06/12/2010

Estado de alarma

Carlos Taibo. Artigo tirado de aqui.

A greve que os controladores aéreos desenvolveram os dias 4 e 5 deste mês tem várias dimensões diferentes.

A primeira nasce da condição, singularíssima, do coletivo profissional afectado. Os seus altos ordenados predispõem a um rápido juízo desqualificador que esquece --parece-- circunstâncias interessantes. Não só isso: facilita o assentamento de uma posição muito espalhada, quase universal, nos nossos meios de incomunicação. Se um tender a simpatizar espontaneamente com um trabalhador em greve, os nossos meios --não faz falta assinalar a que interesses respondem-- assumem literalmente o caminho contrário. Talvez por isto apenas se avêm a recolher opiniões de ciudadãos indignados que prescindem de qualquer consideração das razões que puderam conduzir aos trabalhadores --sejam os que forem estes-- a assumirem uma medida delicada.

Tenho gravada na retina a dura declaração formulada, perante os ecrãs de televisão, por uma senhora irada: se alguém faltar ao trabalho --diz—deve-se-lhe pôr na rua. A senhora em questão não forma parte, com certeza, de um grupo parafascista. Com certeza, trata-se, antes bem, de uma modesta e desideologizada celadora ou de uma caixeira de um centro comercial. Ainda que um pode entender a sua ira momentánea, há que perguntar-se como reacionaria essa mesma pessoa em caso de que se lhe anunciasse repentinamente que a sua jornada laboral tem sido objeto de um sensível alargamento ao tempo que o seu salário se tem visto reduzido. Não contrapesaria seriamente a possibilidade de asumir então, como contestação, uma greve ‘selvagem’? Pois isso é o que, ao parecer, se passou na sexta-feira 4 com os controladores aéreos. 

Maior relevo tem, porém, outra dimensão, que nos obriga a perguntar-nos pelo sentido de fundo de um sistema que permite que os dirigentes políticos, fazendo uso --ninguém o duvida, e isto é por si só suficientemente grave-- das suas prerrogativas, cancelem de forma unilateral as normas laborais previamente pactuadas. Como quiera que o caso dos controladores é muito sensível --e serve para que José Blanco faça uso da mais fácil demagogia social, autoconvertendo-se, caramba, em defensor dos desvalidos o mesmo dia em que o Governo espanhol retirava ajudas básicas aos desempregados--, melhor será que lembremos o ocorrido no metro madrileno o passado verão. Também aqui as autoridades --neste caso as da Comunidade de Madrid-- decidiram unilateralmente deitar pela borda fora o estipulado num convénio coletivo. É razoável descrever como selvagem a greve que seguiu e não botar mão do mesmo adjetivo para dar conta da conduta de quem, com o selo de garantia dos seus democráticos títulos, decidem saltar-se, de forma interessada, as normas previamente acordadas?

Há, claro, uma dimensão mais, muito delicada, no acontecido os últimos dias. A militarização de um serviço, a declaração de um estado de alarme e a possibilidade certa de aplicar aos trabalhadores draconianas leis militares bem puedem configurar um adequado banco de provas para o que se avizinha. E olho, que não estou pensando agora nos controladores, nos quais se reúnem --é certo-- circunstâncias muito singulares. Falo do comum dos trabalhadores, vítimas de agressões sem conto que afectam, já, aos seus direitos laborais e sociais mais elementares. A mensagem não pode ser mais claro: se não aceitarem, sem pestanejar, as normas que o capital dita e que os nossos governantes se encarregam submisamente de aplicar, já sabem a que se expõem. Muito me temo, noutras palavras, que o acontecido estes dias bem pode reaparecer, bencido pelo aplauso de uma cidadania cada vez mais entontecida, nos setores económicos mais díspares. E isto sim que remete a uma situação alarmante da mão de uma sorte de estado de excepção permanente, com os ministérios do Interior e da Defesa supostamente pelejando pelos direitos dos desvalidos.

Como não há mal que sempre dure, o seu é que lembre, em fim, que o fim-de-semana sem aviões --e sem a poluição e a dilapidação de recursos conseguinte-- que deixámos atrás bem pode ser um antecipo do que, as coisas como vão, e por inexcusáveis razões do meio ambiente, nos veremos na obrigação de fazer nos anos vindouros. Ainda que não fosse essa, claro, a intenção dos controladores.

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