Stefano Rodotà. Artigo tirado de Sin Permiso e traduzido por nós, premer aqui. O autor é presidente da autoridade italiana garante da protecçom dos dados pessoais e, aliás, ex-presidente do Grupo do Artigo 29 sobre a Lei de Protecçom de Dados na UE.
Piar do laicismo, a democracia e o sentido comum, Stefano Rodotá é um homem extraordinariamente amável. Sabio do direito, comprometido à antiga e herdeiro do activismo de Pasolini, é talvez o penúltimo humanista europeu e um dos poucos intelectuais de referência que ficam nesta Itália "triste e desafiuzada, que só se olha o embigo e parece a cada vez mais um apêndice do Vaticano quando se acercam os 150 anos da unidade do país". Miguel Mora entrevistou-lhe para El País.
Professor emérito de Direito Civil na Universidade da Sapienza de Roma, Rodotà, nascido em Cosenza faz 73 anos, escreve livros e artigos, assiste a congressos, dirige o Festival de Direito de Piacenza, promove manifiestos e dá a batalha civil por um sem-fim de causas, da liberdade de imprensa à ética pública e a eutanásia. Eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano em 1979, viveu a convulsa década final da Primeira República no Parlamento e depois foi o primeiro presidente do Partido Democrático della Sinistra (PDS), fundado em 1991 por Achille Occhetto a partir das cinzas do PCI. Só num ano depois, quiçá profetizando a que se avecinhava, abandonou a política.
Hoje ensina em universidades de todo mundo, e como especialista em filosofia do direito e coautor da Carta Fundamental de Direitos da UE, é a "tabela" de medir liberdades individuais, novos direitos, qualidade democrática e abuso de poder. Seus textos sobre a relação entre direito e intimidai, tecnologia, trabalho, informação e religião consideram-se clássicos.
Agora, Trotta acaba de traduzir seu livro La vida y las reglas. Entre o direito e o não direito, um ensaio de 2006 ampliado em 2009 no que Rodotá replaneja os limites do direito e reivindica um novo, "mais sóbrio e respetuoso com as múltiplas e novas formas que adquiriu a vida humana".
O professor denuncia a tirania que os novos popes da lei tratam de impor aos cidadãos: a "casta de notáveis" que formam juristas e advogados, os grandes despachos internacionais que "criam as regras do direito global por encarrego das multinacionais", os "invisíveis legisladores que sequestram o instrumento jurídico, transformando uma mediação técnica numa atitude sacerdotal".
O livro traça uma crítica pós-marxista da selva das ataduras legais que freiam as liberdades que trazem as inovações técnicas e científicas. Partindo de Montaigne ("a vida é um movimento desigual, irregular e multiforme"), Rodotá explica como o "evangelho do mercado", o poder político e a religião têm co-producido "uma mercantilizaçom do direito que abre a via a mercadear inclusive com os direitos fundamentais", segundo se vê em assuntos tão dispares como a imigração, as técnicas de fertilizaçom ou os avanços da biologia.
Segundo Rodotá, essa lógica mercantilista e invasiva é "radicalmente contraditória com a centralidade da liberdade e a dignidade", e a privatização da legalidade num mundo global cria enormes desigualdades, paraísos e infernos, "lugares onde se criam novos direitos e liberdades e outros onde o legislador pretende fazer-se dono e senhor da vida das pessoas".
"O paradoxo é que essa disparidade, que em teoria ajuda a estender a consciência da igualdade pelo mundo, pode consagrar uma nova cidadania censitária", explica. "Se se legisla sobre os genes, o corpo, a dor, a vida, os presentes ou o trabalho aplicando a repressão, a arrogância e a técnica empresarial da deslocalizaçom, as liberdades convertem-se em mercadorias e só aqueles que podem se permitir pagar podem aceder a elas".
O grande repto, afirma nesta entrevista, é "sair do direito e regressar à vida". Ou, como afirma no prólogo do livro o professor José Luis Piñar Mañas, "vincular vida e direito, direito e pessoa, pessoa e liberdade e dignidade; pôr o direito ao serviço do ser humano, e não do poder".
Pergunta. Não é um paradoxo que um jurista alerte contra os excessos do direito?
Bom, o maior paradoxo é que o direito, que deve só ser uma mediação sóbria e sensata, se converta numa arma prepotente e pretenda se apropriar da vida da gente. Esta nova tendência está muito unida às inovações científicas e tecnológicas. Dantes nascíamos de um sozinho modo; desde que Robert Edwards, o flamante prêmio Nobel, inventou o bebé-probeta, mudaram as regras do jogo e a lei natural não se governa só pela procriação natural. Há outras oportunidades de eleger e surge o problema: deve actuar o direito? Até onde? Às vezes, sua pretensão é meter numa jaula à ciência, opor direito a direitos, usar o direito para negar liberdades. É isso lícito? Às vezes pode parecer que o é, por exemplo na clonagem.
P. E outras vezes?
R. A meu julgamento, o direito deve intervir, mas sem arrogância, sem prepotência, sem abusar, deixando às pessoas decidir de forma livre e consciente. O caso de Eluana Englaro é um exemplo preclaro do uso prepotente da lei e, de passagem, do atraso cultural e político italiano. O poder e a Igreja decidiram, contra o que afirma a Constituição sobre o inalienável direito das pessoas a sua dignidade e a sua saúde, que era preciso actuar para limitar a dignidade dessa mulher sem vida cerebral e o direito de seu pai a decidir por ela. O problema não é só o puxo autoritário do poder político, senão o insensato desafio à norma soberana, a Constituição, e a colaboração da Igreja nesse ataque.
P. A Igreja odeia também as células mãe. Mas a fecundação assistida foi proibida em Itália num referendo popular.
R. Algumas inovações científicas põem em tela de julgamento a antropologia profunda do ser humano. O uso e descarte de diferentes embriões nas técnicas de fertilidade é uma delas. O direito deve acompanhar essas mudanças, mas não bloqueá-las. Os cientistas pedem regras para saber se seus avanços são moral e socialmente aceitáveis. Um uso prepotente da lei limita suas investigações, nega o avanço mesmo, e ao fazê-lo apodera-se de nossas vidas porque nega-nos todo direito, ou pior ainda, nega-lho só a alguns. Os ricos italianos podem ir a fertilizar-se a Espanha, os pobres não. Isso produz uma cidadania censitária e destrói o estado social. A vida está dantes que a política e o direito.
P. A Itália actual está submetida ao fundamentalismo católico?
R. Itália é um laboratório do totalitarismo moderno. O poder, ao abusar do direito, privatizá-lo e tratá-lo como uma mercadoria, dá asas ao fundamentalismo político e religioso, e isso mina a democracia. Os bispos italianos não admitem o testamento biológico; os alemães propuseram um texto mais avançado que o da esquerda italiana. Ao cumprir-se num ano da morte de Eluana, Berlusconi escreveu uma carta às freiras que a cuidaram dizendo que estava muito triste por não ter podido lhe salvar a vida. Admitiu publicamente que o poder tinha tratado de apoderar-se de sua vida. Agora acaba de oferecer um Plano pela Vida à Igreja. Com tal de ter seu apoio para seguir governando, Berlusconi tem malvendido o Estado de direito ao Vaticano por quatro cadelas.
P. E os homossexuais seguem sem direitos. E os laicos a cada vez pintam menos.
R. O Tribunal Constitucional já disse ao Parlamento que deve reconhecer os casamentos gais. A Carta de Direitos da UE é também muito clara. Precisamos um direito amável, não um direito que negue os direitos. A religião não pode domar a liberdade. A Constituição de 1948, artigo 32, diz que a lei não poderá em nenhum caso violar os limites impostos pelo respeito da vida humana. Esse artigo fez-se pensando nos experimentos nazistas, com a emotividade dos processos aos médicos em Nuremberg. ¡E fixo-a Aldo Moro, um político católico!
P. Pensou alguma vez que chegaria a sentir falta à Democracia Cristã?
R. Aqueles políticos tinham outra talha cultural. As discussões parlamentares entre a DC e o PCI eram de um nível impressionante. Governando a DC fizeram-se as leis do aborto e do divórcio. Sabiam que a sociedade e o feminismo as exigiam e entenderam que não o admití-las danaria a sua credibilidade política. Muitos eram verdadeiramente laicos. Tinham mais sentido da medida e mais respeito. Hoje estamos no turismo para poder nascer e para poder morrer, a gente reserva lugar nos hospitais suíços para poder morrer com dignidade. É possível que um Estado democrático obrigue a seus cidadãos a pedir asilo político para morrer? O direito deve governar esses conflitos, não os alentar.
P. Rosa Luxemburgo dizia que por trás da cada dogma tinha um negócio que cuidar.
R. Desde depois, imagino que a previdência privada influi nas posições do Vaticano. Desde o Concilio todo foi a pior, e hoje Itália está governada por movimentos como Comunión e Libertação, que fazem negócios fabulosos com a ajuda e a anuência do Governo. A má política sempre é filha da má cultura. A degradação cultural é finque-a do problema. Espero que o regime político de Berlusconi acabe o dantes possível, mas nos recuperar deste deserto cultural levará décadas. O uso da televisão, não só partidária, senão sobretudo embrutecedora; a degeneração da linguagem... Todo foi a menos. A degradação foi bem mais lá do perímetro do centro direita, e vemos em todas partes atitudes especulares à de Berlusconi.
P. Alguns estão a pôr em discussão inclusive os direitos sindicais.
R. O pensamento jurídico tem-se empobrecido muito. Nos anos setenta fizemos uma reforma radical do direito de família porque a cultura dos juristas e seu sentido democrático permitiram-no. Fecharam-se os manicómios, fez-se o Estatuto dos Trabalhadores... Hoje todo isso seria impensável.
P. A esquerda permanece impassível... Por quê?
R. A recuperação da cultura é a primeira premisa para recuperar a política de esquerda. Todos dizem que deve olhar ao centro, eu acho que se deve começar por recuperar a esquerda. Craxi destruiu a socialdemocracia, o PCI suicidou-se, e esse cataclismo dura ainda. Perdemos a primacía da liberdade, e hoje manda o uso personalista e autoritário das instituições. A sociedade tem-se esfurricado, o país está a desfazer-se. A política faz ostentação de força, e o direito faz-se migalhas.
P. Europa salvar-nos-á?
R. Não parece que Europa viva um momento espléndido. Crescem a xenofobia e o racismo, e a debilidade cultural de Itália espalha-se pelo continente. Trono e altar aliaram-se outra vez, agora de maneira diferente. Hoje assistimos à fusão entre o mercado, a fé e a política, que tratam de nos organizar a vida manipulando o direito. Em Itália, a corrupção não é que não seja perseguida, é que está protegida pela lei, como no escândalo da Protecção Civil: se derogaram a transparência e os controles ordinários para poder roubar melhor. Nos anos setenta as comissões eram de riso, e em todo caso tinha uma compostura, um respeito pela colectividade. Craxi foi devastador, uma mudança de época. Agora, a máxima é: "Se o faz Berlusconi, por que não o vou fazer eu?".
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