06/02/2014

1914: Porque comemorar o centenário da Primeira Guerra Mundial?

Bernard Maris. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por nós. Bernard Maris (1946) é um reputado economista e prolífico escritor e divulgador. É conselheiro científico da Misão do Centenário da Primeira Guerra Mundial de França. Colaborador de médios como Marianne, Le Nouvel Observateur, Le Monde ou Charlie Hebdo, com a alcunha de «Oncle Bernard», foi membro de Attac. O negrito é de nosso.
 
 

En Reims, o presidente Hollande evocou o martírio da cidade durante a Primeira Guerra Mundial e a chanceler Merkel o pacifismo através de Aristide Briand e Wilhelm Foerster. [1] 2014 será a nova cita de franceses e alemães, dos franceses com o mundo inteiro e dos franceses com eles mesmos. Porque comemorar 1914? Pela paz, a amizade, mas por muito mais ainda. Em primeiro lugar, para compreender a nossa sociedade. Em 1914 acaba a primeira grande mundialização começada cem anos antes. Nunca tinham sido tão densas as trocas comerciais e culturais. París acolhe a todos os artistas do mundo e os artistas franceses viajam por toda Europa, eses mesmos artistas que, sem sombra de dúvida, se alistarão na guerra. Ravel fará tudo o possível para ser declarado apto e rematará conduzindo um camião em Voie Sacrée [Vía Sagrada, a rota vital de subministros ao frente]. Apollinaire, polaco, batalha por alistar-se. Ao dia seguinte do assassinato de Jaurès, Guesde cai em braços de Barrès, [2] o primeiro que chega a saudar os restos do seu velho inimigo.

Porque é que nenhum intelectual, nenhum artista esconder-se-á da guerra? Partiram com os franceses com a flor no fuzil? Não. Agás alguns excitados parisinos agitados pelas ligas (patrióticas), a partida é tranquila e grave. Eram revanchistas? A maior parte, não, mais bem pacifistas. Preocupava-lhes Alsácia-Lorena? A verdade é que não. Que sociedade era esta, que, abarrotando as estações de comboio o 2 de agosto, apresta-se a desaparecer, e que imagem da da nossa?

Quem é que somos nós, que apresentamos queixas contra o exército pela morte dum soldado? Foi mais brutal o exército francês com os seus soldados que o exército alemão? Talvez. Foram mais sacrificadas as tropas coloniais? Não, não creio. Nisto, os investigadores, os universitários, mas também os escritores, vão a aplicar-se denodadamente e a trabalhar.

Compreender e reconhecer. Os franceses perdem-se pela genealogia. Todos temos um avô, um bisavô, um tio-avô, nosso ou dos nossos coirmãos, combatente ou morto. Todos os jovens franceses procedentes da imigração têm um antepassado ou um coirmão dum antepassado das tropas coloniais morto por França ou maltratado por ela, quando voltou sem aposentadoria. Dizer «os nossos antepassados os galos» não tem nenhum sentido, mas dizer «os nossos antepassados de 1914», para mim, que sou de origem senegalês, maliano, marroquino ou vietnamita, tem o seu significado. Em 2014, os franceses quererão reconhecer os homens, as mulheres, os locais dos combates, as necrópoles em que entre as cruzes sobressai por vezes a meia lua muçulmana, ou a estrela de Davide. Todos, bretões e occitanos que não falavam francês. Corsos, arrabaleiros de Paris, argelinos, malgaches, vimos de Les Éparges, de Verdum, do Cemin des Dames [3].


Por isso é pelo que a comemoração de 1914 deve ter uma función genealógica e pedagógica. Há que fazer reviver para as crianças da escola primária uma aula tal como a davam os mestres de 1914; há que fazer que construam «monumentos de  paz» junto aos monumentos aos mortos, ou fazer-lhes que escrevam cartas a um amigo alemão, criar obras de teatro, ou encontrar mil maneiras de fazer que se apaixonem, que se apaixonarão. A cultura e a educação nacional estarão em primeira linha. Há que falar-lhes da retaguarda, dos enchufados, dos mercadores de armas, do extraordinário trabalho das mulheres - as grandes esquecidas de 1914-18-, mostrar-lhes também os "gueules cassées" (bocas rotas). [4] Há que fazer que leam a Genevoix, Barbusse, Pergaud, Dorgelès, Cendrars... e Remarque, [5] e tantos outros! Estes cidadãos de 1914 que pensavam justificar o seu sofrimento e a sua desgraça por esse formoso, «la der des ders» [a última das últimas (guerras)], pela herança de paz que deixariam, essas mulheres que espreitam o pregoeiro ou ao senhor alcaide portador de más notícias, são eles. Eles, os que hoje não podem imaginar um conflito europeu.

As demais razões são políticas e não deveriam escapar-se-lhe a ninguém. Em 2014, França será cenário do mundo. Todos os cidadãos dos estados beligerantes vão recordar, a visitar os locais de combates, os cemitérios. Os canadianos irão a Vimy, os norte-americanos a Saint-Mihiel, os australianos e os ingleses ao Somme, por não citar mais que a estes, e por toda a parte virão os nossos amigos alemães, belgas, portugueses, italianos e russos... Em 2014, França, estado do conflito, tem que falar ao mundo. Igual que a sim próprio.

E em primeiro lugar, da República de 1914-18 é o segundo grande acontecimento que, depois de 1789, assenta e instala a República. Esta República botará abaixo a invasão do país até que a restaure um terceiro acontecimento, a Resistência.

Também do fracasso. 1914-18 é um incontestável fracasso, e em primeiro lugar, francês. Além de 1'45 milião de mortos, 1914-18 desembocou numa segunda carniçaria, mais abominável. O mesmo teria sido que as mulheres lograram o direito a voto em 1918! Que o exército se democratizara, que se planteja-se a questão colonial. Que a igualdade perante a morte se traduzira em igualdade de direitos em todas as colónias! Nada. Pior: a «paz» das nações, a «paz cartaginesa», a paz que «exprimiria o limão até fazer chimpar aas pepitas», a paz que, como dizo Lloyd George, conduziu ao horror.

Compreender, e honrar: honrar a Jaurès, pacifista, mas que escreve L'Armée nouvelle [O novo exército]. Devolver aos fuzilados aos seu lugar, completo, sem mácula, ao lado dos seus camaradas. Reconhecer a Genevoix, que evocou sem igual a morte dos seus camaradas com uma compaixão, uma tenrura e uma força inauditas em Ceux de 14 [Os do 14]. Por último, repensar Europa, é um momento de tensão e de egoísmo, passar da amizade à fraternidade franco-alemã. «O que fizemos é mais do que se podia pedir aos homens -diz Maurice Genevoix- e nós fizemo-lo». Porque?
 

Notas del t. de SP:

[1] Aristide Briand (1862-1932), político republicano socialista e adalide e precursor da cooperação e a unidade europeias, foi primeiro ministro de França em seis ocasiões entre 1909 e 1929. Contribuiu à consolidação da Sociedade de Nações através do Pacto de Locarno e o Pacto Briand-Kellogg. Em 1926 recibiu el Prémio Nobel de la Paz, compartilhado com o seu colega alemão Gustav Stresemann. Wilhelm Julius Foerster, (1832-1921), importante astrónomo alemão e pacifista convencido, assinou em 1914 com Einstein o Aufruf an die Europäer, manifesto contra a guerra.  

[2] Jules Guesde (1845-1922), socialista fundador do Partido Operário Francês em 1880 junto a Paul Lafargue, opus-se à participação dos socialistas em governos burgueses franceses, em contra do critério de Jaurès. Ironicamente, converter-se-ia em ministro de Estado durante a Primeira Guerra Mundial, acabando en posições nacionalistas. Maurice Barrès (1862-1923), notável escritor nacionalista e conservador, presidiu as ligas patrióticas.  

[3] Na cima de Les Éparges, lugar da região de Lorena, produziram-se sangrentos combates entre 1914-15. A batalla de Verdum, entre fevereiro e dezembro de 1916, foi a mais longa da Primeira Guerra Mundial e a segunda mais mortífera depois do Somme. A ofensiva do Caminho de las Damas, ou Chemin des Dames, em 1917, lançada pelo general Robert Nivelle, intentou romper infrutuosamente as linhas alemãs em abril de 1917 a um preço altíssimo em vidas humanas.

[4] “Gueules cassées” (“bocas rotas”) era a alcunha que se dava aos soldados que recibiram horríveis feridas que lhes deformaram ou mutilado o rostro e a cabeça, símbolo do espanto e sofrimento causado pela guerra. Na pós-guerra chegaram a publicar-se livros de fotografias que mostravam tanto a gravidade das feridas causadas pelas novas armas como o avanço das ténicas cirúrgicas, protésicas e de reconstrução.

[5] Maurice Genevoix (1890-1980), romancista francés popular pelas suas obras camponesas, foi gravemente ferido nos combates de Les Éparges e ficou inválido da mão esquerda. Em Ceux de 1914 recolheu as suas lembranças da guerra; Henri Barbusse (1873-1935) publicou em 1916 Le feu (O fogo), uma das narrações mais impressionantes sobre o conflito. Próximo aos bolcheviques, ingressou em 1923 no Partido Comunista Francés e finou em Moscovo como entusiasta estalinista; Louis Pergaud (1882-1915), homem de inicial vocação científica, anticlerical e antimilitarista, escritor de ambiente rural e realista conhecido pelas suas fábulas de animais e por esse clásico juvenil que é A guerra dos botões, morreu trás ser ferido nos combates de Woëvre, na Lorena; o seu cadáver nunca foi identificado; Roland Dorgelés (1885-1973), jornalista, escritor satírico e romancista, combateu em diversas batalhas e foi condecorado com a Cruz de Guerra. Publicou em 1919 Les Croix de bois (As cruzes de madeira), o seu romance sobre as suas experiencias bélicas; Blaise Cendrars (1887-1961), alcunha de Frédéric-Louis Sauser, escritor suíço de vanguarda naturalizado francês em 1916, famoso pelas obras de poesía e prosa como Prosa do transiberiano; enrolado na Legião Extrangeira, perdeu o braço esquerdo nos combates da Champanha em 1915  Por último, o escritor alemão Erich Maria Remarque (1898-1970), foi autor de Im Westen nichts neues (Sem novidade na frente), editada en 1929 e sem dúvida o romance mais célebre e clamorosamente antibelicista da Primeira Guerra Mundial. Profundamente odiado pelos nazis, que queimaram os seus libros, Remarque emigrou em 1932 a Suíça e fugiu aos Estados Unidos em 1939.


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