Slavoj Žižek. Artigo tirado do portal Esquerda.net (aqui) ligado ao partido da esquerda portuguesa Bloco de Esquerdas. Artigo de Slavoj Žižek, publicado originalmente no jornal dos EUA New York Times, em 9/11/2013, e a 11/12/2013 no blog da boitempo. Tradução ampliada e cotejada da feita por Vila Vudu, no redecastorphoto.

Apesar da sua
indiscutível grandeza política e moral, Mandela, no fim da vida, era
também um velho triste, bem consciente de que o seu triunfo político e a
sua consagração como herói universal não passavam de máscara para
esconder uma derrota muito amarga
Nas últimas duas décadas da vida, Nelson Mandela foi festejado como
modelo de como libertar um país do jugo colonial sem sucumbir à tentação
do poder ditatorial e sem postura anticapitalista. Em resumo, Mandela
não foi Robert Mugabe, e a África do Sul permaneceu uma democracia
multipartidária com imprensa livre e vibrante economia bem integrada no
mercado global e imune a horríveis experiências socialistas. Agora, com a
morte dele, a sua estatura de sábio santificado parece confirmada para
toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de
Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em
pessoa). Rock stars e líderes religiosos, desportistas e políticos, de
Bill Clinton a Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela.
Mas será essa a história completa? Dois factos são sistematicamente
apagados nesta visão de celebração. Na África do Sul, a maioria pobre
continua a viver praticamente como vivia nos tempos do apartheid, e a
‘conquista’ de direitos civis e políticos é contrabalançada por
violência, insegurança e crime crescentes. A única mudança é que onde
havia só a velha classe governante branca há agora também a nova elite
negra. Em segundo lugar, as pessoas já quase nem se lembram que o velho
Congresso Nacional Africano não prometera só o fim do apartheid; também
prometeu mais justiça social e, até, um tipo de socialismo. Esse ANC
muito mais radical do passado está a ser gradualmente varrido da
lembrança. Não surpreende que a fúria esteja outra vez a crescer entre
os sul-africanos pretos e pobres.
A África do Sul, quanto a isso, é só a mesma versão repetida da
esquerda contemporânea. Um líder ou partido é eleito com entusiasmo
universal prometendo “um novo mundo” – mas então, mais cedo ou mais
tarde, tropeçam no dilema chave: quem se atreve a tocar nos mecanismos
capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém
perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de
mercado, caos económico e o resto todo. Por isso parece tão simples
criticar Mandela por ter abandonado a perspetiva socialista depois do
fim do apartheid. Mas ele chegou realmente a ter alguma escolha? Andar
na direção do socialismo seria possibilidade real?
É fácil ridicularizar Ayn Rand, mas há um grão de verdade no famoso
“hino ao dinheiro” do seu romance A revolta de Atlas: “Até que e a não
ser que você descubra que o dinheiro é a raiz de todo o bem, você pede
por sua própria destruição. Quando o dinheiro deixa de ser o meio pelo
qual os homens lidam uns com os outros, tornam-se os homens ferramentas
de outros homens. Sangue, chicotes e armas de fogo ou dólares. Faça a
sua escolha – não há outra.” Não disse Marx algo semelhante na sua
conhecida fórmula de como, no universo da mercadoria, “as relações entre
pessoas assumem o disfarce de relações entre coisas”? (O capital,
p.147)
Na economia de mercado, acontece relações entre pessoas aparecerem sob
disfarces que os dois lados reconhecem como liberdade e igualdade: a
dominação já não é diretamente exercida e deixa de ser visível como tal.
O que é problemático é a premissa subjacente de Rand: de que a única
escolha é entre relações diretas ou indiretas de dominação e exploração,
com qualquer outra alternativa dispensada como utópica. No entanto,
deve-se ter em mente que o momento de verdade da (se não por isso,
ridiculamente ideológica) alegação de Rand: a grande lição do socialismo
de estado foi efetivamente a de que uma abolição direta da propriedade
privada e da troca regulada pelo mercado carente de formas concretas de
regulação social do processo de produção necessariamente ressuscita
relações diretas de servidão e dominação. Se apenas extinguirmos o
mercado (inclusive a exploração do mercado), sem substituí-lo por uma
forma própria de organização comunista da produção e da troca, a
dominação volta como uma vingança, e com a exploração direta pelo
mercado.
A regra geral é que, quando começa uma revolta contra um regime
opressor semidemocrático, como aconteceu no Médio Oriente em 2011, é
fácil mobilizar grandes multidões com slogans que só se podem descrever
como “formadores de massa”: pela democracia, contra a corrupção, por
exemplo. Mas adiante gradualmente vamos deparando-nos com escolhas mais
difíceis: quando a nossa revolta é bem sucedida no alcance do seu
objetivo direto, passamos a dar-nos conta de que o que realmente nos
atormentava (a falta de liberdade pessoal, a humilhação, a corrupção das
autoridades, a falta de perspetiva de, algum dia, chegar a ter uma vida
decente) perdura sob nova roupagem. A ideologia dominante mobiliza aqui
todo o seu arsenal para nos impedir de chegar a essa conclusão radical.
Começam a dizer-nos que a liberdade democrática implica
responsabilidades; que a liberdade democrática tem o seu preço; que
ainda não estamos plenamente amadurecidos, se esperamos demais da
democracia.
Num plano diretamente mais político, a política externa dos EUA
elaborou detalhada estratégia para controle de danos: basta converter o
levantamento popular em restrições capitalistas-parlamentares
aceitáveis. Isso, precisamente, foi feito com sucesso na África do Sul,
depois do fim do regime de apartheid; foi feito nas Filipinas depois da
queda de Marcos; foi feito na Indonésia depois da queda de Suharto e foi
feito também noutros lugares. Nesta precisa conjuntura, as políticas
radicais de emancipação enfrentam o seu maior desafio: como fazer
avançar as coisas depois de acabado o primeiro estágio de entusiasmo,
como dar o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação
“totalitária”, em resumo: como avançar além de Mandela, sem se converter
num Mugabe.
Se quisermos permanecer fiéis ao legado de Mandela, temos de deixar de
lado as lágrimas de crocodilo das celebrações e focar-nos em todas as
promessas não cumpridas infladas sob a sua liderança e por causa dela.
Assim se verá facilmente que, apesar da sua indiscutível grandeza
política e moral, Mandela, no fim da vida, era também um velho triste,
bem consciente de que o seu triunfo político e a sua consagração como
herói universal não passavam de máscara para esconder uma derrota muito
amarga. A glória universal de Mandela é também prova de que ele não
perturbou a ordem global do poder.
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