09/03/2014

Soltos (I): Sobre a crise da II Restauração bourbónica e o chamado "conflito territorial"

Antoni Domènech. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por nós.

Vários amigos, colegas ou colegas de vida política com os que tenho intercâmbios epistolares mais ou menos regulares e quase sempre divertidos sobre assuntos muito dispares me convidaram desde faz tempo a converter em artigos para SinPermiso o conteúdo de alguns desses intercâmbios. Sempre chocou até agora esse convite com certa preguiça que, em matéria publicística, nunca fui capaz de vencer. Padeço ademais -como bem observa um desses amigos- do trasnoitado sesgo do pesquisador para o que as coisas que não estão pensadas, se não até o final, sim ao menos cabalmente, devem se deixar cautelosamente ad acta e em nenhum caso se fazer públicas. Nesta secção de Soltos tratarei -com periodicidade irregular- de vencer ambos obstáculos, a minha preguiça e o meu sesgo: veremos o que dura o empenho. Incorporarei na cada entrega material epistolar disperso -"solto"-, quase tal qual foi escrito no seu momento. Quando seja possível e as circunstâncias o aconselhem, mencionarei pelos seus nomes aos destinatários originais. Um "solto", já o diz o dicionário, "não está colado ou unido de maneira compacta", "não está atado nem encerrado", "está separado de outras coisas com as quais forma um conjunto" e "expressa-se com desenvoltura". Esta primeira entrega de Soltos é uma reflexão sobre a crise da Segunda Restauração borbónica. Recicla material procedente de intercâmbios epistolares recentes, sobretudo com Miguel Riera, com Gustavo Búster, com Daniel Raventós e com o meu jovem amigo Àngel Ferrero. Antoni Domènech



I Cinco dimensões da crise da Segunda Restauração borbónica

Muitos somam-se agora à tese da crise sistémica da Monarquia de 1978. Diria-se que só se negam redondamente a admitir quem construíram as suas carreiras académicas ou publicísticas (ou mais frequentemente, ambas coisas) como apologetas da Transição e carecem já dos reflexos oportunos -ou da bússola oportunista- para a reciclagem.

Mas que quer se dizer com isso da crise da Segunda Restauração bourbónica? Parece-me útil atender a cinco dimensões dessa crise.

1.- A primeira é a perceção geral de que o mais valioso da Constituição do 78, a promessa de configuração de Espanha como um Estado Social e Democrático de Direito, não só não pode ser cabalmente honrada: essa foi a experiência de três décadas longas de construção de um medíocre "Estado de medioestar" no capitalismo oligopólico de amiguetes politicamente promíscuos afiançado na Transição. Senão que está agora mesmo em via de ser expressa e solenemente desonrada: não podem entender de outra forma as suicidas políticas económicas procíclicas de austeridade e consolidação fiscal e, especialmente, a reforma express da Constituição (artigo 135) pactuada em um plisplás em agosto de 2011 pelos dois partidos dinásticos (PP e PSOE) a fim de dar primazia absoluta ao pagamento da dívida acima de qualquer outra consideração.

2.- A segunda é a perceção, também geral, se não me engano, da submissão das elites políticas da II Restauração bourbónica -e assinaladamente dos dois partidos dinásticos-, não já a espúrios e bandeiriços interesses económico-políticos zafrados no capitalismo oligopólico de amiguetes politicamente promiscuos espanhol, senão a poderes foráneos politicamente opacos e alheios a qualquer confronto democrático (o telefonema "Troika" é só o símbolo): a ninguém se lhe oculta que a reforma express do artigo 135 foi, de um ou outro modo, imposta por esses poderes. Os parlamentares do PP e do PSOE que votaram a favor dessa reforma se situaram em uma posição parecida à dos parlamentares da III República francesa que, com a melhor das consciências, votaram em 1940 os poderes excecionais para o marechal Pétain. Se em algum dia saímos desta, não resultaria demasiado surpreendente que se procedesse como fez a IV República francesa depois da Libertação: que se tratasse a esses parlamentares como réus de um delito de alta traição e, quando menos, se lhes inabilitara politicamente de por vida.

Por certo, que a retórica contra a alta traição aos interesses nacionais por parte da Monarquia (e das forças políticas dinásticas) foi central na II República espanhola. Desde o princípio. Pela Lei de 26 de novembro de 1931, os Cortes Constituintes republicanas declararam a Alfonso XIII culpado desse delito:

"A todos os que a presente virem e entenderem, saibam: Que os Cortes Constituintes, em funções de Soberania Nacional, aprovaram a ata acusatória contra dom Alfonso de Borbón e Habsburgo-Lorena, ditando o seguinte:
"Os Cortes Constituintes declaram culpado de alta traição, como fórmula jurídica que resume todos os delitos da ata acusatoria, ao que foi rei de Espanha, quem, exercitando os poderes do seu magistratura contra a Constituição do Estado, cometeu a mais criminosa violação da ordem jurídica do país, e, na sua consequência, o Tribunal soberano da nação declara solenemente fora da lei a dom Alfonso de Borbón e Habsburgo-Lorena. Privado da paz jurídica, qualquer cidadão espanhol poderá prender a sua pessoa se penetrasse em território nacional."

3.- A terceira dimensão atendível da crise política tem que ver com a repetição, na II Restauração borbónica, de um fator que foi determinante na crise da I Restauração, e é a saber: que a manifesta incapacidade da Monarquia para gerir de maneira minimamente satisfatória a localização de Espanha no concerto internacional -o que foi patente a partir de 1898- fez mais visível e acentuou e ainda agravou a sua incapacidade para articular de modo minimamente satisfatório a unidade nacional de um país evidente e complicadamente plurinacional.

É assaz sabido que o "nacionalismo" catalão e o vascão são em boa medida filhos da catástrofe do 98. ("Nacionalismo", dito seja de passagem, é um neologismo -de origem francês- que se pôs em circulação internacional, com um significado bastante preciso, no último quarto do século XIX, não antes; agora é uma palavra que, como "populismo" -outro revelador neologismo da mesma época-, e a falta de maiores precisões -há uma pequena indústria publicística e académica dedicada ao oportunista e rendível exercício escolástico de procurar-lhe pseudofilosóficamente os três pés a estes gatos agora mais ou menos relatórios-, pode chegar a significar quase qualquer coisa.)

Talvez é menos recordado que na dramática crise de outubro de 1934, quando o Presidente mártir Companys se avilantou a proclamar unilateralmente a República catalã independente, o fez -pense-se o que se queira da oportunidade política da iniciativa- com umas palavras, Deus perdoe-me!, lealmente espanholas: denunciando a traição à República das forças da direita "monarquizantes e fascistas" e como parte de uma ação democrática fraternal do conjunto dos povos de Espanha:

"Catalães: As forças monarquizantes e fascistas que de um tempo a esta parte pretendem trair à República, conseguiram o seu objetivo e assaltaram o Poder.

Os partidos e os homens que fizeram públicas manifestações contra as minguadas liberdades da nossa terra, os núcleos políticos que pregam constantemente o ódio e a guerra a Catalunya, constituem hoje o suporte das atuais instituições (...)

Todas as forças autenticamente republicanas de Espanha e os setores sociais mais avançados, sem distinção nem exceção, se levantaram em armas contra a audaz tentativa fascista.

A Catalunya liberal, democrata e republicana, não pode estar ausente do protesto que triunfa por todo o país, nem pode silenciar a sua voz de solidariedade com os irmãos que nas terras hispânicas lutam até morrer, pela liberdade e o direito. Catalunya enarbola a sua bandeira e lume a todos ao cumprimento do dever e à obediência absoluta ao Governo da Generalidade que desde este momento rompe toda o relacionamento com as instituições falseadas. (...)

O Governo de Catalunya estará em todo momento em contacto com o povo. Aspiramos a estabelecer em Catalunya o reduto indestrutível das essências da República.
" [1]

4.- A quarta dimensão da crise da Monarquia, em mudança, tem que ver, não com similitudes, senão com uma diferença específica. Pode talvez  se expressar de modo sumário assim: a diferença da I Restauração, que instituiu uma monarquia meramente constitucional (na que, por tanto, o Rei era um poder do Estado, com capacidade para nomear chefe de gabinete com independência das maiorias ou minorias parlamentares), a II Restauração instituiu uma monarquia parlamentar, na que o Rei não é já um "poder do Estado" (apesar da ara anomalia de conservar a jefatura suprema das forças armadas!), senão só um "órgão do Estado", e as Cortes atuais sim podem derrubar a um governo colocado em minoria parlamentar com independência da vontade Real. Em outras palavras: em uma monarquia não meramente constitucional, senão plenamente parlamentar como a atual, o monarca é teoricamente pouco mais que uma figura decorativa, em princípio de todo ponto irrelevante politicamente. Essa é a presunção. Anomalias constitucionais aparte, nunca foi assim, claro está.

Mas o caso é que há agora -é evidente. uma perceção generalizada de que, bem longe dessa presunção, o Rei e a Casa Real foram atores de primeira ordem na economia política da Transição, isto é, no regime de capitalismo oligopólico de amiguetes politicamente promiscuos afianzado na Espanha das quatro últimas décadas. Não é que não tivesse rebosantes provas disso, desde o papel jogado pela Coroa o 23 de fevereiro de 1981 (o golpe de Estado frustrado mais bem sucedido politicamente da história), até as amizades e os negócios perigosos do Bourbom (começando por Colón de Carvajal). Mas esse tipo de regime capitalista de rentismo parasita politicamente amparado e publicamente subvencionado não só está, como é notório, em graves apuros, senão que a sua catastrófica natureza se fez patentemente visível com o estourido da crise capitalista mundial em 2008: para percatar-se, basta com jogar um vistazo à copiosa correspondência eletrónica de Miguel Blesa (o presidente de Caixa Madrid) que terminou por filtrar-se dos julgados à imprensa; com a boca literalmente aberta fica um a lendo. Os pontos de soldadura que mantinham unidas às elites político-económicas desse regime estão oxidados: a rutura do ominoso pacto de silêncio que, in rebus Monarchia, mantinham os grandes meios de comunicação estabelecidos é seguramente a manifestação mais visível disso. O caso de Urdangarín e a Infanta Cristina não é senão o mais espetacularmente chamativo de um rimero de espetaculares escândalos que não deixaram de salpicar à Casa Real nos últimos anos. Na memória de todos estão.

5.- Menção aparte merece ainda uma quinta dimensão da crise do sistema político do 78: a que tem que ver com a natureza e a qualidade da representação política. A representação política de determinados interesses sociais, económicos ou cidadãos entendeu-se inveteradamente como um relacionamento de agência fiduciaria: os representantes políticos foram normativamente conceptualizados desde tempos inmemoriales -e desde depois na teoria moderna da representação política- como mandatários, enquanto agentes (fideicomisarios) do mandante, do principal (fideicomitente) que são os cidadãos que lhes encarregam a representação dos seus interesses. A tradição iusfilosófica e política da corrente principal, isto é, a republicana (em cuja forma se conformou o grosso do direito público contemporâneo, e señaladamente, o constitucional) entendeu sempre esse relacionamento de agência como superlativamente complicada e perigosa pelas enormes possibilidades de comportamento discricional -pró domo sua- que oferece ao mandatário, ao representante (com a consiguiente traição aos interesses do mandante, dos seus representados). Uma das coisas mais chamativas da evolução do capitalismo nas últimas décadas é a espantosa autonomização dos representantes políticos respecto dos interesses dos seus representados: tenderam a converter-se em agentes que atuam por causa e por conta próprias.

A coisa está no ar para quem tenha antenas. E muitos têm-nas. De aqui o espetacular triunfo publicístico de pseudoteorías de mercadillo de ocasião como a ultimamente famosa tese das "elites políticas extractivas" (voluntariamente ignorante de realidades económicas de fundo, mas citada com entusiasmo por toda a beatería da antipolítica). De aqui também -e isso é mais sério: as modas que arraigan na língua popular quotidiana sempre o são mais que as veleidosamente académicas- o aparecimento em quase todas partes de neologismos que parecem recolher este fenómeno de inaudita promiscuidade entre os atuais políticos profissionais e os interesses granempresariales e financeiros rentistas: em inglês tem-se carimbado o revolving doors, em galego, as "portas giratórias", pantouflage diz-se em francês, e os alemães falam de Drehtüreffekt para referir-se também ao muito comum facto de que as superelites políticas atuais, quando saem da política ativa, ingressam em grande estilo no mundo dos negócios privados transnacionais, e ao revés, desde o mundo dos grandes negócios podem sem maiores trâmites reingresar na política.

Dizer-me-ão que isso talvez não é tão novo. Eu acho que sim o é. Em qualquer caso, o que é inconfundivelmente novo é que os politicastros atuais, pillados in fraganti com as mãos na massa, nem sequer se esfuercen demasiado em condenar o fenómeno, senão que procurem o apresentar como algo natural e até "moderno" (ou, melhor ainda, "pós-moderno"). Ninguém poderia imaginar a De Gaulle, a Churchill, a De Gasperi, a Adenauer, a Kennedy ou a Eisenhower, e não digamos a Willy Brandt, a Olof Palme, a Bruno Kreisky, a Nye Bevan, a Alvaro Cunhal, a Pietro Nenni, a Palmiro Togliatti ou a Enrico Berlinguer em tão penoso trance. Este fenómeno, que é certamente um fenómeno de época e em modo algum privativo do nosso país, atinge no entanto aqui um nível de desfachatez que se compadece muito bem com o putrílago a vista descoberta em que se converteu desde 2008 o capitalismo oligopólico de amiguetes politicamente promiscuos espanhol. Por isso, me atrevo ao incluir também entre as dimensões importantes da nossa específica crise de regime político. Porque eu duvido muito de que pudesse ver na França ou na Alemanha atuais -por limitar-me aos dois países europeus vizinhos que melhor conheço e sigo- um espetáculo tão bochornoso, tão berlanguesco -tão nosso, vá-, como o oferecido, não por um político de segundo ou de terceiro nível, senão nada menos que pelo secretário geral do PSOE em um video recente que também não te deixa sair do assombro:

Aí pode ver-se como, a conta do rimero de antigos altos cargos socialistas -incluídos exministros do governo Zapatero- que entraram no mundo dos negócios (em grandes empresas privadas às que favorecia antes, quando estavam ao comando da política), o valente e valioso publicista da esquerda Pablo Iglesias Turrión põe em apertos ao peso pesado Alfredo Pérez Rubalcaba, e como este, grogui, contra as cordas e a pique de ser noqueado por quem devia ele ter por um peso mosca, trata de fazer como que nem se imuta: "Eu não acho que seja incompatível militar no Partido Socialista e estar em um alto posto em um conselho de administração [...] A gente deixa a política, passam dois anos de incompatibilidade e a partir daí colocam-se onde podem" (http://www.youtube.com/watch?v=OlDzEP4BxvY).

Essa visível degradação da qualidade, da função e ainda da natureza mesma da representação política a que se assiste no Reino de Espanha tem a sua tradução, claro está, no descrédito dos partidos políticos estabelecidos. Por motivos dos que talvez tenha ocasião de discutir em outro dia, a dinâmica da Transição política redundado em e veio a afiançar  -mais ainda que em outros sítios nos que também se observa o fenómeno, que o é de toda uma época- perversos processos de "seleção inversa" dos dirigentes políticos. Isto é, que não se promove aos "melhores" -aos mais honrados, aos mais prontos, aos mais fiéis lhe intérpretes dos interesses e dos sentimentos dos seus mandantes, dos seus eleitores-, senão que costuma se promover aos "piores", aos mais obedientes, aos mais adocenados ou aos mais logreros: como deixou famosamente dito faz muitos anos Alfonso Guerra com a sua proverbial talento truhanesco, "o que se move, não sai na foto". E isso vale para todo o espetro dos partidos estabelecidos, não só para as duas grandes partidos dinásticos; até para Izquierda Unida. Por isso se vêem agora, a direita e esquerda, tantas tentativas de romper e assaltar o que os seus eleitores e as suas bases sociais percebem como um férreo oligopolio político em que se têm encastillado os tidos por medíocres ou ainda corruptos (não poucas vezes com razão). Quem não se faz a ilusão de não ser um mediocre e de poder o fazer melhor, sobretudo entre os intelectuais politizados e os profissionais da palavra? Podem-no fazer melhor, desde o ponto de vista da direita social, Vidal-Quadras e o seu novo partido Vox que Mariano Rajoy e o PP? Eles acham que sim, e eu desconto como seguro que se têm por mais capazes, por mais puros, por mais espabilados que a atual direção do PP. Diga-se o mesmo de Rosa Díez e a sua españolísima UPyD. Após tudo, também não é tão difícil? O que esses movimentos pela direita tenham, ou não, sucesso em ponto a romper o atual oligopolio da representação política partidária dependerá, entre várias outras coisas cruciais, de que encontrem o apoio necessário entre as "gentes de bem", e entre elas, as mais adinheiradas.

Bem mais importa-me, nem que dizer tem, a regeneração da representação partidária das esquerdas. Essa regeneração não depende das "gentes de bem" nem da aristocracia do dinheiro, folga dizê-lo. Depende -deixa-me ser cursi por uma vez. da vontade e a capacidade de autoorganização das suas bases sociais realmente existentes (não das que possam desiderativamente fantasear-se): isto é, depende, potencialmente, do grosso do povo trabalhador tal e como é, incluídas as suas múltiplas organizações políticas, civis e sindicais realmente existentes, gostemos delas mais ou menos. Não há atalhos "constituintes" diretos aqui. Não há "multidão" à que apelar sem mediações. Há classes sociais histórico-institucionalmente configuradas e decantadas O "criacionismo" em política normativa é tão ilusorio como na biologia evolutiva: a história conta. E pesa: por antipático e amargo que resulte o admitir, estamos forçados a mover peça no meio de uma partida que não começámos nós e que, as mais das vezes, não gostamos nada em de a fase em que nos foi dado a seguir; com um pouco de sorte, e atuando com inteligência, prudência, tacto e diligência, pode-se, nos momentos mais graves e comprometidos -eu acho que o presente o é-, evitar o xeque mate. E seguir a partida? Qualquer militante experimentado sabe-o desde sempre.

Despedimento, pois, este ponto com dois conselhos que vêm aqui muito no ponto, um muito velho (do velho Pablo Iglesias, o fundador do PSOE) e outro muito recente (do velho sábio que segue sendo Noam Chomsky).

Aconselhava Pablo Iglesias, fundador do PSOE:
"Para os cargos públicos, elejam a melhore-los e mais capacitados e vigiem-nos como se fossem canallas. Quando um colega se postula para um cargo sem que o promovam as bases, é motivo suficiente para não o eleger".

Aconselha Noam Chomsky:
"Recordem naqueles dias em que as organizações e os movimentos tinham que se construir desde zero. Nunca se viu que comparecesse um líder brilhante dizendo: "Eu vos vou sacar do pântano". Porque estas coisas constroem-se com grandes grupos capazes de elevar a consciência. O mesmo ocorreu com o movimento antibelicista dos anos 60 do século XX: atingiu o seu ponto culminante quando cristalizaram grandes organizações de massas. Por que Canadá tem um sistema de saúde público? Não foi um presente; conseguiu-o a luta dos sindicatos operários." [http://www.chomsky.info/interviews/200907--.htm.]



II Sobre Cataluña e os telefonemas "tensões territoriais" no Reino


Eu acho, como dito, que os telefonemas "tensões territoriais" são um dos elementos da crise da Monarquia do 78. Acho que a terrível depressão económica em que afundaram ao país umas suicidas políticas económicas procíclicas impostas pela Troika e galana e irresponsavelmente aceitadas de consuno pelo bipartidismo dinástico fez calar na opinião pública a ideia de que o sistema político atual é incapaz de defender interesses nacionais elementares. E acho que, como na longa crise da I Restauração, o descrédito público da capacidade da Monarquia borbónica e das forças mansamente dinásticas para localizar decente e creíblemente ao país em um mundo a cada vez mais perigoso e incerto (incluída a União Europeia, exemplo agora mesmo sem igual da triste verdade de que a outra cara da "globalização" é a "balcanização"), voltou a pôr sobre o tapete o inveterado problema da articulação plurinacional dos povos de Espanha.

Todas as forças da esquerda antifranquista (incluído o PSOE de Suresnes!) eram partidárias do direito de autodeterminação, pelo menos de Catalunya, o País Basco e Galiza. A reivindicação desse direito foi sacrificada na Transição por um motivo de dinâmica político-constitucional muito fácil de entender: a Restauração da monarquia arrebatou a todos os povos de Espanha o direito a decidir sobre a forma de Estado. É que a II Restauração começou negando a todos os povos de Espanha o direito de autodeterminação: aos partidos historicamente republicanos que aceitaram isso (como o PSOE ou o PCE), se lhes permitiu se apresentar às primeiras eleições gerais em junho de 1979; os partidos teimosamente republicanos que não o aceitaram, como Esquerra Republicana de Catalunya ou como Esquerda Republicana (o velho partido de Azaña), ficaram ao começo em fora de jogo político. A Constituição de 1978 (como explicou tantas vezes a quem queria lhe ouvir Jordi Solé-Tura, o palestrante constitucional comunista) não podia de nenhum modo admitir o direito de autodeterminação das "nacionalidades", isto é, das diferentes partes com personalidade nacional própria da Espanha plurinacional, pelo singelo motivo de que esse mesmo direito se tinha negado ao tudo, ao conjunto dos povos de Espanha ao lhes furtar o que, em mudança, se ofereceu, por exemplo, ao povo italiano (contra a resolvida vontade do Vaticano e do Departamento de Estado dos EEUU, dito seja de passagem) depois da Libertação antifascista: um referendo Monarquia/República. [2]

A chamada "crise catalã· é agora importante, na minha opinião, por dois motivos.

Primeiro, porque, com independência do resultado, o só feito de que se produzisse uma consulta popular aos catalães sobre como querem viver politicamente seria o final técnico do regime de 1978, romperia um esquema básico da sua dinâmica constitucional. O exercício do direito de autodeterminação por parte dos catalães poria, ademais, imediatamente sobre a areia política o problema desse direito para o conjunto dos povos de Espanha. A direita basca, mais inteligente e perceptiva com frequência que a direita catalã (eterna herdeira do bobarrão ideologema parroquiano de Cambó: "República! Monarquia! Cataluña!"), pôs recentemente o dedo na llaga por boca de Urkullu. O problema atual seria "o sistema monárquico que rege em Espanha", que é "anacrónico": "Tem que ter capacidade por parte da sociedade, no Estado que seja, para eleger ao chefe do Estado desde o que é a expressão da vontade democrática, porque se não cumpre o seu papel tem que ter algum exercício de controlo, de crítica e de poder de substituição."

E segundo, porque o atual empenho catalão no "direito a decidir" não é uma iniciativa das elites políticas. É, ao invés, um grande movimento popular transversal inequivocamente democrático que, queiras que não, conseguiu impor a sua agenda à política estabelecida. Conta, desde depois, com o indisimulado rejeição de umas elites económicas catalãs totalmente imbricadas no capitalismo oligopólico de amiguetes fraguado na Transição, mas também com o respaldo do grosso das bases sociais e civis do antifranquismo histórico, incluídos todos os sindicatos operários, começando pelos dois maioritários (CCOO e UGT). Em um momento de retrocesso e amedrentamiento popular terríveis -que foi da admirável vontade de combate de rua mostrada pelo povo trabalhador grego nos dois ou três primeiros anos da crise?-; em plena ofensiva deconstituinte das classes rectoras contra todas as conquistas sociais e políticas do antifascismo, em Espanha e em toda a Europa, o movimento catalão a favor do "direito a decidir" é pouco menos que um curiosum a contrapelo da conjuntura.

Falta-lhe, sim, acho eu, à esquerda catalã um apelo mais claro, mais rotundo, ao resto de povos irmãos das Españas. Porque, remedando ao Companys de 1934, muito bem poderia se dizer agora: 

"As forças monarquizantes e fascistas que de um tempo a esta parte se desdisseram das promessas democráticas e sociais que, com a boca pequena, se fizeram na Constituição do 78, conseguiram o seu objetivo e assaltaram o Poder.

"Os partidos e os homens que fizeram públicas manifestações contra as minguadas liberdades da nossa terra, os núcleos políticos que pregam constantemente o ódio e a guerra a Cataluña, constituem hoje o suporte das atuais instituições (...)

"Todas as forças autenticamente republicanas de Espanha e os setores sociais mais avançados, sem distinção nem exceção, têm que se levantar contra a audaz tentativa neoliberal deconstituinte e contra as tentativas de afogar aos povos e aos coletivos que exigem o direito a decidir os seus destinos e resistir às vergonhosas imposições antidemocráticas foráneas às que se têm pregado em Espanha os partidos dinásticos e a pior direita política catalã.

"A Cataluña democrata e republicana não estará ausente do protesto que tem que triunfar por todo o país, nem silenciará a sua voz de solidariedade com os irmãos que nas terras hispânicas lutem determinadamente pela liberdade e o direito.

"Espanhóis: Uma vez mais, a Monarquia revelou-se tragicamente incapaz de conservar a unidade plurinacional dos povos de Espanha. Saibam que nós aspiramos a estabelecer em Catalunya o reduto indestructível das essências da República."

E que quereis? Eu faço-me a ilusão de que uma proclama assim da esquerda catalã ajudaria o seu a acordar a uma esquerda hispânica adoentada por décadas de sumisão à miséria dinástica tardoespanholista.

Notas:
[1] Alocución de Lluís Companys, 6 de outubro de 1934. Recolha em: Manuel Tuñón de Lara, La España del siglo XX (1931-1936), Vol. 2, pág. 442 (Laia, Barcelona, 1977).

[2] A orientação política do Departamento de Estado (Foster Dulles) para a imediata pós-guerra europeia era politicamente ultraconservadora: na França, por exemplo, procurou tirar de em médio a De Gaulle e ao grosso da Resistência antifascista francesa, e entender com o Marechal Pétain e as autoridades capitulacionistas de Vichy.

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