02/01/2011

Shelley, Brech, França, Grande Bretanha e o protesto social

Tariq Ali. Artigo tirado de aqui e traduzido por nós para o galego-português desde o castelhano. Originalmente apareceu no jornal The Guardian em 17 de outubro e 27 de dezembro de 2010.


 

1 Por que não podemos protestar contra os recortes como os franceses?
Faz nuns anos, o presidente francês Nicolas Sarkozy declarou a um entrevistador que ele conhecia aos franceses melhor que a maioria. Hoje admiravam a beleza de sua esposa; amanhã quereriam cortar-lhe o pescoço a ele. Ainda não chegaram a tanto, mas os franceses  -estudantes e trabalhadores, homens e mulheres, cidadãos todos- jogaram-se de novo à rua. Um aumento da idade de aposentação? Impossível. Levantam-se barricadas, esgotam-se as reservas de combustível, adelgaza a frequência de comboios e aviões, e seguem aumentando os protestos. Mais de três milhões de pessoas há uma semana. Centos de milhares nesta semana e mais que se esperam este fim de semana. E daí gozosa visão: os estudantes escolares manifestam-se em defesa dos direitos dos idosos. Se tivesse uma Guia Michelin dos Grandes Protestos, França ainda estaria na cimeira com três estrelas, e Grécia seguir-lhe-ia muito de perto com duas.

Vá contraste comparado com as acções planeadas pelas medrosas organizações sindicais inglesas. Também entre nós cresce a ira e o rancor, que trata, com tudo, de recuperar uma burocracia petrificada. Preparou-se um protesto ritual, em boa medida para demonstrar que estão a fazer algo. Mas é isto melhor que nada?

Talvez, não estou do todo seguro. Mas até estas tímidas tentativas de reunir apoios contra as medidas de austeridade são excessivos para o amado líder Ed Milliband, ao que não veremos ir aos protestos. A podredume do blairismo calou fundo no laborismo. A aplastante derrota da primavera passada poderia ter produzido algo melhor que essa panda que constitui sua direcção política. [Ed] Balls o bulldog [dirigente laborista] poderia ter-se lançado à jugular, mas foi neutralizado. Em lugar disso, a nova direcção política parece desesperada por demonstrar que poderia facilmente fazer parte da coalizão, e não só no referente a Afeganistão.

Também aumenta o ressentimento e a ira em Inglaterra, mas não há até agora bem mais. Poderia mudar. A epidemia francesa poderia estender-se, mas não sucederá nada porque vinga de acima. Jovens e velhos lutaram contra Thatcher e perderam. Quem a sucederam asseguraram-se de que as derrotas que ela infligiu ficassem institucionalizadas.

Este é um país que carece de oposição oficial. Faz falta uma sacudida extraparlamentar, não só para combater os recortes senão também para realzar a democracia que neste momento se destina a promover os interesses empresariais e pouco mais. Resgates para os banqueiros e os ricos, um volume obsceno de gasto em defesa para livrar as guerras de Washington e recortes para os menos favorecidos e os pobres. Um mundo de pernas para o ar estabelece suas próprias prioridades e são estas as que há que contestar. Estas ilhas têm, afinal de contas, um passado radical que não se ensina nos módulos de história que se oferecem. Vista a incapacidade do parlamento oficial de satisfazer as verdadeiras necessidades, por que não convocar as assembleias regionais e nacionais com uma carta social pela que lutar e que defender, tal como Shelley aconselhava faz agora algo menos de dois séculos

Vocês que sofreis penas indecíveis

Ou sentir ou ver

Vosso país perdido, comprado e vendido

Ao preço de sangue e ouro.

[. . .]

Alçai-vos como leões depois da sonolência

Em número invencível,

Jogai a terra como orvalho vossas correntes

Quedas sobre vocês no sonho.

Sois muitos, eles só uns poucos.


2 Que teve depois? Protestos estudiantis

Um amigo de França, vendo as manifestações estudiantis de Londres numa página inglesa na rede, escreve-me um correio: "(. . . ) ao invés que na França, não há uma memória tribal, institucionalizada da luta onde vos manifestais. Converte isso este momento de Grã-Bretanha em algo mais feroz e impredecível? Pensava eu, vendo a página, que talvez pudesse ser o caso. Não há lembrança de uma revolução na Grã-Bretanha moderna, mas fica memória histórica do que fizeram os estudantes em 1968, uma memória que mantêm viva imagens, canções e livros, e fica também a memória do que foi a rebelião contra o poll tax (o imposto de capitaçom), que supôs outro tanto no caso de Thatcher..   

Misturar vinhos velhos e jovens sempre é um erro (o Château Thatcher 1979 com o Nouveau Blair de 1997, ou o Cameron-Clegg de 2010 em garrafa de plástico). O velho saber e o novo, no entanto, misturam-se admiravelmente bem. Isso foi o que experimentamos o 8 de dezembro de 2010. Percebe-se no ar uma nova atmosfera, uma ira que funde a neve. Todos saúdam os novos e jovens estudantes decembristas que desafiaram a um governo complacente e ao mesmo tempo dispararam umas quantas salvas à oposição e seus cobistas dos meios de comunicação, todos os quais se recuperam ainda de uma resaca paralisante, em consequência de se ter  trasfegado demasiado com o Nouveau Blair.

Os decembristas ocuparam, cantaram, escreveram -em blogues, em Facebook, em Twitter- e manifestaram-se para mostrar seu desprezo pelos políticos mentirosos. O Príncipe de Gales e a sua consorte tiveram ocasião de vê-lo de perto, algo muito diferente da adulação à que estão acostumados. Foi este movimento o que outorgou valor a uma maioria dos parlamentares liberal-democratas de Clegg e Cabo para votar na contramão, se abster ou ausentar-se dos Comuns nessa fatídica jornada. As fogueiras acendidas na praça do Parlamento para aquecer os decembristas acurralados também eram simbólicas, pois a calor lhe queima agora uma coalizão que apodrece e que bem pudesse não concluir uma legislatura que se prometiam tão feliz. Esse Cameron de rosto impávido já não pode jactar-se perante os seus colegas europeus de que seu país é um Guantánamo político-económico no que vale tudo. Já não.

As taxas de ensino aprovaram-se, mas são os decembristas os que se assentaram num plano moral e politicamente superior. Que vai passar agora? O estamento político esperará que a animação  natalícia e o se ir endevidando facilmente a base de descobertos bancários permanentemente em oferta acabará por minar a energia dos estudantes. Com a experiência que me dá ter falado numas quantas ocupações e ter parolado na rua, eu diria outra coisa. Notei uma determinação férrea por parte de muitos estudantes escolares e universitários que se deram conta de repente de que fazem parte de algo  maior. Ao lutar por eles mesmos lutam pelos interesses da sociedade em seu conjunto, uma sociedade que já teve bastante de privatizações e desregulação de serviços públicos encadeados a iniciativas de financiamento privadas (PFIs), com um sistema ferroviário cujas tarifas estão permanentemente pelas nuvens, uma sociedade na que o benefício é rei, não importa o que lhe custe ao país.

E assim, tem de continuar a luta, de modo que os trabalhadores do sector público aos que vão jogar como se fossem comida enlatada passada de data saquem, espero, ânimo dos acções dos jovens decembristas. Tal como escreveu o poeta alemão Bertolt Brecht num de seus últimos poemas:

Significa isto pois que temos de nos conformar

E dizer  "assim é e sempre assim tem de ser"

E desdenhar o copo rebossante pelo que já se esvaziou

Porque ouvimos que é melhor estar sedentos

Quer isto dizer portanto que temos de nos sentar aqui aterecidos

Pois não se permitem hóspedes sem convite

E aguardar a que os de acima sigam considerando

Que penas e alegrias nos vão dispensar?

Melhor, cremos, seria alçar-se com ira

E não andar nunca sem o menor prazer

E, tendo a raia a quem trazem dor e fome,

Arranjar o mundo por viver nele para nosso bem-estar.

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