18/12/2011

«Indignados» à chinesa


«Não sabemos onde vamos parar.» É a frase que mais se ouve em Pequim. Quer dos jovens, quer dos mais velhos. Desde os contestatários mais virulentos aos mais submissos funcionários. O tempo das certezas no caminho do progresso parece marcar passo. O governo declarou que o crescimento se situará este ano entre os 8 e 9%, longe do resultado de dois dígitos das últimas décadas. Por Martine Bulard.
O 18º Congresso do PC chinês realiza-se em Outubro de 2012, num quadro de recessão global que afeta o crescimento da economia chinesa.
O 18º Congresso do PC chinês realiza-se em Outubro de 2012, num quadro de recessão global que afeta o crescimento da economia chinesa. Foto Remko Tanis/Flickr
 
A preparação do 18º congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), que decorrerá em Outubro de 2012, tende a congelar qualquer iniciativa e obscurecer a paisagem.  "Mesmo eu, que sou um membro do partido, disse-me um funcionário que deseja permanecer anónimo, lamento dizer que não sei o que está a acontecer. O nosso homem, que não é, de modo algum, um dissidente, está, naturalmente,  muito preocupado.  Não há filtro na cidade vermelha.

Os movimentos sociais existem - e talvez sejam essa a explicação. As greves, que nunca mais pararam desde o grande movimento de julho de 2010, reforçaram-se na região de Shenzhen e Guangzhou,  tradicionalmente exportadora.  A crise ocidental traduz-se numa baixa das exportações que a gestão empresarial faz repercutir sobre os salários.  Assim,  na fábrica de calçado de Yucheng, cujo grupo trabalha para marcas como a Nike ou a Adidas,  foi suprimido o pagamento das horas extraordinárias,  e os salários passaram,  a partir de 1800-1900 yuan,  para 1100 yuan [1 ].

É preciso ter em conta a chantagem com a deslocalização para países vizinhos  (como o Vietname), mas também na própria China,  para as regiões do centro e ocidente,  onde os salários são mais baixos e os incentivos do governo para a instalação muito atraentes.  As realidades não podem ser completamente abafadas.  Há relatos frequentes nos jornais  sobre estas lutas, com particular ênfase para as que ocorrem sem violência e tentam um diálogo com as autoridades. O Global Times publica um editorial - sem assinatura,  como sempre, mas num tom bastante defensivo,  o que é muito mais raro - com o título sugestivo:  "Os chineses são realmente pobres? [2]. "

Sente-se em todo o país que há miséria,  diz o autor.  Os chineses sentem que vivem menos bem, mas é "incorrecto dizer que a pobreza se tornou insuportável." No entanto, "deve notar-se que se tornou vital a obtenção de uma melhor coordenação entre o sonho nacional e os sonhos individuais porque os ideais comunistas se afastaram das nossas vidas diárias.  Por outras palavras, o povo chinês deve estar convencido de que o país vai continuar a sua ascensão e que esta ascensão vai contribuir para a felicidade de cada um. Mas o governo não consegue eliminar toda a pobreza. Se o editorial reconhece que "a opinião pública deve ocupar-se da pobreza", critica alguns "meios de comunicação que, equivocadamente,  pensam que devem ser  porta-voz dos pobres e até mesmo incitar as pessoas a entrar em conflito com as autoridades." Ameaça velada contra a mídia, como afirmam alguns?

De qualquer forma,  neste momento,  os jornais, inclusive os mais formais,  já não podem ignorar a agitação social e as crescentes desigualdades.  E não é um anónimo, mas LiXiguang, Director do Centro Internacional da Comunicação  de Tsinghua, uma das maiores universidades na China, que assina um notável ponto de vista no próprio GlobalTimes. Eis alguns extensos trechos, reproduzidos com autorização. Sob o título "A desigualdade do programa do 18º congresso",  escreve: «No passado fim de semana fui convidado para uma palestra na Brown University em Rhode Island, nos Estados Unidos.  Depois do pequeno-almoço, fiz um passeio no parque Burnside no centro de Providence  [capital deste estado americano]. "Ocupar Providence" é um dos mil locais do protesto ("Ocupar")  em todos os Estados Unidos e no mundo inteiro -  movimentos que exigem mudanças socioeconómicas, tais como a luta contra o poder corporativo, a pobreza e a exploração.

O local foi transformado num "Parque do Povo". Percorrendo-o vi,  em tendas, uma biblioteca, um centro de multimídia,  uma cozinha e uma clínica dirigida por voluntários entusiastas. Alguns manifestantes eram estudantes, outros desempregados, outros veteranos de guerra do Iraque e do Afeganistão.  Pessoas de idade liam calmamente.  E todos me sorriram quando entrei. Sobre o gradeamento em volta do parque pendiam painéis coloridos  que diziam: "Não toquem nas pensões públicas", "Trabalhemos para a Justiça" (...) "Somos 99%"... Este último slogan  refere-se à grande diferença de riqueza entre os mais ricos 1% e o resto dos cidadãos americanos. No entanto, a nossa desigualdade de rendimento não é menor que a dos Estados Unidos. A China é hoje a segunda maior economia do mundo. Mas o coeficiente de Gini [3] está perto de 0,50 na China, actualmente, contra cerca de 0,28 em 1978, está entre os mais altos do mundo. De acordo com o relatório de 2009 do programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento  (PNUD), a diferença entre os 10% mais ricos da população e os 10% mais pobres é de 6,9 ​​na Alemanha e 15,9 nos Estados Unidos. Segundo o professor Li Shi da Universidade de Pequim em 2008, o rendimento dos 10% dos mais ricos da China era 23 vezes maior do que o rendimento dos 10% dos mais pobres contra 7,3 vezes em 1998. Ainda hoje as pessoas que vivem no campo têm um rendimento em média três vezes menor do que as que vivem em cidades.

Os frutos do crescimento concentram-se sempre mais nas mãos duma minoria – são as elites que dirigem a banca, os negócios, a indústria dos midia, as universidades e que se encontram nas altas esferas do poder.

A acreditar no que publica o microblog Weibo, estas desigualdades provocam forte descontentamento. A concentração das riquezas parece fora de controlo. Grupos extremistas de esquerda e de direita, grupos de revoltados discutem hoje a possibilidade de criar um movimento “Ocupar” na China. (…)
O Partido que está a preparar o seu congresso para o próximo ano, vê-se, cada vez mais, confrontado com a distância entre ricos e pobres. Isso ameaça a sua legitimidade. Em 1949 o partido tinha-a adquirido,  ao estabelecer como objectivos tirar o povo da miséria e fazer a nação forte.

Mao Zedong escolheu uma acumulação alta e um consumo baixo, dando prioridade à indústria pesada; isso levou a crescentes disparidades entre as zonas urbanas e rurais. Deng Xiaoping [que lançou as reformas de 1976], introduziu mecanismos de mercado, quebrando o monopólio estatal e promovendo o sector privado na economia. 

A partir de 1978, o povo chinês mudou, a ascensão social funcionou e quase toda a gente vive mais confortavelmente. Mas Deng optou por ir mais rápido, favorecendo as zonas costeiras e um certo segmento da população, o que levou a uma polarização da riqueza e um agravamento das disparidades regionais.

Todos sabemos que a China passou de uma economia planificada para uma economia de mercado, de uma sociedade rural a uma sociedade urbana, de um baixo nível de rendimento para um nível médio.  Mas o ponto de viragem para passar a um país próspero é um dos maiores desafios que enfrentamos.

Intelectuais chineses e think tanks predizem que uma nova estratégia de desenvolvimento irá emergir no 18º Congresso do Partido. Este último deve anunciar um plano de acção para os próximos cinco anos.  Espero que o país tenha uma estratégia que se resume da seguinte forma: "As pessoas em primeiro lugar" (“People First”). Por outras palavras, iremos investir mais dinheiro no desenvolvimento humano: a luta pela educação para a saúde pública,  a educação nas áreas rurais, a protecção ambiental, a habitação para pessoas de baixo rendimento, e contra os problemas relacionados com o envelhecimento da população.

À maneira do slogan “Nós somos os 99 %” – palavra de ordem unificadora dos movimentos de protesto em Wall Street –, “As pessoas em primeiro lugar” pode tornar-se a palavra de ordem unificadora do 18º Congresso do PCC. »

Li Xiguang será ouvido? Ninguém aqui ousaria tal prognóstico.



Martine Bulard é redatora-chefe do Le Monde Diplomatique.
Tradução de Deolinda Peralta. Versão original aqui.
Notas:
[1] Ma Latang, « Over 10,000 workers besiege shoe factory in massive strike in Dongguan », Shanghaiist.com, 18 de Novembro.
[2] « Are Chinese people truly miserable? » Global Times, Pékin, 23 Novembro 2011.
[3] O coeficiente de Gini mede as desigualdades. Quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade social, quanto mais próximo de 0, mais próxima a igualdade.

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