03/03/2014

Sobre o trabalho académico, o assalto neoliberal às universidades e como deveria ser a educação superior

Noam Chomsky. Artigo tirado de SinPermiso e traduzido por nós. Tradução para SinPermiso de Miguel Puñoenrostro.
 
 

O que segue é a tradução castelhana de uma transcrição editada em inglês de um conjunto de observações realizadas por Noam Chomsky via Skype o passado 4 de fevereiro para uma reunião de filiados e simpatizantes do sindicato universitário sócio à União de Trabalhadores do Aço (Adjunct Faculty Association of the United Steelworkers) em Pittsburgh, PA. As manifestações do professor Chomsky produziram-se em resposta a perguntas de Robin  Clarke, Adam Davis, David Hoinski, Maria Somma, Robin J. Sowards, Matthew Ussia e Joshua Zelesnick. A transcrição escrita das respostas orais realizou-a Robin J. Sowards e a edição e redação correu a cargo do próprio Noam Chomsky. A tradução castelhana do texto inglês realizou-a para www.sinpermiso.info Mínima Estrela.

Sobre a contratação temporária de professores e o desaparecimento da carreira académica

Isso é parte do modelo de negócio. É o mesmo que a contratação de temporais na indústria ou o que os de Wall Mart chamam "sócios", empregados sem direitos sociais nem abrangência sanitária ou de desemprego, a fim de reduzir custos laborais e incrementar o servilismo laboral. Quando as universidades se convertem em empresas, como veio ocorrendo assaz sistematicamente durante a última geração como parte de um assalto neoliberal geral à população, o seu modelo de negócio entranha que o que importa é a linha de base. Os proprietários efetivos são os fiduciários (ou a legislatura, no caso das universidades públicas dos estados federados), e o que querem manter os custos baixos e se assegurar de que o pessoal laboral é dócil e obediente. E em substância, as formas de fazer isso são os temporais. Bem como a contratação de trabalhadores temporários disparou-se no período neoliberal, na universidade estamos a assistir ao mesmo fenómeno. A ideia é dividir à sociedade em dois grupos. A um dos grupos se lhe chama às vezes "plutonomia" (uma palavra usada por Citibank quando fazia publicidade entre os seus investidores sobre a melhor forma de investir fundos), o setor no topo de uma riqueza global mas concentrada sobretudo em sítios como os EEUU. O outro grupo, o resto da população, é um "precariado", gentes que vivem uma existência precária.

Essa ideia assoma de vez em quando de forma aberta. Assim, por exemplo, quando Alan Greenspan testemunhou ante o Congresso em 1997 sobre as maravilhas da economia que estava a dirigir, disse redondamente que uma das bases do seu sucesso económico era que estava a impor o que ele mesmo chamou "uma maior insegurança nos trabalhadores". Se os trabalhadores estão mais inseguros, isso é muito "são" para a sociedade, porque se os trabalhadores estão inseguros, não exigirão aumentos salariais, não irão à greve, não reclamarão direitos sociais: servirão aos seus amos tão donosa como passivamente. E isso é ótimo para a saúde económica das grandes empresas. No seu dia, a todo mundo lhe pareceu muito razoável o comentário de Greenspan, a julgar pela falta de reações e os aplausos registados. Bom, pois transfiram isso às universidades: como conseguir uma maior "insegurança" dos trabalhadores? Essencialmente, não lhes garantindo o emprego, mantendo à gente pendente de um fio que pode cortar em qualquer momento, de maneira que melhor que estejam com a boca fechada, aceitem salários ínfimos e façam o seu trabalho; e se por ventura permite-se-lhes servir baixo tão miseráveis condições durante um ano mais, que se dêem com um canto nos dentes e não peça mais. Essa é a maneira como se conseguem sociedades eficientes e sãs desde o ponto de vista das empresas. E na medida em que as universidades avançam pela via de um modelo de negócio empresarial, a precariedade é exatamente o que se impõe. E mais que veremos no vindouro.

Esse é uma feição, mas outras feições que resultam também familiares na indústria privada: assinaladamente, o aumento de estratos administrativos e burocráticos. Se tens que controlar a gente, tens que dispor de uma força administrativa que o faça. Assim, na indústria norte-americana mais que em qualquer outra parte, se acumula estrato administrativo depois de estrato administrativo: uma sorte de esbanjamento económico, mas útil para o controlo e a dominação. E o mesmo vale para as universidades. Nos passados 30 0 40 anos registou-se um aumento drástico na proporção do pessoal administrativo em relacionamento o professorado e os estudantes das faculdades: professorado e estudantes mantiveram a proporção entre eles, mas a proporção de administrativos se disparou. Um conhecido sociólogo, Benjamin Ginsberg, escreveu um muito bom livro titulado The Fall of the Faculty: The Rise of the All-Administrative University and Why It Matters (Oxford University Press, 2011), no que se descreve com detalhe o estilo empresarial de administração e níveis burocráticos multiplicados. Nem que dizer tem, com administradores profissionais mais que bem pagos: os decanos, por exemplo, que antes costumavam membros da faculdade que deixavam o labor docente para servir como gestores com a ideia de reintegrar à faculdade ao cabo de uns anos. Agora são todos profissionais, que têm que contratar a vicedecanos, secretários, etc., etc., toda a proliferação de estrutura que vai com os administradores. Todo isso é outra feição do modelo empresarial.

Mas servir-se de trabalho barato -e vulnerável- é uma prática de negócio que se remonta aos inícios mesmos da empresa privada, e os sindicatos nasceram respondendo a isso. Nas universidades, trabalho barato, vulnerável, significa ajudantes e estudantes graduados. Os estudantes graduados são ainda mais vulneráveis, é escusado dizê-lo. A ideia é transferir a instrução a trabalhadores precários, o que melhora a disciplina e o controlo, mas também permite a transferência de fundos a outros fins muito diferentes da educação. Os custos, claro está, pagam-nos os estudantes e as gentes que se vêem arrastadas a esses postos de trabalho vulneráveis. Mas é um rasgo típico de uma sociedade dirigida pela mentalidade empresarial transferir os custos à gente. Os economistas cooperam tacitamente nisso. Assim, por exemplo, imaginem que descobrem um erro na sua conta corrente e chamam ao banco para tratar do emendar. Bom, já sabem vocês o que passa. Você chama-os por telefone, e lhe sai um atendedor de chamadas com uma mensagem gravada que lhe diz: "Queremos-lhe muito, e aí tem um menu". Talvez lhe menu oferecido contém o que você procura, talvez não. Se acerta a eleger a opção oferecida correta, o que escuta a seguir é uma musiquinha, e de momento em momento uma voz que lhe diz: "Faz favor, não se retire, estamos encantados de atendê-lo", e assim pelo estilo. Ao final, decorrido um bom tempo, uma voz humana à que poder-lhe propor uma breve questão. A isso os economistas lhe chamam "eficiência". Com medidas económicas, esse sistema reduz os custos laborais do banco; folga dizer que lhe carrega os custos a você, e esses custos têm de multiplicar pelo número de utentes, que pode ser enorme: mas isso não conta como custo no cálculo económico. E se olham vocês como funciona a sociedade, encontram isso por toda a parte. Do mesmo modo, a universidade impõe custos aos estudantes e a um pessoal docente que, ademais e o ter apartado da carreira académica, se lhe mantém em uma condição que garante um porvir sem segurança. Todo isso resulta perfeitamente natural nos modelos de negócio empresariais. É nefasto para a educação, mas o seu objetivo não é a educação.

 Efetivamente, se jogamos uma mirada mais retrospetiva, a coisa revela-se mais profunda ainda. Quando tudo isto começou, a começos dos 70, suscitava muita preocupação em todo o espetro político estabelecido o ativismo dos 60, comummente conhecidos como "a época das desordens". Foi uma "época de desordens" porque o país estava a civilizar-se [com as lutas pelos direitos civis], e isso sempre é perigoso. A gente estava-se politizando e comprometia-se com a conquista de direitos para os grupos chamados "de interesses especiais": as mulheres, os trabalhadores, os camponeses, os jovens, os velhos, etc. Isso levou a uma grave reação, conduzida de forma praticamente aberta. No lado da esquerda liberal do establishment, temos um livro chamado The Crise of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission, compilado por Michel Crozier, Samuel P. Huntington e Joji Watanuki (New York University Press, 1975) e patrocinado pela Comissão Trilateral uma organização de liberais internacionalistas. Quase toda a administração Carter recrutou-se entre as suas bichas. Estavam preocupados pelo que eles chamavam a "crise da democracia" e que não dimanava de outra coisa do excesso de democracia. Nos 60 a população -os "interesses especiais" mencionados"- pressionava para conquistar direitos dentro da areia política, o que se traduzia em demasiada pressão sobre o Estado: não podia ser. Tinha um interesse especial que deixavam de lado, e é a saber: o do setor grande empresarial; porque os seus interesses coincidem com o "interesse nacional". Supõe-se que o setor grande empresarial controla ao Estado, de maneira que não há nem que falar dos seus interesses. Mas os "interesses especiais" causavam problemas, e estes cavaleiros chegaram à conclusão de que "temos que ter mais moderação na democracia": o público tinha que voltar a ser passivo e regressar à apatia. De particular preocupação resultavam-lhes as escolas e as universidades, que, diziam, não cumpriam bem a sua tarefa de "adoutrinar os jovens" convenientemente: o ativismo estudantil -o movimento de direitos civis, o movimento antibelicista, o movimento feminista, os movimentos ambientalistas- provava que os jovens não estavam corretamente adoutrinados.

Bem, como adoutrinar os jovens? Há mais de uma forma. Uma forma é carregá-los com dívidas desesperadamente pesadas para sufragar os seus estudos. A dívida é uma armadilha, especialmente a dívida estudantil, que é enorme, bem mais grande que o volume de dívida  acumulada nos cartões de crédito. É uma armadilha para o resto da sua vida porque as leis estão desenhadas para que não possam sair dela. Se, digamos, uma empresa incorre em demasiada dívida, pode declarar-se em quebra. Mas se os estudantes suspendem pagamentos, nunca poderão conseguir um cartão da segurança social. É uma técnica de disciplinamento. Não digo eu que isso se fizesse assim com tal propósito, mas desde depois tem esse efeito. E resulta assaz difícil de defender em termos económicos. Olhem vocês um pouco o que passa pelo mundo: a educação superior é em quase todas partes gratuita. Nos países com melhore-los níveis educativos, Finlândia (que anda em cabeça), ponhamos por caso, a educação superior é pública e gratuita. E em um país rico e bem sucedido como Alemanha é pública e gratuita. Em México, um país pobre que, no entanto, tem níveis de educação muito decentes se atendemos às dificuldades económicas às que se enfrenta, é pública e gratuita. Mas olhem o que passa nos EEUU: se nos remontamos aos 40 e os 50, a educação superior acercava-se muito à gratuitidade. A Lei GI ofereceu educação superior gratuita a uma grande quantidade de gente que jamais poderia aceder à universidade. Foi muito bom para eles e foi muito bom para a economia e para a sociedade; foi parte das causas que explicam a elevada taxa de crescimento económico. Inclusive nas entidades privadas, a educação chegou a ser praticamente gratuita. Eu, por exemplo: entrei na faculdade em 1945, em uma universidade da Ivy League, a Universidade de Pensilvania, e a matrícula custava 100 dólares. Isso seriam uns 800 dólares de hoje. E era muito fácil aceder a uma bolsa, de maneira que podias viver em casa, trabalhar e ir à faculdade, sem que te custasse nada. O que agora ocorre é ultrajante. Tenho netos na universidade que têm que pagar a matrícula e trabalhar, e é quase impossível. Para os estudantes, isso é uma técnica disciplinaria.

E outra técnica de adoutrinamiento é cortar o contacto dos estudantes com o pessoal docente: classes grandes, professores temporários que, sobrecarregados de tarefas, mal podem viver com um salário de ajudantes. E já que não tens segurança no posto de trabalho, não podes construir uma carreira, não podes ir a outro sítio e conseguir mais. Todas essas são técnicas disciplinantes, de adoutrinamiento e de controlo. E é muito similar ao que um espera que ocorra em uma fábrica, na que os trabalhadores fabris têm de ser disciplinados, têm de ser obedientes; e supõe-se que não devem desempenhar nenhum papel em, digamos, a organização da produção ou na determinação do funcionamento da planta de trabalho: isso é coisa dos executivos. Isto se transfere agora às universidades. E eu acho que ninguém que tenha algo de experiência na empresa privada e na indústria deveria se surpreender; assim trabalham.

Sobre como deveria ser a educação superior


Para começar, deveríamos eliminar toda a ideia de que alguma vez teve uma "idade de ouro". As coisas eram diferentes, e em certos sentidos, melhores no passado, mas distavam muito de ser perfeitas. As universidades tradicionais eram, por exemplo, extremamente hierárquicas, com muito pouca participação democrática na tomada de decisões. Uma parte do ativismo dos 60 consistiu na tentativa de democratizar as universidades, de incorporar, digamos, a representantes estudantis às juntas de faculdade, de animar ao pessoal não docente a participar. Esses esforços fizeram-se por iniciativa dos estudantes, e não deixaram de ter certo sucesso. A maioria de universidades desfrutam agora de algum grau de participação estudantil nas decisões das faculdades. E eu acho que esse é o tipo de coisas que deveríamos agora seguir promovendo: uma instituição democrática em que a gente que está na instituição, qualquer que seja (professores ordinários, estudantes, pessoal não docente) participam na determinação da natureza da instituição e do seu funcionamento; e o mesmo vale para as fábricas.

Não são estas ideias de esquerda radical, dito seja de passagem. Procedem diretamente do liberalismo clássico. Se lêem, por exemplo, a John Stuart Mill, uma figura capital da tradição liberal clássica, verão que dava por certo que os postos de trabalho tinham que ser geridos e controlados pela gente que trabalhava neles: isso é liberdade e democracia (se veja, por exemplo, John Stuart Mill, Principles of Political Economy, book 4, ch. 7). Vemos as mesmas ideias nos EEUU. Nos Cavaleiros do Trabalho, ponhamos por caso: um dos objetivos declarados desta organização era "instituir organizações cooperativas que tendam a superar o sistema salarial introduzindo um sistema industrial cooperativo" (veja-se a "Founding Ceremony" para as novas associações locais). Ou pense-se em alguém como John Dewey, um filósofo social da corrente principal do século XX, quem não só advogou por uma educação encaminhada à independência criativa, senão também pelo controlo operário na indústria, o que ele chamava "democracia industrial". Dizia que até tanto as instituições cruciais da sociedade -produção, comércio, transporte, meios de comunicação- não estejam baixo controlo democrático, a "política [será] a sombra projetada no conjunto da sociedade pela grande empresa" (John Dewey, "The Need for a New Party" [1931]). Esta ideia é quase elementar, e joga raízes profundas na história norte-americana e no liberalismo clássico; deveria constituir uma sorte de segunda natureza da gente, e deveria valer igualmente para as universidades. Há certas decisões em uma universidade onde não podes querer transparência democrática porque tens que preservar a privacidade estudantil, ponhamos por caso, e há vários tipos de assuntos sensíveis, mas no grosso da atividade universitária normal não há razão para não considerar a participação direta como algo, não já legítimo, senão útil. No meu departamento, por exemplo, tivemos durante 40 anos representantes estudantis que proporcionavam uma valiosa ajuda com a sua participação nas reuniões de departamento.

Sobre a "governança partilhada" e o controlo operário


A universidade é provavelmente a instituição social que mais se acerca na nossa sociedade ao controlo operário democrático. Dentro de um departamento, por exemplo, é bastante normal que ao menos para os professores ordinários tenha capacidade para determinar uma parte substancial das tarefas que conformam o seu trabalho: que vão ensinar, quando vão dar as classes, qual será o programa. E o grosso das decisões sobre o trabalho efetuado na faculdade caem em boa medida baixo o controlo do professorado ordinário. Agora, nem que dizer tem, há um nível administrativo superior ao que não podes nem eludir nem controlar. A faculdade pode recomendar a alguém para ser professor titular, ponhamos por caso, e estrelar-se contra o critério dos decanos ou do reitor, ou inclusive dos patronos ou dos legisladores. Não é que ocorra muito com frequência, mas pode ocorrer e ocorre. E isso é parte da estrutura de fundo que, ainda que sempre existiu, era um problema menor nos tempos em que a administração saía elegida pela faculdade e era em princípio revogável pela faculdade. Em um sistema representativo, precisas ter a alguém fazendo labores administrativas, mas tem que poder ser revogável, submetido como está à autoridade das gentes às que administra. Isso é a cada vez menos verdade. Há mais e mais administradores profissionais, estrato sobre estrato, com mais e mais posições a cada vez mais remotas do controlo das faculdades. Referi-me antes a The Fall of the Faculty de Benjamin Ginsberg, um livro que entra em um montão de detalhes sobre o funcionamento de várias universidades às que submeteu a detalhado escrutínio:  Johns Hopkins, Cornell e muitas outras.

O professorado universitário veio sendo mais e mais reduzido à categoria de trabalhadores temporários aos que se assegura uma precária existência sem acesso à carreira académica. Tenho conhecidos que são, efetivamente, leitores permanente; não conseguiram o estatus de professores ordinários; têm que concorrer a cada ano para poder ser contratados outra vez. Não deveriam ocorrer estas coisas, não deveríamos o permitir. E no caso dos ajudantes, a coisa tem-se institucionalizado: não se lhes permite ser membros do aparelho de tomada de decisões e se lhes exclui da segurança no posto de trabalho, o que não serve senão para amplificar o problema. Eu acho que o pessoal não docente deveria ser integrado também na tomada de decisões, porque também fazem parte da universidade. De modo que há um montão que fazer, mas acho que se pode entender facilmente por que se desenvolvem essas tendências. São parte da imposição do modelo de negócios em todos e a cada um das feições da vida. Essa é a ideologia neoliberal baixo a que o grosso do mundo tem estado vivendo nos últimos 40 anos. É muito daninha para a gente, e teve resistências a ela. E é digno de menção o que ao menos duas partes do mundo conseguiram em certa medida escapar dela: o Leste asiático, que nunca a aceitou realmente, e a América do Sul dos últimos 15 anos.

Sobre a pretendida necessidade de "flexibilidade"
"Flexibilidade" é uma palavra muito familiar para os trabalhadores industriais. Parte do telefonema "reforma laboral" consiste em fazer mais "flexível" o trabalho, em facilitar a contratação e o despedimento da gente. Também isto é um modo de assegurar a maximización do benefício e o controlo. Supõe-se que a "flexibilidade" é uma boa coisa, igual que a "maior insegurança dos trabalhadores". Deixando agora de lado a indústria, para a que vale o mesmo, nas universidades isso carece de toda a justificativa. Ponhamos um caso no que se regista submatriculación em algum sítio. Não é um grande problema. Uma das minhas filhas ensina em uma universidade; a outra noite chamou-me e contou-me que a sua carga lectiva mudava porque um dos cursos oferecidos registava menos matrículas das previstas. De acordo, o mundo não acabar-se-á, se limitaram a reestruturar o plano docente: ensinas outro curso, ou uma secção extra, ou algo pelo estilo. Não há que jogar à gente ou fazer inseguro o seu posto de trabalho por causa da variação do número de matriculados nos cursos. Há mil formas de ajustar a essa variação. A ideia de que o trabalho deve submeter às condições da "flexibilidade" não é senão outra técnica corrente de controlo e dominação. Por que não falam de despedir aos administradores se não há nada para eles este semestre? Ou aos patronos: pára que servem? A situação é a mesma para os altos executivos da indústria; se o trabalho tem que ser flexível, por que não a gestão executiva? O grosso dos altos executivos são assaz inúteis e ainda daninhos, de modo que nos livremos de eles! E assim indefinidamente. Só para comentar notícias destes últimos dias, ponhamos o caso de Jamie Dimon, o presidente do conselho de administração do banco JP Morgan Chase: acaba de receber um substancial incremento nos seus emolumentos, quase o duplo do seu paga habitual, em agradecimento por ter salvado ao banco das acusações penais que mandaria ao cárcere aos seus altos executivos: tudo ficou em multas por um monto de 20 mil milhões de dólares por atividades delituosas provadas. Bem, podemos imaginar que livrar de alguém assim poderia ser útil para a economia. Mas não se fala disso quando se fala de "reforma laboral". Fala-se de gente trabalhadora que tem que sofrer, e tem que sofrer por insegurança, por não saber de onde sacarão o pão amanhã: assim se lhes disciplina e se lhes faz obedientes para que não questionem nada nem exijam os seus direitos. Essa é a forma de operar dos sistemas tiránicos. E o mundo dos negócios é um sistema tiránico. Quando se impõe às universidades, te dás conta de que reflete as mesmas ideias. Não deveria ser um segredo.

Sobre o propósito da educação

Trata-se de debates que se retrotraem à Ilustração, quando se propuseram realmente as questões da educação superior e da educação de massas, não só a educação para o clero e a aristocracia. E teve basicamente dois modelos em discussão nos séculos XVIII e XIX. Discutiram-se com energia assaz evocativa. Uma imagem da educação era a de um copo que se enche, digamos, de água. É o que agora chamamos "ensinar para o exame": vertes água no copo e depois o copo devolve a água. Mas é um copo bastante furado, como todos tivemos ocasião de experimentar na escola: memorizas algo no que não tens muito interesse para poder passar um exame, e ao cabo de uma semana esqueceste de que ia o curso. O modelo de copo agora se chama "nenhum menino ao fundo", "ensinar para o exame", "carreira à cimeira", e coisas pelo estilo nas diferentes universidades. Os pensadores da Ilustração opuseram-se a esse modelo.

O outro modelo descrevia-se como lançar uma corda pela que o estudante possa ir progredindo à sua maneira e por própria iniciativa, talvez sacudindo a corda, talvez decidindo ir a outro sítio, talvez propondo questões. Lançar a corda significa impor certo tipo de estrutura. Assim, um programa educativo, qualquer que seja, um curso de física ou de algo, não funciona como funciona qualquer outra coisa; tem certa estrutura. Mas o seu objetivo consiste em que o estudante adquira a capacidade para inquirir, para criar, para inovar, para desafiar: isso é a educação. Um físico mundialmente célebre quando, nos seus cursos para primeiro de carreira, se lhe perguntava "que parte do programa cobriremos este semestre?", contestava: "não importa o que cubramos, o que importa é o que descubram vocês". Têm que ganhar a capacidade e a autoconfiança nesta matéria para desafiar e criar e inovar, e assim aprenderão; assim farão vosso o material e seguir adiante. Não é coisa de acumular uma série afixada de feitos com que depois possam soltar por escrito em um exame para esquecer ao dia seguinte.

São dois modelos radicalmente diferentes de educação. O ideal da Ilustração era o segundo, e eu acho que o ideal ao que deveríamos aspirar. Nisso consiste a educação para valer, desde o jardim de infância até a universidade. O verdadeiro é que há programas desse tipo para os jardins de infância, e bastante bons.

Sobre o amor à docência

Queremos, desde depois, gente, professores e estudantes, comprometidos em atividades que resultem satisfatórias, desfrutáveis, atividades que sejam desafios, que resultem apaixonantes. Eu não acho que isso seja tão difícil. Até os meninos pequenos são criativos, inquisitivos, querem saber coisas, querem entendê-las, e a não ser que te saquem isso à força da cabeça, o anseio perdura de por vida. Se tens oportunidades para desenvolver esses compromissos e preocupar por essas coisas, são as mais satisfatórias da vida. E isso vale o mesmo para o pesquisador em física que para o carpinteiro; toenes que tentar criar algo valioso, lidar com problemas difíceis e os resolver. Eu acho que que isso é o que faz do trabalho o tipo de atividade que queres fazer; e fazê-la ainda que não estejas obrigado à fazer. Em uma universidade que funcione razoavelmente, encontrarás gente que trabalha o tempo todo porque gostam o que fazem; é o que querem fazer; tem-se-lhes dado a oportunidade, têm os recursos, tem-se-lhes animado a ser livres e independentes e criativos: que melhor que isso? E isso também pode fazer em qualquer nível.

Vale a pena refletir um pouco sobre alguns dos programas educativos imaginativos e criativos que se desenvolvem nos diferentes níveis. Assim, por exemplo, no outro dia alguém me contava de um programa que usa nas faculdades, um programa de ciência no que se propõe aos estudantes uma interessante questão: "Como pode ser que um mosquito voa baixo a chuva?" Difícil questão, quando se pensa um pouco nela. Se algo impactasse em um ser humano com a força de uma gota de água que atinge a um mosquito, abatê-lo-ia imediatamente. Como pode, pois, o mosquito evitar o aplastamento imediato? Como pode seguir voando? Se queres seguir dando-lhe voltadas a este assunto -dificilíssimo assunto-, tens que fazer incursões nas matemáticas, na física e na biologia e te propor questões o suficientemente difíceis como para as ver como um desafio que acorda a necessidade das responder.

Isso é o que deveria ser a educação em todos os níveis, desde o jardim de infância. Há programas para jardins de infância nos que se dá à cada menino, por exemplo, uma coleção de pequenas peças: seixos, conchas, sementes e coisas pelo estilo. Propõe-se então à classe a tarefa de descobrir quais são as sementes. Começa com o que chamam uma "conferência científica": as crianças falam entre si e tratam de se imaginar quais são sementes. E, claro, há algum maestro que orienta, mas a ideia é deixar que os meninos vão pensando. Depois de um momento, tentam vários experimentos tendentes a averiguar quais são as sementes. Dá-se-lhe à cada menino uma lupa e, com ajuda do maestro, rompe uma semente e olha dentro e encontra o embrião que faz crescer à semente. Esses meninos aprendem realmente algo: não só algo sobre as sementes e sobre o que as faz crescer; também aprendem algo sobre os processos de descoberta. Aprendem a gozar com a descoberta e a criação, e isso é o que permitir-te-á te comportar de maneira independente fosse do aula, fora do curso.

O mesmo vale para toda a educação, até a universidade. Em um seminário universitário razoável, não esperas que os estudantes tomem apontes literais e repitam todo o que o teu digas; o que esperas é que te digam se te equivocas, ou que venham com novas ideias desafiantes, que abram caminhos que não era pensados antes. Isso é o que é a educação em todos os níveis. Não consiste em instilar informação na cabeça de alguém que depois a recitará, senão que consiste em capacitar à gente para que cheguem a ser pessoas criativas e independentes e possam encontrar gosto na descoberta e a criação e a criatividade a qualquer nível ou em quaisquer domínios aos que lhes levem os seus interesses.

Sobre o uso da retórica empresarial contra o assalto empresarial à universidade

Isso é como se propor a tarefa de justificar ante o proprietário de escravos que ninguém deveria ser escravo. Estão aqui em um nível da indagação moral no que resulta assaz difícil encontrar respostas. Somos seres humanos com direitos humanos. É bom para o indivíduo, é bom para a sociedade e até é bom para a economia em sentido estreito o que a gente seja criativa e independente e livre. Todo mundo sai ganhando de que a gente seja capaz de participar, de controlar os seus destinos, de trabalhar com outros: pode que isso não maximize os benefícios nem a dominação, mas por que teríamos que preocupar desses valores?

Um conselho às organizações sindicais dos professores precários

Já sabem melhor que eu o que há que fazer, o tipo de problemas aos que vos enfrentam. Segam adiante e façam o que tenham que fazer. Não vos deixem intimidar, não vos amedrentéis, e reconheçam que o futuro pode estar nas nossas mãos se queremos que o esteja.

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