Immanuel Wallerstein. Artigo tirado de Outras Palavras (aqui) para onde foi traduzido desde o inglês por Gabriela Leite. Imagem John Adams. Immanuel Wallerstein é um dos intelectuais de maior projeção
internacional na atualidade. Seus estudos e análises abrangem temas sociológicos, históricos, políticos, econômicos e das relações
internacionais. É professor na Universidade de Yale e autor de dezenas
de livros e um impulsor da escola do sistema-mundo. Mantém um site onde publica seus textos
(http://www.iwallerstein.com/). Tradução revista por À revolta entre a mocidade, o negrito também é engádega nossa.
Impasses que marcaram movimentos de libertação nacional ressurgem na África do Sul.
Que está em jogo? Quais as alternativas?
Que está em jogo? Quais as alternativas?
O ícone está morto. Longa vida a quê? O mundo assistiu,
em dezembro de 2013, à incrível celebração no funeral de Nelson Mandela.
Os elogios eram inacabáveis. Mais chefes de estado e de governo,
passados e presentes, prestaram homenagem do que em qualquer outro
funeral na história. Houve, é claro, algumas vozes contrárias entre os
comentários, mas realmente muito poucas. Existia, certamente, uma boa
parte de hipocrisia na celebração, mas também houve expressões de dor
genuínas, e uma admiração verdadeira por alguém extraordinário. Foi o
último vivo a quem a África do Sul chamava de Tata Madiba.
Mas e agora? A realidade para a África do Sul é que,
qualquer que tenha sido o papel de Mandela na luta contra o apartheid e
depois, na (re)construção do país e na passagem do poder político para
outros, ele não pode mais desempenhá-lo. O país está agora em suas
próprias maõs, para melhor ou pior — sem a graça especial concedida por
um ícone vivo. Quais são seus conflitos internos presentes e sua atual
posição geopolítica? E o que podemos esperar que ela seja, nas próximas
décadas?
A primeira coisa que podemos esperar é um contínuo,
talvez rápido, declínio da organização de Mandela, o Congresso Nacional
Africano (CNA) [ANC nas siglas em inglês, N. de nosso]. O CNA foi a força que liderou a luta contra o apartheid
(embora não a única). Contra dificuldades aparentemente enormes, a
organização ganhou a batalha política. Alcançou sua demanda principal,
um sistema político baseado em um voto por pessoa. Nas primeiras
eleições da África do Sul sob sufrágio universal, Nelson Mandela foi
eleito presidente, em 1994, e o CNA ganhou mais de dois terços das
cadeiras no legislativo. Repetiu esta demonstração política de apoio nas
duas eleições presidenciais subsequentes de Thabo Mbeki e Jacob Zuma,
assim como na maior parte das eleições regionais e locais.
No entanto, já está visivelmente em declínio. Por quê? A
primeira explicação é que todos os movimentos nacionais de libertação
que ganharam poder após uma longa luta tiveram um período inicial de
apoio eleitoral enorme, seguido por um declínio, frequentemente abrupto.
Isso ocorre por três razões: (1) Expectativas populares de melhoras
drásticas, especialmente na esfera econômica, não foram atendidas.
Inclusive, em vários casos, a situação ficou pior, para um grande número
de pessoas. (2) Ao mesmo tempo, existe uma grande corrupção entre os
governantes eleitos e gente favorecida por eles, e há uma luta interna
cada vez maior entre os principais líderes. (3) Com o tempo, uma parcela
cada vez maior dos eleitores é jovem demais para ter memória direta da
vida sob o regime anterior.
No caso da África do Sul, os problemas genéricos a todos
os movimentos nacionais de libertação misturam-se a uma história
política particular. O CNA articulou-se numa aliança política
tripartite, que reunia também o Partido Comunista da África do Sul
(PCAS) e o Congresso dos Sindicatos da África do Sul (Cosatu, em
inglês). Ambas as organizações foram afetadas pelo declínio do CNA.
O PCAS desempenha há muito tempo um papel
político bem além de sua força eleitoral. Isso levou-o a se aproximar
muito da CNA, movido pelo medo óbvio de que qualquer divisão
significaria um desastre eleitoral, tornando-o politicamente
irrelevante. Certos membros do PCAS, ou ex-membros, tornaram-se alguns
dos principais proponentes de uma orientação neoliberal para o governo.
Outros têm reformulado suas aspirações socialistas, que agora veem como
um projeto de muito muito longo prazo.
A Cosatu, diferente do PCAS, tem uma base numérica
significativa. Mas é uma federação de sindicatos, que têm interesses
variados, e cujos líderes fazem diferentes análises da situação política
atual. Em versão resumida, os debates internos da Cosatu dão-se porque
alguns grandes sindicatos estão prontos para romper com o CNA e
estimular ativamente filiações partidárias alternativas. Outros clamam
exatamente pelo oposto. Isso divide os sindicatos entre si e no interior
de cada um. A Cosatu está a ponto de uma grande virada, envolvendo uma
provável ruptura orgânica interna. Se os sindicatos vão continuar,
depois disso, a ser um grande ator na cena da África do Sul na próxima
década, é algo muito incerto.
Por fim, o próprio CNA está cada vez mais dividido.
Houve dois rachas antes nisso, mas nenhuma das organizações resultantes
pareceu avançar eleitoralmente. Hoje, um rompimento provavelmente teria
consequências mais sérias. Há duas divisões básicas dentro do CNA. Uma é
étnica, entre os líderes, enraizados em um ou outro dos maiores grupos –
Xhosa e Zulu. A outra tem a ver com a segunda grande conquista
sul-africana com repercussão mundial, o caráter não racial do regime.
Existe agora uma grande facção que pede a rejeição do chamado
“arco-íris” e da declaração de uma precedência “africanista” para o
partido. A questão mais quente que isso envolve é a redistribuição da
terra, ainda largamente nas mãos dos fazendeiros brancos.
Além dos conflitos internos, a África do Sul tem tido um
papel relativamente importante na cena mundial, e sua atividade
geopolítica tem sido objeto de críticas crescentes. O país é um dos
cinco membros do BRICS (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul) – o
menor e mais fraco economicamente deles. Há muito debate na África do
Sul sobre em que grau esta ligação permite aos outros, principalmente a
China, tirar proveito das riquezas sul-africanas.
A África do Sul é ao mesmo tempo um peso-pesado no
continente africano, e seu exército cumpriu um papel ativo na
“manutenção da paz” em vários países. A questão: isso é subimperialismo,
imperialismo direto que reflete os interesses econômicos da África do
Sul, ou, ao contrário, uma expressão virtuosa de autonomia regional e
solidariedade?
Por último, assim como em boa parte do mundo, existe um
grande e crescente desemprego. E, como em grande parte do planeta, a
reação política tem sido uma crescente xenofobia, levando a ataques a
moçambicanos e outros, que imigraram em busca de melhora econômica.
De diversas maneiras, a África do Sul é um barril de
pólvora, prestes a explodir. Ainda assim, do lado positivo, tem a
Constituição mais progressista do mundo (considerando, é claro, que seja
respeitada). Ainda goza de uma das arenas de debate político mais
abertas e vivas. E tem um número impressionante de movimentos sociais de
base.
Daqui a uma década, a África do Sul provavelmente parecerá muito diferente. A questão é: vai estar melhor ou pior?
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