meios, França poderia experimentar com um sistema económico mais socialmente justo. Mas a UE está aí precisamente para impedir esses experimentos.

Atitudes anglo-sajonas

O 19 de outubro, o canal da televisão internacional francesa France 24 programou um debate sobre as greves entre quatro observadores não franceses. Uma mulher portuguesa e um homem da Índia pareciam tratar de compreender, com moderado sucesso, o que está a suceder. Por contraposição, os dois anglo-norte-americanos (o corresponsal em Paris da revista Time e Stephen Clarke, autor de 1000 Years of Annoying the French) divertiram-se demonstrando seu autosatisfecha incapacidade para entender o país sobre o que se ganham a vida escrevendo.

Seu rauda e feliz explicação: "Os franceses estão sempre de greve por diversión, porque o desfrutam".

Um pouco mais tarde, o moderador mostrou uma breve entrevista com um estudante de instituto que oferecia comentários sérios sobre a questão das pensões. Fez isto vacilar aos anglosajones?

A resposta foi instantánea. ¡Que triste ver a um jovem de dezoito anos pensando nas pensões quando deveria estar a pensar em garotas!

De maneira que já seja por se divertir, já seja em lugar de se divertir, os franceses resultam absurdos para os anglo-norte-americanos acostumados a lhe dizer a todo mundo o que tem de fazer.

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