04/03/2014

Sobre o que Jordi Évole não se atreve a brincar: a Transição espanhola através das suas ficções

Ernesto Castro. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por nós. Ernesto Castro é um filósofo madrileno que colabora habitualmente com SinPermiso em assuntos de crítica político-cultural.
 
 

É verdadeiro que a função política de uma boa ficção estética consiste em alargar o campo do pensável, dois passos por trás do sentido comum e um por adiante da história, fazendo explícitos os nossos preconceitos inartelhados para que o trabalho empírico posterior se encarregue dos ilustrar ou refutá-los. Podemos corrigir os prognósticos que contêm filmes como Regresso ao futuro (Steven Spielberg, 1985) e ao mesmo tempo abraçar as suspeitas a respeito do estancamento tecnológico do neoliberalismo: «Prometeram-me colónias em Marte. Em troca, tenho Facebook», titulava a revista de tecnologia do MIT; a figura de um 2012 onde Martin McFluy pode montar um patinete flutuante sobre as águas permite fechar as bocas de quem brindam sem trégua por Internet e o telefonema terceiro revolução industrial. [1]

Mas também há ficções que encobrem a realidade maquilhando ou embelezando certas feições da verdade oficial, lhes tirando aos alienados a sua parcela legítima de suspeita -que sejas um paranoico não implica que não te estejam a perseguir; Kurt Cobain dixit- quando não deformando o evidente até o voltar irreconhecível. Os sicilianos utilizaram durante décadas as novelas sobre a Máfia para negar a sua existência, alegando que era uma licença poética de Leonardo Sciascia ou um invento dos comunistas para desacreditar à Democracia Cristã (palavras textuais do arcebispo de Palermo). Joe Colombo, cabeça de família mafiosa em Nova York, pôde fugir da polícia fundando une-a Italoamericana dos Direitos Civis, entre cujos fins estava denunciar o estereotipo holliwoodiense do gangster pizzero (uma realidade empírica durante a época dourada da heroína siciliana que finalizou com o Pizza Connection Trial) e pressionar à produtora de O Padrinho para que "Cosa Nostra" não aparecesse mencionada explicitamente no grande ecrã.

Michael Corleone quiçá faz parte de uma estirpe diferente, junto a Cristo ou o jovem Werther, a das personagens imaginários que geram mudanças históricos, pois a trilogia de Francis Ford Coppola se achou em (quase) todas as redadas antimáfia levadas a cabo desde a estreia,[2] mas muito me temo que Operação Palace, o camelo de Jordi Évole sobre o 23-F o vendendo como um filme de Garci onde todos os partidos estavam compaginados para salvar a legitimidade monárquico-constitucional, pertence à segunda categoria de ficção politicamente útil ou eficaz, sendo este programa de televisão -por tanto- cúmplice ignaro da Restauração Borbónica Setentaeoitesca.


A receção de Operação Palace pode dividir-se em três apartados:

(i) os que criticam a declinante profissionalismo jornalístico de Salvados, o programa de Jordi Évole, talvez esquecendo que este cavaleiro iniciou as suas andanças mediáticas como boicoteador espontâneo de pacotilha no late night show de Buenafuente, que a etiqueta do Follonero não lha tira ninguém e que a Sexta faz parte de Atresmedia Corporación, unida em casal à verdade até que o share de espetadores os separe, e cujo affaire adúltero com os humoristas de esquerdas (Grande Wyoming e companhia: herdeiros da derrota política socialista convertida em complacente brincadeira de bar) será um relacionamento duradouro mas nunca séria;

(ii) os que prometem, com tremendos choques filosóficos, monografias sobre Hans Christian Andersen ou Orson Welles quando todos sabemos qual é a diferença entre gerar psicose coletiva e advertir o final de um chiste por Twitter («Há que ver o finaaaaal», disse o bromista ante as primeiras expressões de incredulidade), como se não tivesse distinção entre assinalar a desnudez do imperador e travestir-lhe como alguém que tolera a dissidência simbólica ou o humor, quando aí estão os números sequestrados da Quinta-feira e os meninos em delegacia por caçoar com o fogo e a efígie da sua Majestade no mesmo jogo;

(iii) os que pensam que uma graça dita muitas vezes devém em realidade empírica, pois a gente começa a avistar OVNIs depois de ter visto Mars Attacks! (Tim Burton, 1993) e está bem que a filosofia da suspeita saia do guetto da extrema esquerda, embora seja primeiro como farsa e depois como tragédia (histórica e enfatizada), mas antes vejamos quem participaram gostosamente na inocentada a dotando de verosimilhança (que pintava neste cambalache supostamente antimonárquico Luis María Anson, defensor dos bourbons no exílio, presidente da agência EFE durante a Transição, diretor do ABC até 1997 e fundador então de La Razão?), não vá ser que a sociedade bourbónica (e as suas oficiosos inimigos) se estejam a rir de nós, não na nossa companhia.

Dado este clima de opinião, rir-se em público de Beatriz Talegón, secretária geral de certa organização social-democrata, por engolir até o fundo a novatada mediática e acrescentar que o tinha lido antes em sítios sérios, não só reflete um sentimento de superioridade algo paifoco e aparvado tendo em conta o número de chios apagados a touro passado e a própria verosimilhança do mockumentary; Twitter é um local onde os covardes e os ressentidos fazem troça dos errados mas audazes, um desporto bastante popular neste Reino, como quando um país de analfabetos funcionais em língua inglesa assinalou com o dedo a Ana Botella, que no do relaxing cup sim nos representa: em boca aberta seguro que entram moscas. Total, que Beatriz Talegón será uma boca aberta e oxalá esta vexação no meio da praça do povo sirva como aviso para futuros consumidores apressados de informação: tudo é falso até que se demonstre o contrário. Mas há que reconhecer que, ainda sendo o bode expiatório do nervosismo e a impaciência que temos os derrotados da história de Espanha de que nos dêem a razão em chave de conspiração institucional sobre a História Recente de Espanha, esta flor da cerejeira tuitero tinha bem apontada a bibliografia.

Tanto monta que Soberanos y intervenidos de Joan Garcés, o volume citado -e injuriado- no momento do batacaço talegónico, não mencione complô interno algum entre os partidos espanhóis, mais que nada porque o autor foi sério (aí tem razão a nossa secretária geral) e trabalhou com as fontes de arquivo disponíveis em Washington, já que o seu objetivo inicial era escrever sobre o golpe de Estado contra Salvador Allende, rastreando o grau de envolvimento dos serviços secretos ianquis, e foi então quando destapou o marrão sobre a ingerência dos Estados Unidos em Espanha e Portugal.  Soberanos y intervenidos, por resumi-lo em um slogan que caiba em Twitter, é uma versão melhorada de wikileaks, só que cingido aos acontecimentos na América Latina e a Península Ibéria, onde o principal interlocutor são os agentes contáveis em ultramar do império fazendo entrar em razão (de Estado) às diferentes fações políticas hispanas -uma a uma- enquanto margina os "irrazonáveis" e domestica aos adversários no contexto da Guerra Fria. Oxalá os nossos políticos fossem o suficiente originais como para converter o nosso destino como país em um filme com denominação de origem e nominação aos Goya incluída.

Mais que de complô, estamos a falar de sessões intensivas de tirititeiro.

O que Operação Palace não conta (e também não ficcionaliza) é que dá igual se a Casa Real ou os partidos do Regime tiveram notícia prévia ou participaram ativamente na pronúncia, porque os militares lhes consideraram cúmplices e borregos, distintos colaboradores das Forças Armadas, e do mesmo modo que a ignorância da lei não exime do seu cumprimento, se não estás ao tanto do assalto à democracia chamado Transição Espanhola, que conta contigo como convidado de pedra de semelhante transformação gatopardiana, é teu problema não fazer nada para o desmentir (e também o nosso por assistir passivos ao evento). O marrão, como constata o quarto capítulo de Soberanos y intervenidos, salpica por todas partes. Especialmente sobre a bancada do PSOE: segundo disse ante o Juiz Instrutor, a Tejero indicam-lhe dois dias antes do passage a l'acte

«que tudo vai sair bem, que os socialistas não vão dar a menor guerra, já que se ouvem uma frase similar a "o elefante branco está aqui" ou "chegou", aceitarão o que proponha o que o diz. Os socialistas do Congresso são mais bem social-democratas e vêem também a necessidade de um golpe de temão.»

O que Beatriz Talegón não tuitea é que Tejero e Milans se saíram um poquito do papel, como atores do reparto que improvisam à tremenda sacando os tanques à rua e disparando sobre o teto do Congresso, sonhando com governos pretorianos, quando todos estavam pelo labor de manter uma Carta Magna que concedia (e concede) a unidade estatal ao silêncio dos quartéis; os golpistas espanhóis criam um precedente de vitória na derrota que repetir-se-á na transição da Rússia para o capitalismo, gerar uma crise fictícia que terão de resolver os comissários oficiais do povo, mas contra toda broma e falso documentário, não precisaram guionização pois tinham à geral Armada como apontador e os seus diálogos de surdos estavam escritos segundo uma conjunção atlântico-socialista que tem a sua origem em vários anos atrás e que parece apontar em uma direção claríssima:  em 1978 soube-se que os integrantes da Operação Galáxia previam fazer com o presidente do Governo, à sazão o antiianqui Adolfo Suarez, [3] procurando propiciar um governo de salvação nacional mediante o recurso ao artigo oitavo da Constituição; em fevereiro de 1980, um semanário ultradereitista madrileno, El Heraldo Español, titulava "O plano De Gaulle... ao revés", advertindo que Armada presidiria um governo de coligação auspiciado por Felipe González; em julho desse mesmo ano, Suárez comenta ante a imprensa peruana «que conhecia a iniciativa do PSOE de situar a um militar à frente do Executivo»; o 6 de novembro, contravindo as sugestões de Willy Brandt e a resolução do Comité Federal contra um governo coligado, um deputado socialista por Madrid anuncia que «é lógico pensar que em Espanha pode ter Governo de coligação [com González] até o ano 2000»; em um dia depois, El País anuncia que dentro da cúpula do PSOE «existe a sensação de que o estamento militar -pese à sua demonstrada disciplina- não suportará muito tempo a atual escalada terrorista sem que se produza algum tipo de intervenção nos assuntos da vida pública, que inclusive poderia se justificar constitucionalmente». E até aqui posso ler.

Em soma, sobre o que Jordi Évole não se atreve a caçoar é a linha de pontos que os pesquisadores do futuro terão de traçar entre a mentalidade atlântica dos governos do PSOE, cujas incursões paramilitares merecem especial atenção, e os estranhos acontecimentos que tiveram ocasião durante a primavera de 1981, coincidindo com as primeiras eleições francesas com presença dos comunistas no bando eleitoralmente vencedor; factos sobre os quais somente oferecemos um aperitivo documental, dada a falta de transparência dos nossos governos, tendo sempre em conta que -no caso da Transição Espanhola- a alternativa então não foi democracia ou ditadura senão, no meio da Guerra Fria, militarismo atlântico ou só peninsular.



NOTAS: 
[1] Os experientes debatem sobre os motivos da deceleração tecnológica que sofremos desde mediados do século passado, quando se puseram as bases das principais aplicações práticas que desenvolveram as empresas desde então, parasitando-as certamente; de modo que uns culpam a escassa iniciativa do Estado em matéria de investigação e desenvolvimento, enquanto outros confiam nos parabens da concorrência privada; mas o que parece meridiano, em termos agregados, é que a incidência do mundo digital na economia, por muitos efeitos culturais que tenha, não pode se comparar à Segunda Revolução Industrial -a mais crucial desde o Neolítico- em matérias como aumentar a produtividade do trabalho ou a qualidade (e a extensão) da vida humana. (Cf. Robert J. Gordon, "Is U.S. Economic Growth Over? Faltering Innovation Confronts the Six Headwinds", National Bureau of Economic Research, Cambridge, Mass, Working Paper 18315.) 
 
[2] Uma fita que nunca aparece nas redadas sobre as tampas dos mafiosos é Um dos nossos (Martin Scorsese, 1990) embora -segundo dizem- retrata com maior precisão o mundo do hampa; mas os criminosos também são humanos, e preferem se evadir vendo um retrato idealizado e complacente de si mesmos, supostos cavaleiros de família e valores, em local de voltar sobre a crua realidade da sua existência, mais próxima a um Joe Pesci matando por diversão ou a um Ray Liotta adúltero e posto até acima de droga. (Cf. Iñigo Domínguez, Crónicas de la máfia, Livros del KO, Madrid, 2014.) 
 
[3] O sucessor de Adolfo Suarez em UCD, Leopoldo Calvo Sotelo, não tem dúvidas sobre o sentido do relevo: «Para mim estava claro desde 1977 que tinha que incorporar a Espanha na Comunidade Europeia e a Aliança Atlântica. Via-o tão claro Adolfo Suárez? Provavelmente não. [...] voltava insensivelmente às coordenadas árabes e hispanoamericanas da política internacional, e descurava a transição exterior. Quanto a Aliança, apontava em Suárez um verdadeiro antiamericanismo. Corrigir e precisar esse rumo foi um dos meus primeiros propósitos.»

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