26/07/2010

Nem devaluaçom interior nem austeridade fiscal: na Europa hai umha alternativa político-económica de esquerdas

Michael Hudson, artigo tirado de aqui.



Este quadro, A noite de M. Beckmann foi empregue pola editora Galáxia para ilustrar a capa e a contra-capa do livro Ruído. Relatos de Guerra de Miguel Anxo Murado, onde ao estilo de A Peste de Camus se expom o devalar das actuaçons humanas em situaçons limites.



A medida que se afunda a crise bancária europeia, a crise fiscal de Grécia e de Espanha difunde-se por Europa e a economia estado-unidense encalha, o grosso das discusons sobre o modo de estabilizar as finanças nacionais parte do suposto, segundo o qual apenas teriam duas opçons disponíveis: ou a "devaluaçom interna", que consiste em encolher a economia pola via do recorte do gasto público; ou devaluaçom directa da moeda (nos países que, como os europeu-orientais, ainda nom se somaram ao euro).

Devaluar a moeda?

Os países bálticos, entre outros, negárom-se à devaluaçom da moeda, aduzindo que isso poderia retrassar o seu ingresso na Uniiom Europeia. O certo é que, dado que o grosso das suas dívidas estám denominadas em euros –os acreedores som sobretodo bancos estrangeiros, ou as suas filiais locais—, a devaluaçom dispararia o serviço da dívida, o que provocaria um incremento das moras, assim como mais quedas técnicas no sector dos bens raizes. A devaluaçom causaria também o aumento do preço da energia e de outras importaçons essenciais, agravando o encolhimento da economia.

É mister dizer que os Estados soberanos podem redenomizar todas as suas dívidas na moeda nacional abolindo a "claúsula exterior", como fixo o presidente Roosevelt quando, em 1933, aboliu a "cláusula do ouro" nos contratos bancários estado-unidenses. Isso significaria passar o problema dos maos empréstimos aos bancos estrangeiros, sinaladamente os suecos e austríacos, que subscrevêrom os empréstimos que agora vam por mal caminho. Porém o grosso dos dirigentes guvernamentais a devaluaçom da moeda resulta-lhes tam impensável de entrada, que nom parece ficar senom umha alternativa: um programa de austeridade fundado nos recortes fiscais.


A exigência de austeridade fiscal

A UE, o FMI e os grandes bancos exigem aos governos a procura de excentes fiscais pola via de recortar os programas de aposentadorias e seguridade social, assistência sanitária, educaçom e outros gastos sociais. Os bancos centrais teriam de reforçar a austeridade reduzindo o crédito. Supom-se que os ordenados e os preços cairám proporcionalmente, o que permitirá às economias em processo de encolhimento "labrar-se um caminho para sair da dívida" mercê a um excedente comercial que lhes permitiria ingressar os euros necessários para pelejar com as gigantescas dívidas hipotecárias geradas pola bolha imobiliária posterior a 2002, vindo a nova dívida do banco central em apoio da taxa de cámbio.

Os Estados bálticos adoptárom o programa de austeridade monetária e fiscal mais extremo. Os recortes no gasto público e as políticas monetárias deflacionárias produzírom nos dous últimos anos um encolhimentos das economias lituana e letona superior a 20%. Os níveis salariais no sector público letom caírom 30%, e o o banco central manifestou a sua esperança de que o encolhimento salarial prosiga e rebaixe também os ordenados no sector privado.

Os custes da austeridade fiscal

O problema é que a austeridade provoca greves e paros, que se traduzem para reduçons de mercado e da inversom interiores. Cresce o desemprego e caim os ordenados. O que trai consigo a caída da recaudaçom fiscal, porque o sistema fiscal letom descansa quase exclussivamentn nos trabalhadores assalariados. A metade da nómina salarial destina-se ao pago dum exorbitante conjunto de impostos de taxa única, que representam mais de 51%, enquanto que o IVA absorbe outro 7% do ingreso pessoal disponível. No entanto, o banco central declara com gaita e pandeireta que a queda salarial é um sucesso, e chama por ulteriores descidas.

Os preços imobiliários quedárom também, até em 70%. A mora hipotecária disparou-se por cima de 25%, e aumentárom os impagos. O centro de Riga e o bairro costeiro residencial de Jurmala rebosam de cartazes: "em venda", "em aluguer"*. A queda dos preços amalhoa aos hipotecados proprietários a sua propriedade. Por outra parte, a prática inexistente de impostos à propriedade (umha taxa nominal que na prática ronda 0'1% ) permitiu aos especuladores manter as propriedades sem necessidade de alugueres.

Por volta de 90% das dívidas hipotecárias letonas estám contraídas em euros, e a maioria delas som com bancos suecos ou com filiais locais dos mesmos. Fai uns anos, os reguladores bancários urgírom os bancos a se passar do empréstimo fundado num colateral (em que a propriedade respondia da hipoteca) ao empréstimo "fundado no ingresso". Animou-se aos bancos a insistir nos créditos concedidos tiveram a coassinatura do maior número possível de familiares: pais e filhos, até tios e tias. Isso permite aos bancos vencelhar os ordenados das partes coassinantes à dívida contraída.

O passo seguinte é o desafiuçamento da propriedade. Os reguladores bancários só se preocupam da solvência bancária - dum sistema bancário em maos estrangeirasm nom da do conjunto da economia. O seu modelo é Estónia, que combinava em 2009 umhas finanças estáveis com um encolhimento da economia que estrema em 15%, o que lhe valeu o passado mês a promesa da entrada em Eurolándia.

Resultado: em vez de que o sistema bancário trabalhe para a economia, Letónia e outras economias pós-soviéticas gestionam a sua vida económica para manter a solvência dos bancos. Como se realmente se esperara que a endevidada populaçom gastara o resto da sua vida em pagar para sair da queda técnica [ a dívida contraída supera o valor actual dos activos hipotecados; T. castelhano] em que a tenhem afundido os maos empréstimos.

Isso causou tal caous, que alguns proprietários de empresas emigram para escapar das suas dívidas. O jornal Diena publicou recentemente um artigo sobre umha mulher de medios modestos residente numha cidade letona de mediano tamanho, Jelgava. Despois de contratar umha hipoteca por valor de 40.000 lats (uns 55 mil euros) perdeu o seu trabalho. O banco negou-se a renegociar a hipoteca e subastou a propriedade por apenas 7.500 lats, deixando-a ainda com umha dívida de 30.000 lats, a pagar do mais valor dos seus ingressos futuros.

O empréstimo hipotecário destinado a inflar a bolha imobiliária permitiu a financiaçom do déficit comercial. Isto chegou ao seu fim. Quanto explodiu a bolha imobiliária fai dous anos, o empréstimo euro-hipotecário subministrava os recursos exteriores para cobrir o déficit comercial letom. Agora, o banco central toma emprestado da UE e do FMI, a condiçom de que o empréstimo de use exclussivamente para sustentar a moeda, a modo de colchom. O que parece autodestrutivo, porque a deflaçom monetária causará desordens financeiros, agravando a crise da má dívida e estimulnado as fugas financeiras.

Nem devaluaçom interior nem austeridade fiscal: a esquerda tem umha Terceira Opçom, a reforma radical do sistema fiscal

Podem sair reelegidos os governantes que promovem este tipo de políticas? Em Letónia e outras economias do Este europeu, os partidos políticos estám começando a armar umha Terceira Opçom, umha alternativa à devaluaçom, ao encolhimento da economia e à caída do nível de vida.

Essa Terceira Opçom passa pola reforma do sistema fiscal. Arrinca da constataçom dum facto: a exacerbada fiscalidade sobre o emprego - superior a 51%- significa que os ordenados que se levam a casa som menos da metade do que os empresários lhes pagam. Letónia dispom do trabalho pior remunerado da Europa septentrional, e no entanto, proporcionalmente, é o de maior coste para os empresários. E para fazer piores as cousas, os impostos aos bens raízes som apenas umha fracçom de 1%. Isso foi um factor da maior importáncia à hora de inflar a bolha imobiliária. O valor nom fiscalmente gravado do caho vai a parar aos bancos, quem, por sua vez, emprestam a destalho os seus ingressos hipotecários com o fim de seguir disparando à alça os preços das propriedades imobiliárias, o qual, na sua quenda, força os governos a aumentar os impostos sobre os ordenados e as vendas, o que gera um aumento do custe do trabalho e do preço dos bens e serviços. Semelhantes impostos planos ou de tipo únicos sobre o trabalho e sobre a pequena propriedade convertêrom-se na plaga em todo o bloco ex-soviético desde 1991.

O bom é que este deforme sistema fiscal deixa margem substancial para despraçar as cargas fiscais sobre o emprego para as rendas de "barra livre", incluídas as rendas sobre o valor do solo, as rendas monopólicas e a riqueza financeira. Agora mesmo, essas rendas estám isentas - "livres"- de impostos: vam parar aos bancos.

A economia letona pode fazer-se mais competitiva simplesmente libertando-a da carga gémea que significam uns ordenados pessadamente gravados fiscalmente e uns preços imobiliarios inflados por um eurocrédito doado. Dispom dumha ancha margem para reduzir o custe do trabalhador para as empresas, até em 50%, sem reduzir os salários que se levam os trabalhadores à sua morada. Um despraçamnto da carga fiscal assim, do trabalho ao valor rendista dos bens raízes, reduziria o custe do emprego sem necessidade de reduzir os níveis de vida, e todo isto sem pôr em perigo as finanças públicas.

Rebaixar os impostos sobre os salários reduziria o custe do emprego sem reduzir nem o ordenado que os trabalhadores se levam a sua morada nem os níveis de vida. Incrementar os impostos sobre a propriedade, por outra parte, deixaria menos valor subseguinte para ser capitalizado nos empréstimos bancários, o que permitiria guardar-se do endividamento futuro.


Apreender de Hong Kong

Umha política deste tipo foi a que andivo detrás do auge económico de Hong Kong: o exemplo que os dirigentes letons esperam emular como enclave de serviços bancários e centro tecnológico internacional (como o era a própria Letónia nos tempos soviéticos, antes de 1991). Hong Kong promoveu o seu despegue económico a partir, fundamentalmente, dos impostos ao valor rendista do solo, o que lhe permitiu minimizar os impostos ao emprego (que actualmente significam só 15%).

Despraçar a carga fiscal do trabalho ao valor rendista do solo manteri, demais, a descida do preço da vivenda e dos espaços comerciais, porque o valor rendista gravado nom poderia seguir sendo reciclado em forma de novas hipotecas.

Esse despraçamento fiscal pressionaria também a descida dos preços das propriedades imobiliárias, porque o valor rendista gravado nom ficaria disponível para que os bancos puderam capitalizá-lo em forma de empréstimos hipotecarios. A vivenda em economias de dívida apalancada, como os EUA, a Grande Bretanha [e o Estado espanhol] absorvem normalmente 40% do orçamento familiar [no Estado espanhol por volta de 45%; T.]. Reduzir essa proporçom a 20% - como na economia germana, muito menos endividada, e em que o empréstimo procedeu de maneira assaz responsável, permitiria gastar os ingressos salariais em bens e serviços, e nom no serviço da dívida hipotecária. O que, assim, daria maior margem para a moderaçom salarial, sem necessidade de reduzir os níveis de vida. Isso significa que os letons e outros estados da Europa do Este nom estám obrigados a sacrificar a economia no altar da eurodívida; nom necessitam submeter-se nem à devaluaçom da sua moeda nem a programas de austeridade.

Despraçar à propriedade do solo a carga fiscal agora soportada polos trabalhadores reduziria o custe da vida dos letons, rebaixando o preço da vivenda e dos espaços comerciais. A renda económica - ingressos sem os correspondentes custes de produçim - seria transferida ao Estado como base fiscal, em vez de ficar "livre" para que os bancos podam capitalizá-la em forma de empréstimos hipotecários. Os preços das propriedades estám determinados polo volume do empréstimo bancário, de maneira que gravar fiscalmente o valor rendista do solo (nom os legítimos retornos das melhoras de construçom e capital) reduziria a taxa de capitalizaçom, mantendo baixos os preços da propriedade imobiliária.

Conclusom

Em resumidas contas: o problema da deflaçom monetária ("devaluaçom interna") é que deixa intactas as disfuncionais estruturas fiscais existentes. O assunto principal nos vindouros anos, e nom apenas na Europa do Este, será este: se as economias podem liberar-se a si próprias da carga gémea representada por uns ordenados pessadamente gravados fiscalmente e uns preços imobiliários inflados, e se podem fazê-lo evitando umha sobredose de austeridade, de todo ponto inessária. Se precisa umha mudança na estrutura fiscal, um troco conforme as linhas que a maioria dos estados ocidentais esperavam ver hai agora um século.

Objetivo: fazer mais competitiva a economia minimizando o custe da vida e dos negócios. A Terceira Opçom serve ao propósito de alinhar os preços da propriedade imobiliária e os preços monopólicos com os custes necessários de produçom. Gravas fiscalmente a formaçom de preços no "baleiro", muito por cima do valor do custe, fiscalizar, isto é, a renda económica, foi parte integral do republicanismo "original" [1] de Adam Smith e de John Stuart Mill, e em verdade, de todos os economistas políticos, desde os fisiócratas até os reformadores da Era Progressista. [2]

A contenda política nas eleiçons parlamentares nacionais previstas para o próximo mês de Outubro liberará-se, e por muito, em torno do programa económico de desenvolvimento Renovaçom Letona, patrocinado polo Centro da Harmonia, coligaçom dos partidos de esquerda. Na última reuniom anual - 29-30 de Maio de 2010, os dirigentes do partido empeçarom a trabalhar, a fim de concretar a alternativa sobredita em leis e iniciativas legislativas e de traçar o mapa do valor do solo letom.

NOTAS do Tradutor ao castelhano.: [1] Siguindo um uso idiosincrático da palavra "liberalismo" nos EEUU da segunda metade do século XX, Hudson fala aqui de "liberalismo original". Em Europa e em América Latina, em troca, a palavra "liberalismo" segue referindo um fenómeno político antidemocrático do siglo XIX (a palavra inventou-se na Espanha de 1812), e aponta ao desenvolvimento de partidos –os partidos "liberais"—, activos só baixo monarquias meramente constitucionais –nom parlamentares, salvo, logo, a británica--, e desconhecidos em regímenes republicanos como os dos EUA, França e a Argentina. Assim, traduzimos à europeia por "republicanismo original". [2] Nos EUA conhece-se por Era Progressista a vigorosa reacçom democrática de começos do século XX, que seguiu a Era da Codícia posterior à Guera Civil norte-americana, em que campavam polos seus respeitos os famosos "barons ladrons" (Rockefeller, Vanderbilt, Stanford, etc.) e políticos como o presidente Rudolf Hayes, que chegou a declarar que o seu governo era de empresários e para empresários.


Notas do tradutor galego: * David Harvey tem descrito com precisom este fenómeno do que também tem falado Alex Callinicos, entre outros. Os centros das cidades passam a ficar ocupados polas classes trabalhadoras, enquanto na periferia se constroem bairros residenciais para as classes altas. Este fenómeno próprio do mundo ocidental a partir dos oitenta segue a ser desconhecido no imaginário da maioria das pessoas que seguem com a concepçom clássica de cidade. Precedente disto foi o processo descrito por Manuel Rui Monteiro no romance Quem me dera ser onda? onde já nom som os bairros de lata, os muaseques, os protagonistas mas o centro da cidade de Luanda (capital de Angola): o Makulusu (cf. também Nós, os do Makulusu).

Portanto, as cidades das colónias portuguesas sofrérom já um êxodo rural-urbano que atingiu nom apenas à periferia, mas também ao centro e que logo se repeteria enter classes assalariadas e rentistas nas cidades do Norte (o acontecido na Califórnia e em Los Ángeles é de manual quanto as repercusons em prestaçons e ordenados para as classes trabalhadoras). Perante a marcha dos portugueses colonizadores nos setenta umha migraçom do rural passa a viver nos prédios do centro da cidade mas sem partilhar umha mínimas normas de convivência urbana, etc. que é o que critica Manuel Rui Monteiro no seu romance. Aliás é igualmente
estudável o efeito das migraçons rural-urbano do denominado Terceiro Mundo e como tenhem atingido todos os seus alvos os que aproveitárom isto para começar sem pudor toda umha nova vaga de encloussers como os que se produziram no XIX no centro capitalista.

________________________________________________

Michael Hudson trabalhou como economista em Wall Street e actualmente é Distinguished Professor en la University of Misoury, Kansas City, e presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET). A sua dedicaçom aos problemas das economias pós-soviéticas, e especialmente a letona, levou-no a ser comisionado recentemente, por parte da coligaçom de esquerda letona Centro da Harmonia, como economista chefe da Reform Task Force Latvia, um think tank encargado de elaborar umha política económica alternativa para esse estado báltico. É autor de vários livros, entre os que é mister pôr em destaque: Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (nova ed., Pluto Press, 2003) e Trade, Development and Foreign Debt: How Trade and Development Concentrate Economic Power in the Hands of Dominant Nations (ISLET, 2009).

Nenhum comentário: