02/01/2011

Sol-pôr dum "filósofo", retorno dum "militante": um novo episódio na saga de imposturas intelectuais

 Ángel Ferrero. Artigo tirado de aqui e traduzido por nós.

O jovem crítico cultural e habitual colaborador de SinPermiso Àngel Ferrero resenha a nova edição castelhana do clássico de Trostky Terrorismo e comunismo, reproduzido com uma inenarrável apresentação de Slavoj Žižek (Madri: Akal, 2010. 218 páginas).



Na sua demoledora crítica ao marxismo estruturalista, o historiador britânico E.P. Thompson comparava a filosofia de Louis Althusser com o bilhete primeiramente a um espectáculo cuja única condição é a de abandonar uma parcela de nossa razão na porta. «E uma vez dentro da sala de teatro», prosseguia Thompson, «damos-nos conta de que não há saídas.» Althusser morreu, os discípulos perderam a fé, a Teoria dividiu-se em subalthusserianos, pós-talthusserianos e outros derivados freudomarxistoides, mas o espectáculo contínua. E a fé que melhorou. Slavoj Zizek é, com toda probabilidade, a quintaessencia do mesmo: em Europa continental -mas sobretudo mais para cá- e em alguns países latinoamericanos é celebrado em determinados cenáculos académicos pola sua capacidade para levar da mão aos seus leitores de passeio pela filosofia, a história, a semiótica, a crítica cinematográfica e até o episódio e fazer troça , e isso apesar da visível falta de coerência de sua obra e ainda num mesmo texto. Ainda que em países filosoficamente sérios como Alemanha Toni Negri, Alain Badiou ou o próprio Zizek colheitam cabeçalhos como "Philosophendämmerung" (Tageszeitung, 29 de junho de 2010), no resto de Europa mantêm um núcleo de seguidores hardcore -do profesorzuelo provinciano ao leitor inocente- que acompanhá-los-ão até que aqueles se cansem e cedam o báculo obispal à seguinte geração de filósofos prêt a penser. E assim in saecula seculorum. Fixem-se até que ponto cedeu a filosofia continental à lógica do star system que esta reediçom de Terrorismo e comunismo de León Trotsky se titula, em realidade, Slavoj Zizek apresenta a Trotsky. Terrorismo e comunismo, muito provavelmente um private joke com a série de televisão de Alfred Hitchcock.


Zizek começa seu prólogo diferenciando duas figuras de Trotsky: por uma parte, «a aburguesada imagem de Trotsky, o libertário antiburocrático do Termidor estalinista», pela outra, «o "judeu errante" da "revolução permanente" que não podia encontrar paz no rutinário processo pós-revolucionário da (re)construção de uma nova ordem.» (p. 6)  A estas duas figuras contrapõe Zizek uma terça: «Trotsky o precursor de Estaline» (p. 7). Tal e como o lêem. Ainda que imediatamente enfatiza muito ligeiramente esta afirmação de zascandil, Zizek monta esta mesa sobre três patas: a defesa de «um regime de partido único», «a militarizaçom do trabalho» e que Estaline tinha em sua biblioteca «um exemplar muito lido de Terrorismo e comunismo, cheio de notas manuscritas que revelam a aprovação entusiasta de Estaline: que mais se precisa como prova?» (p. 7) O que sabemos deste episódio é em realidade que junto ao fragmento em que Trotsky escreve «a revolução exige que a classe revolucionária faça uso de todos os meios possíveis para atingir seus fins - o terrorismo se é preciso», Estaline agregou a seguinte nota: «¡Correcto! Bem dito, assim é». Isto prova, efectivamente, pouca coisa. Se talvez, que o entusiasmo de Zizek por Estaline eprove seguramente pelo emprego compartilhado por ambos do mesmo rigoroso método: o de tomar uma cita, descontextualizarla e a utilizar para justificar os fins próprios em arranjo a critérios de oportunidade política. E aí não termina a coisa: «Trotsky -escreve Zizek- chega a pressagiar a infame tese estalinista segundo a qual, na transição do capitalismo ao socialismo, o Estado "se extingue" com o fortalecimento de seus órgãos, especificamente de seus órgãos de coerçom» (p. 12). Mas o que diz realmente Trotsky é que assim «como o lustre, dantes de se extinguir, brilha com uma luz mais viva, o Estado, dantes de desaparecer, reveste a forma de ditadura do proletariado; isto é, do mais despiadado governo, de um governo que abraça imperiosamente a vida de todos os cidadãos.» (p. 292) Aqui tudo se confunde: não se toma ao *estalinismo pelo que foi (a osificaçom de umas estruturas criadas como transitórias) senão pelo que disse que era (o desaparecimento do Estado com o fortalecimento de seus órgãos). O que segue é mais ou menos igual durante quarenta páginas nas que o único com sentido desta macedonia parece ser o seguinte parágrafo: «Trotsky é aquele para o que não há lugar nem no socialismo realmente existente anterior a 1990 nem no capitalismo realmente existente posterior a 1990, no que nem sequer os nostálgicos do comunismo sabem que fazer com a revolução permanente de Trotsky: talvez o significante "Trotsky" seja a designação mais apropriada para o que vale a pena isentar do legado leninista» (p. 25).


Com tudo, convém saudar a reediçom deste livro, escrito como resposta a Terrorismo e comunismo (1919) de Karl Kautsky, e que lia, não sempre felizmente, com alguns dos maiores pontos de friçom da tradição marxista. O primeiro capítulo, titulado "correlaçom de forças" ocupa-se por cima de um debate histórico afinque na tradição comunista -pode uma sociedade atingir o comunismo sem atravessar as penúrias do capitalismo?- mas que para os bolcheviques -quem, por empregar a famosa formulaçom de Gramsci, tinham levado a cabo uma revolução contra O capital- era apremiante, pois se por uma parte criticavam, correctamente, a representação mecânica do desenvolvimento das relações sociais presente à cabeça de muitos social-democratas da época, não se faziam demasiadas ilusões com respeito ao futuro de uma Rússia revolucionária que era pouco menos que um arquipélago industrial no meio de "um oceano de camponeses" (Bujarin) se fracassava a revolução alemã que teria de ir em sua ajuda. Outros temas igualmente importantes tratados no livro por Trotsky são a natureza e função das alianças políticas dos comunistas com outros grupos, a relação dos sindicatos com o novo Estado socialista, a questão camponesa, a organização do trabalho e sua divisão técnica e social segundo critérios socialistas, o papel dos intelectuais ou a política internacional com respeito aos países imperialistas e as colónias. Por desgraça, nada disto parece interessar demasiado a Zizek, quem, no seu ofuscamiento teórico -não exclusivo deste prólogo- pela violência, minimiza, até seu prático desaparecimento, o contexto histórico em que se redigiu o livro, a saber: o de uma socialdemocracia que atravessava a pior crise de sua história depois da votação a favor dos créditos de guerra e à que «uma educação exclusivamente literária e estética arruinou para a acção», tal e como escreve o jornalista H.N. Brailsford para o prefácio à edição original; o de uma União Soviética isolada internacionalmente e em cruenta guerra civil. O carácter contingente das instituições de emergência postas em pé pelos bolcheviques nunca escapou à atenção de seus criadores, nem seu carácter e evolução deixaram de ser uma fonte de preocupações: «Se nossa Revolução de Outubro tiver ocorrido em alguns meses ou sequer em algumas semanas após a conquista do poder pelo proletariado em Alemanha, França e Inglaterra, sem dúvida de nenhum género, nossa revolução tivesse sido a mais pacífica, a menos "sangrenta" das revoluções possíveis no mundo. Mas este ordem histórico -a primeira vista o mais natural e em todo caso o mais ventajoso para a classe revolucionária russa- não foi infringido por culpa nossa, senão por culpa dos acontecimentos: em lugar de ser o último, o proletariado russo foi o primeiro. Precisamente esta circunstância foi a que deu, após o primeiro período de confusão, um carácter encarnizadísimo à resistência das antigas classes dominantes em Rússia e obrigou ao proletariado russo, no momento dos maiores perigos, das agressões do exterior e os complôs e levantamentos no interior, a recorrer às crueis medidas de terror governamental. Ninguém pode sustentar actualmente que estas medidas tenham sido ineficaces. Mas talvez se pretenda as considerar como "inadmissíveis"» (p. 150).

E mais adiante: «Em Rússia, a elite dirigente da classe operária é demasiado reduzida. Esta elite praticou a acção política ilegal. Durante muito tempo sustentou uma luta revolucionária. Viveu em países estrangeiros. Leu muito nos cárceres e no desterro, adquiriu uma considerável experiência política e uma grande amplitude de critério. Representa o melhor da classe operária. Por trás dela vem a geração mais jovem, que participa conscientemente na revolução desde 1917. É uma parte muito valiosa da classe operária. Onde quer que dirijamos a mirada: à organização soviética dos sindicatos, à acção do partido em frente à guerra civil..., o papel director desempenha-o esta elite do proletariado. A principal acção governamental do poder soviético nestes anos e médio consistia em manobrar com essa elite de trabalhadores, que enviava ora a um frente ora a outro. As capas mais baixas da classe operária, de origem camponês, ainda que de espírito revolucionário, ainda são muito pobres em iniciativa. Que padece o mujik russo? Um mau gregário: a ausência de personalidade, isto é, o que foi cantado por nossos narodnikis reaccionários, ou glorificado por Lev Tolstoi, na pessoa de Platón Karatáyev: o camponês dissolve-se na comunidade e submete-se à terra. Está claro que a economia socialista não se funda nos Platón Karatáyev, senão nos trabalhadores que pensam, dotados de espírito de iniciativa e conscientes de sua responsabilidade. É preciso a toda costa desenvolver no operário o espírito de iniciativa. [...] A solidariedade socialista não pode se basear na falta de individualidade e na inconsciencia animal. E é esta ausência de individualidadr precisamente a que se oculta no sistema dos burós ou comités, na administração colectiva» (pp. 286-287).

Consideremos, por dar um exemplo mais, a rejeição ao que Trotsky denomina "*fetichismo do parlamentarismo". Este tem de se tomar novamente em seu contexto histórico e não à tremenda e pretendendo ver nele um julgamento atemporal, como faz Zizek, e isso quando a(s) esquerda(s), especialmente em Latinoamérica, demonstram poder conquistar, aupadas pelos movimentos sociais e organizações cidadãs, amplas maiorias parlamentares sem abandonar seu compromisso com a justiça social e implementando seus programas de reforma sem necessidade de recorrer à coerçom estatal despiadada. Para ir terminando, não está a mais recordar que, como comentou em mais de uma ocasião Daniel Raventós, uma coisa é Trotsky e outra muito diferente os trotskistas, e que inclusive a opinião de Trotsky não sempre foi a mesma, nem dantes nem após a redacção de Terrorismo e comunismo, no qual por verdadeiro não recusa a via parlamentar, como dá a entender o prólogo de Zizek: «As eleições parlamentares não foram nunca para os social-democratas, ao menos em princípio», escreve, «um substitutivo da luta de classes, de seus choques, de suas ofensivas, de suas insurrecçons; foram tão só um médio auxiliar empregado nesta luta -desempenhando um papel a mais ou menos importância, segundo as ocasiões- que tinha de se abolir por completo na época da ditadura do proletariado» (p. 107). Ao calor da onda de protestos sindicais que está a percorrer Europa, me permitam recuperar outro fragmento, nesta ocasião de um artigo escrito em 1911: «Uma greve, inclusive de pouca importância, tem consequências sociais: aumento da confiança em si mesmos dos trabalhadores, fortalecimento dos sindicatos e inclusive, com freqüência, melhoras da tecnologia de produção». Vocês decidem que Trotsky é o que vale a pena recuperar: se o do filósofo ou o do militante.

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