Nos círculos da defesa, "recortar" o orçamento do Pentágono voltou a ser um tema de conversa. O país não deve confundir essa barafunda com a realidade. Qualquer recorte que se faça, ao mais, reduziria a taxa de crescimento do gasto. Os factos essenciais são: os gastos militares dos EUA hoje em dia são iguais aos de todas as outras nações do mundo juntas, uma situação sem precedentes na história moderna.
O Pentágono gasta actualmente mais em dólares constantes do que em nenhum momento durante a Guerra Fria isto apesar da ausência de qualquer coisa que se aproxime remotamente ao que os experientes de segurança nacional chamam "competidor par". O Império do Mau existe só existe na imaginaçom febril daqueles que tremem ante a perspectiva de que China some um oxidado porta-avions dos russos a sua frota ou os que tomam em sério os delírios dos islamistas radicais que prometem, desde o fundo de suas grutas, unir à Umma num novo califato.
Que que estão a comprar os estadounidenses? Lamentavelmente, não muito. Apesar dos exorbitantes gastos (por não falar dos esforços e sacrifícios das tropas estadounidenses), a volta sobre seu investimento é, pelo dizer suavemente, pouco impressionante. A lição principal que surge dos campos de batalha da era pós-11S é a seguinte: o Pentágono simplesmente não chega a traduzir a sua "supremacia militar" numa vitória que valha a pena mencionar.
Washington sabe como se iniciam as guerras e a maneira das prolongar, mas não tem nem a menor ideia de como as acabar. Iraque, a última adição à lista das guerras esquecidas de Estados Unidos, apresenta-se como a Prova A. A cada bomba que explode em Bagdá ou em alguma cidade iraquiana, zarrapicando sangue por toda a rua, põe de manifesto o absurdo que é julgar "a onda" como a façanha épica que celebra o lobby Petraeus.
Os problemas são de carácter estratégico e operacional. As expectativas da Guerra Fria, de projectar o poder dos EUA para aumentar a influência e a posição estadounidenses, já não é aplicável, sobretudo no mundo islâmico. Ali, as actividades militares estadounidenses estão, pelo contrário, fomentando a instabilidade e o anti-americanismo. Como Prova B, basta ver a ciénaga profunda em que se converteu o que Washington denomina AfPak - o teatro de operações militares afegão-paquistani.
Some a isso a montanha de provas que demonstram que o Pentágono, Inc. é uma empresa pessimamente gestionada: absolutamente obstinada, claque, lenta e propensa ao desbadajamento numa escala prodigiosa - especialmente em temas de aquisição de armas e tercerização a "contratistas" de funções anteriormente militares. No que respeita à segurança nacional, como principal critério de decisão, a eficácia (o que funciona) sempre deve prevalecer sobre a eficiência (mas, a que preço?). No entanto, para além de verdadeiro nível, a ineficiência socava a eficácia, e o Pentágono é notável em exceder esse nível. Em comparação, as muito vilipendiadas Três Grandes de Detroit (Ford, General Motors e Chrysler) são protótipos de empresas bem administradas.
Defesas inexpugnáveis
Tudo isto ocorre num contexto de crescentes problemas domésticos: o alto desemprego, um bilião de dólares de déficit federal, a gigantesca dívida, que segue crescendo, e déficits em educação, infra-estrutura e emprego, todos clamam atenção.
No entanto, o orçamento de defesa - nomeadamente inapropiado, já que para o Pentágono, Inc. a defesa, per se, é irrelevante- o orçamento segue sendo uma vaca sagrada. Por que?
A resposta reside em entender as defesas ao redor dessa vaca, que se asseguram de que permaneça intacta e intocável. Exemplificando o que aos militares gostam de chamar "defesa em profundidade", esse escudo consiste em quatro barreiras diferentes, mas que se protegem mutuamente.
Egoísmo institucional: A vitória na Segunda Guerra Mundial não produziu paz, mas uma atmosfera de crise de segurança nacional permanente. Como nunca dantes na história dos EUA, as ameaças à existência da nação pareciam omnipresentes, uma atitude que emergiu no final da década de 1940 e que ainda persiste. Em Washington, o medo - em parte real, em parte artificial - desencadeou uma poderosa resposta.
Uma das consequências foi o surgimento do estado da segurança nacional, uma série de instituições que dependem de (e portanto se esforçaram para perpetuar) esta atmosfera de crise e, assim, justificar sua existência, sua estatus, suas prerrogativas e seus orçamentos. Ademais, surgiu uma indústria armamentística permanente, que cedo se converteu numa importante fonte de emprego e de ganhos corporativas. Os políticos de ambos partidos se apressaram a identificar as vantagens da adaptação a este "complexo militar-industrial", tal como o descreveu o Presidente Eisenhower.
Aliado a este vasto aparelho -que transforma dólares em créditos fiscais, benefícios empresariais, contribuições de campanha e votos (e se alimentando dele)/dele)? tinha um eixo de pseudo intelectuais - os "laboratórios", apoiados pelo governo, os institutos universitários de investigação, as publicações, os grupos de reflexão, e os lobbys da indústria (muitos deles integrados por altos ex-servidores públicos de governo) - dedicado à identificação (ou à criação) de ostensíveis ameaças à segurança nacional, sempre supostamente graves e sempre piorando, para depois elaborar respostas às mesmas.
O resultado: em Washington, as vozes de importância em todos os "debates" sobre a segurança nacional compartilham uma predisposição para o sustentamento de elevadíssimos níveis de gasto militar, por razões que têm a cada vez menos que ver com o bem-estar do país.
Inércia estratégica: Num documento de 1948 do Departamento de Estado, o diplomata George F. Kennan fazia a seguinte observação: "Temos ao redor de 50 por cento da riqueza do mundo, mas só o 6,3 por cento de sua população." O desafio que enfrentam os políticos estadounidenses, continuava, é "desenhar um modelo de relações que nos permita manter esta disparidade". Aqui temos uma descrição dos propósitos dos Estados Unidos que é bem mais sinceira que toda a retórica sobre a promoção da liberdade e a democracia, a busca da paz mundial, ou o exercício de uma liderança global.
O fim da Segunda Guerra Mundial encontrou aos Estados Unidos numa posição de privilégio espectacular. Não em vão, os estadounidenses recordam a época imediata de pós-guerra como uma Idade de Ouro de prosperidade para a classe média. Os políticos, desde a época de Kennan, trataram de conservar essa posição privilegiada. No entanto, seus esforços foram, em grande parte, inúteis.
Depois, em 1950, os políticos (com Kennan, para então, convertido num notável dissidente) chegaram à conclusão de que a posse e o despregue do poder militar era a finque para preservar o estado de exaltação dos Estados Unidos. A presença das forças dos EUA no estrangeiro e sua demonstrada vontade de intervir, já seja aberta ou encubertamente, em qualquer lugar do planeta promoveriam a estabilidade, garantiriam o acesso dos EUA aos mercados e os recursos, e, em general, serviriam para aumentar a influência do país ante amigos e inimigos - essa era a ideia, em todo caso.
Na Europa e o Japão de pós-guerra, esta fórmula conseguiu consideráveis sucessos. Em outras lugares - especialmente em Coréia, Vietnã, América Latina, e (sobretudo após 1980) no chamado Grande Oriente Médio - ou bem produziu resultados mistos ou fracassou catastroficamente. Certamente que os acontecimentos da era pós-11S brindam poucas razões para achar que esse paradigma de presença/projecção de poder serve de antídoto ante a ameaça que representa o yihadismo violento anti-ocidente. Em todo caso, a obstinação com dito paradigma está exacerbando o problema ao criar ainda mais animosidade anti-estadounidense.
Um poderia pensar que as manifestas deficiências do enfoque de presença/projecção de poder - os milhares de milhões gastados em Iraque, e pára que?- poderiam levar a Washington a questionar-se sobre sua estratégia de segurança nacional. Poderia parecer que um pouco de introspecção viria bem. Por exemplo, não seria beneficioso mudar de enfoque para manter o que fica do estatus de privilégio dos Estados Unidos?
No entanto, há poucos indícios de que os nossos líderes políticos, os corpos de oficiais superiores, ou quem formam a opinião pública desde fora do governo, sejam capazes de entreter tais debates. Já seja por ignorância, arrogância, ou falta de imaginação, o paradigma estratégico pré-existente persiste teimosamente, de maneira que, também, como se por defeito, persistem os altos níveis de gasto militar que implica a estratégia.
Disonáncia cultural: Devemos esquecer-nos da ideia de que o surgimento do movimento Tea Party tenha curado as divisões produzidas pelas "guerras culturais". A agitação cultural desatada na década de 1960, e centrada em Vietnã, segue sendo um assunto pendente neste país.
Entre outras coisas, nos anos sessenta destruíram o consenso estadounidense, forjado durante a Segunda Guerra Mundial, sobre o significado de patriotismo. Durante a chamada Guerra Boa, o amor à pátria implicava, inclusive requeria, o respeito ao estado, evidenciado mais claramente na vontade da gente a aceitar a autoridade do governo de impor o serviço militar obrigatório. Os soldados estadounidenses nessa época, a maioria deles recrutados, eram a encarnação do patriotismo, arriscando sua vida para defender ao país.
O soldado estadounidense da Segunda Guerra Mundial era o estadounidense comum e, tanto representavam como refletiam, os valores da nação da que procediam (uma percepção confirmada pelo facto irónico de que os militares se aderiram às normas vigentes de segregação racial). Era "nosso exército" devido a que o exército éramos "nós".
Com Vietnã, as coisas voltaram-se mais complicadas. Os partidários da guerra sustentavam que a tradição da 2 Guerra Mundial era, ainda, aplicável: o patriotismo exigia respeito às ordens do Estado. Os opositores, em mudança, especialmente aqueles que se enfrentavam à perspectiva do serviço militar obrigatório, faziam questão do contrário. Eles reviviram a distinção, formulada uma geração dantes pelo jornalista radical Randolph Bourne, que separa ao país e o estado. Os verdadeiros patriotas, os que verdadeiramente amam a seu país, eram quem se opunham às políticas estatais que consideravam equivocadas, ilegais ou inmorais.
Em muitos aspectos, os soldados que lutaram na guerra de Vietnã se encontraram incomodamente atrapados no centro desta controvérsia. Era o soldado morrido em Vietnã num mártir, uma figura trágica, ou um tonto útil? Quem merece maior admiração: o soldado que lutou com valentia e sem se queixar ou o que serviu e depois se voltou um opositor da guerra? Ou era o verdadeiro herói o que se resistiu à guerra - o que nunca serviu?
O fim da guerra deixou sem resolver estas desconcertantes questões e a decisão do presidente Richard Nixon em 1971 de acabar com o serviço militar obrigatório a favor de uma Força de Voluntários, baseada na ideia de que o país poderia ser melhor servido com um exército que não fosse "nós", só complicou ainda mais as coisas. Assim, também, o fizeram as tendências na política estadounidense, onde autênticos heróis de guerra (George H.W. Bush, Bob Dole, John Kerry e John McCain) perdiam eleições ante opositores com as credenciais militares inexistentes ou excessivamente leves (Bill Clinton, George W. Bush, e Barack Obama), mas que, uma vez no cargo, demonstraram uma notável propensão a derramar o sangue de outros estadounidenses (¡por suposto que nunca a de membros de suas próprias famílias!) em lugares como Somália, o Iraque e o Afeganistão. Todo era mais que um pouco indecoroso.
O patriotismo, um conceito simples em outra época, tinha-se convertido em algo confuso e polémico. Que obrigações, se alguma, impõe o patriotismo? E se a resposta é nenhuma - opção que a cada vez mais estadounidenses consideram correcta- então, segue sendo o patriotismo, em si, uma proposta viável?
Querendo responder a essa pergunta de maneira afirmativa - para distrair nossa atenção do facto de que o patriotismo se tinha convertido em pouco mais que uma desculpa para lançar fogos artificiais e tomar num ocasional dia de descanso - a gente e os políticos encontraram uma maneira do fazer exaltando aos estadounidenses que elegiam servir em uniforme. A ideia foi a seguinte: os soldados oferecem prova vivente de que os Estados Unidos são, ainda, um lugar pelo que vale a pena morrer, que o patriotismo (ao menos em alguns sectores) se mantém vivo e saudável; portanto, os soldados são o "melhor" da nação, comprometidos com "algo maior que sim mesmos" numa terra que, de outra maneira, estava a cada vez mais absorta na busca de uma definição materialista e narcisistas de auto-realização.
Efectivamente, os soldados ofereciam uma garantia farto necessária de que ainda sobreviveriam os valores da "velha guarda", ainda que limitados a um segmento pequeno e pouco representativo da sociedade estadounidense. Em lugar de ser Juan do Povo, o guerreiro de hoje é umha icone, e é considerado moralmente superior ao resto da nação para a qual luta, depositário das virtudes que sustentam a pretensão, a cada vez mais duvidosa, da singularidade da nação.
Politicamente, portanto, "apoiar às tropas" converteu-se num imperativo categórico de todo o espectro político. Em teoria, dito apoio poderia traduzir-se na determinação de proteger às tropas contra abusos, ou em desconfiança dantes de comprometer aos soldados a guerras inecesárias ou desnecessariamente custosas. Na prática, no entanto, "apoiar às tropas" encontrou sua expressão numa insistência em dar-lhe ao Pentágono carta branca para dispor dos recursos do tesouro da nação, criando enormes barreiras para qualquer proposta de redução que afecte, mais que simbolicamente, o gasto militar.
História mau recordada: O duopólio da política estadounidense já não permite uma posição anti-intervencionista com princípios. Ambos partidos são partidos pró-guerra. Se diferencian, principalmente, nas razões que esboçam para defender o intervencionismo. Os republicanos promocionam a liberdade, os democratas fazem fincapé nos direitos humanos. Os resultados tendem a ser os mesmos: uma inclinação por um activismo que sustenta uma incessante demanda de altos níveis de gastos militares.
Historicamente, a política estadounidense alimentava uma viva tradição anti-intervencionista. Os seus principais proponentes incluem figuras como George Washington e John Quincy Adams. Essa tradição encontra seu fundamento não em princípios pacifistas, uma posição que nunca atraiu um amplo apoio neste país, mas no realismo pragmático. Que passou com essa tradição realista? Em poucas palavras, a Segunda Guerra Mundial matou-a - ou pelo menos a desacreditou. Os anti-intervencionistas perderam o intenso debate que se produziu entre 1939 e 1941, e sua causa ficou, a partir de então, marcada com a etiqueta de "ilhacionismo".
O passo do tempo transformou a Segunda Guerra Mundial de uma em massa tragédia num conto moralista, que chama safados aos opositores da intervenção. Já seja explícita ou implicitamente, o debate sobre como devem os Estados Unidos responder a alguma ameaça ostensível - Iraque em 2003, Irã, hoje- é só uma repetição do debate que terminou, finalmente, com os acontecimentos do 7 de dezembro de 1941. Expressar, hoje, cepticismo sobre a necessidade e a prudência de usar a força militar é convidar à acusação de ser um pacificador ou um ilhacionista. Poucos políticos ou pessoas que aspiram ao poder arriscar-se-ão às consequências de ser assim etiquetados.
Neste sentido, a política estadounidense segue estando atrapada na década de 1930 - sempre se descobre um novo Hitler, sempre privilegiando a retórica de Churchill - apesar de que as circunstâncias em que vivemos hoje em dia têm pouca semelhança àquela época. Só teve um Hitler, e está morrido desde faz tempo. Em quanto a Churchill, seus lucros e seu legado são bem mais mistos do que seus batalhões de defensores estão dispostos a reconhecer. E, se alguém merece um crédito especial pela demolição do Reich de Hitler e pela vitória aliada da Segunda Guerra Mundial, é Josef Stalin, um ditador tão vil e criminoso como o próprio Hitler.
Enquanto os estadounidenses não aceitem estes factos, até que não aceitem uma visão mais enfatizada da Segunda Guerra Mundial, uma que tome plenamente em conta os envolvimentos políticos e morais da aliança dos Estados Unidos com a União Soviética e da campanha de bombardeios de destruição dirigida contra Alemanha e Japão, a versão mítica da "Guerra Boa" seguirá proporcionando justificativas simplistas para seguir esquivando a pergunta de sempre: quanto é suficiente?
Ao igual que as barreiras de segurança concéntricas dispostas ao redor do Pentágono, estes quatro factores -egoísmo institucional, a inércia estratégica, a disonancia cultural e a história mau recordada - protegem o orçamento militar de uma análise séria. Para os defensores de um enfoque militarizado da política, estas barreiras são fonte de recursos muito valiosos, que estão dispostos a defender a toda costa.
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