David Casassas faz começar o seu livro sobre Adam Smith com uma cita da History of England de David Hume. «Enquanto a guerra [com os holandeses] prosseguia sem sucessos decisivos para nenhuma das partes», escreve Hume, «em Londres teve local umha calamidade que deixou à gente enormemente consternada. Um fogo que se tinha desatado no estabelecimento de um panadeiro, cerca da ponte, estendeu-se em todas direções com tanta rapidez, que todos os esforços para o extinguir resultaram infructuosos, até o ponto que deixou a umha parte considerável da cidade reduzida a cinzas. Os habitantes, incapazes de achar um pouco de alívio, ficaram reduzidos à categoria de meros espetadores da sua própria ruína; e os lumes, que inesperadamente os rodearam, foram lhes perseguindo de rua em rua. [...] As causas desta calamidade eram evidentes: a estreiteza das ruas de Londres, as casas construídas totalmente de madeira, a estação seca e um violento vento do este que se levantou.» Nas páginas seguintes, David Casassas descreve o impacto cognitivo que teve este acontecimento, inclusive cem anos depois, nos intelectuais britânicos e sinaladamente em Adam Smith, para quem, comparando o fogo com a liberdade como "algo natural", tinha «sentido questionar qualquer iniciativa [...] para controlar a liberdade "natural", neste caso, dos banqueiros [...] Mas Smith apressa-se a assinalar, ato seguido, que, se está concentrada em poucas mãos de um modo inapropriado, essa "liberdade natural" pode pôr em perigo a "a sociedade inteira". Então, é preciso intervir para que não se dêem essas inapropriadas concentrações da "liberdade natural".» [1] As profundas consequências que teve no pensamento europeu do século XVIII o Great Fire of London de 1666 só foram superadas pelo terramoto de Lisboa de 1755. Este seísmo, seguido de incêndios e um tsunami, causou a prática destruição da capital lusa e um número de vítimas ainda hoje desconhecido, mas que, segundo coincidem as estimativas históricas mais fiáveis, superou os 10.000 mortos. A magnitude deste desastre e as descrições das terríveis imagens posteriores ao terramoto propagaram-se rapidamente por toda a Europa, o que, unido à bancarrota das ambições coloniais de Portugal, espoleou o pensamento ilustrado, especialmente as suas críticas à teodicea leibniziana e a monarquia absoluta.
Efetivamente, de te fabula narratur. Até o The Economist vê-se obrigado a reconhecer que «alguns desastres mudam a história: o tsunami do Japão poderia ser um desses desastres.» [2] Como influirá a catástrofe nuclear de Fukushima, para além das reações governamentais e cidadãs que já estão a ter local, é algo que nos anos por vir terão de mostrar. Quase como uma confirmação da máxima mülleriana de que o tempo histórico em ocasiões se acelera acima do nosso entendimento, Fukushima veio a ser o arremate de uma rápida sucessão de notícias ante as quais um não pode senão experimentar um sentimento de mal-estar e fim de siècle: desde a destruição de emprego e *desmantelamiento dos últimos restos do Estado social à crise alimentária, as revoluções no mundo árabe e a guerra civil Líbia. (Outras notícias, como a crise política em Costa de Marfim que ameaça com converter em uma guerra civil ficaram, uma vez mais, fora do foco jornalístico). Pelo cedo, folga dizê-lo, a questão ecológica será inacochável. Na última semana vimos desfilar pelos meios de comunicação aos doutores Pangloss do nuclear -flanqueados pelos inevitáveis todódologos- gavando as supostas bondades de umha energia que é, nos asseguram uma e outra vez, limpa, barata e segura. Mas por eficazes que pretendam os seus autores estes e outros sofismas, dificilmente convencerão à opinião pública internacional porque, como escreveu Rafael Poch, absolutamente todo «o que se pôde dizer no seu dia sobre Chernobyl, os defeitos de desenho daquela central, a lamentável irresponsabilidade laboral que imperava na URSS [...] ficaram em entredito. O motivo do atual acidente foi um grande terramoto, mas os terramotos são habituais no Japão, que é, com grande diferença, o país melhor preparado do mundo, o que mais sabe de terramotos e o melhor organizado contra eles.» [3] Pelo demais, todo o esforço parece destinado ao falhanço ante a mera lembrança, não digamos já a imagem constante, das máscaras *antigás, os trajes de *polipropileno e os contadores Geiger, por não falar das consqüências na saúde das milhares de pessoas afetadas pelo acidente nuclear de Chernobyl.O debate não limitar-se-á à energia nuclear senão que, como recorda Bernhard Potter em um recente editorial para o tageszeitung, as características da sua radiação -invisível e inodora, de efeitos a médio e longo prazo- alerta-nos também da existência de outras ameaças potenciais com as que convivemos diariamente, como os transgénicos ou alguns conservantes químicos. [4] Mas isso não é tudo. Segundo informou na passada quinta-feira a cadeia de televisão japonesa NHK, ao terramoto, o tsunami e à catástrofe nuclear -além das más temperaturas, que dificultam o resgate- pode acrescentar-se ainda um brote de H5N1 (comummente conhecida como gripe aviaria) que, de se estender, multiplicaria os estragos da devastação. [5] Como assinalou em várias ocasiões Mike Davis, este vírus se propaga velozmente graças às condições dos animais nas granjas da indústria agropecuária, produto do seu afã por obter maiores benefícios. [6] A demografía tokiota (13 milhões de habitantes, 35 milhões na área metropolitana), que faria virtualmente impossível a evacuação de toda a população em caso de se produzir uma fusão do núcleo ou uma fuga radiativa em massa, obriga a replantejar-se um modelo urbano baseado no crescimento desproporcionado das cidades e a estudar seriamente a partir de que momento concentrações de população tão elevadas deixam de ser uma vantagem a todos os níveis.
A escassez de informação tanto de TEPCO (a empresa energética responsável pela central nuclear de Fukushima) como do governo, e as notáveis diferenças entre a informação proporcionada por este último e pelos governos ocidentais (sobretudo os dos Estados Unidos e França), que recorda em parte o acontecido em Chernobyl, confirma o que, segundo tudo aponta já, será um dos cavalos de batalha deste século: a transparência informativa. Sem necessidade de ir mais longe, Wikileaks, a organização que deu o pistoletaço de saída desta luta e ao mesmo tempo demonstrado a escassa autonomia dos meios de comunicação no que a jornalismo de investigação se refere, revelou recentemente que a falta de transparência da companhia japonesa dista de ser uma novidade: no 2007 produziu-se já uma fuga depois de um terramoto, mas TEPCO, que verteu centos de litros de água contaminada ao mar, minimizou os danos. [7] Enquanto algumas autoridades do governo japonês chamam a acalma, outras reconhecem estar desbordadas pelos acontecimentos. Pior ainda: no mesmo dia em que o Organismo Internacional da Energia Atómica (OIEA) comunicava que a «situação em Fukushima Daichii segue sendo muito séria mas não piorou», Akio Komiri, o diretor de TEPCO, abandonava a roda de imprensa entre lágrimas, depois de reconhecer que a radiação libertada é suficiente como para matar às pessoas mais afetadas e que, se não se consegue devolver a referigeração à planta, não ficará mais remédio que enterrar a central nuclear em um sarcófago de cimento, como ocorreu em Chernobyl. [8] Umhas horas depois, quando a alerta subia já ao nível 5, o chefe do gabinete de governo do Japão, Yukio Edano, confirmava que se tinham achado altos níveis de radiação no leite e os produtos agrícolas produzidos na região, e, segundo France Press, também restos de iodo radioativo na água da torneira de Tokio. [9] A escassez de informação -quiçais procurada para não alarmar à população, mas que pode acabar gerando o efeito oposto pela desconfiança e o aparecimento de rumores- segue sendo estas últimas horas a pauta.
Em último local, esta crise nuclear, cujo desvincule ainda está por se ver, também nos ensinou uma ou duas coisas dos capitalistas. Segundo o ex diretor do Spetsatom (o organismo soviético para combater os acidentes nucleares) e antigo assessor da Associação Internacional da Energia Atómica (AIEA) Yuri Andreyev -autor de umha paráfrase einsteniana que vem que nem pintiparada: "a diferença do petróleo e o gás, a estupidez humana é inesgotável"- os japoneses prestaram-se «a ceder em segurança a mudança de considerações egoístas. [...] A localização das centrais do Japão, junto ao mar é a mais barata. Os geradores de emergência não os enterraram e, claro, inundárom-se de seguida.... Por trás de tudo isto há corrupção. Não tenho provas, mas não demorarão muito em aparecer. Como pode se desenhar uma central nuclear em uma zona de alto risco sísmico, ao lado do Oceano, com os geradores de emergência em superfície?. Chegou a onda e tudo ficou fora de serviço. Não é um erro, é um delito.» [10] Não pode causar mais que repugnáncia ver como os investidores fugiram despavoridos do Japão, obrigando ao país a fechar os seus parqués para evitar maiores perdas, enquanto o barril de Brent baixava 3'53 dólares (um descenso do 3'1%) devido ao declive da demanda que se espera durante as próximas semanas por parte do país asiático. Na passada quarta-feira um economista da Standard Chartered citado no Guardian calculava friamente os benefícios em longo prazo e declarava que o plano de reconstrução suporá um estímulo para a economia mundial: «acho que a economia do Japão "reagromará". [...] Como a guerra da Coreia, o terramoto pode transformar a economia com um enorme estímulo keynesiano.» [11] Com isso o capitalismo faz bom o apócrifo de José Estaline: a morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de milhares de pessoas, umha estatística.
NOTAS:
[1] O incêndio teve local cerca de um ano e médio após luta contra uma grave epidemia de peste bubónica que se cobrou mais de 70.000 vítimas (a população de Londres era de 450.000 habitantes). David Casassas, A cidade em lumes. A vigência do republicanismo comercial de Adam Smith (Barcelona, Montesinos, 2010), p. 63 e ss.
[2] "Japan's hydra-headed disaster: the fallout", The Economist, 17 de março de 2011.
[3] Rafael Poch, "A onda de Fukushima atinge de pleno a Alemanha", La Vanguardia, 13 de março de 2011.
[4] Bernhard Potter, "Kein Grund zur Beruhigung", tageszeitung, 16 de março de 2011, p. 1.
[5] "Mais de 5.600 mortos e 9.500 desaparecidos pelo terramoto no Japão", El País, 17 de março de 2011.
[6] Mike Davis, "A gripe porcina e o monstruoso poder da grande indústria pecuária", Sin Permiso, 28 de abril de 2009. Mike Davis. Tradução de Marta Domènech e María Julia Bertomeu: "Tem-se-nos acabado o tempo? A pandemia da gripe das aves asiático lume à porta", Sin Permiso, 19 de agosto de 2005. Tradução de Jordi Mundó.
[7] "As lições atómicas que Japão não aprendeu", El País, 16 de março de 2011.
[8] "Nuclear plant chief weeps as Japanese finally admit that radiation leak is serious enough to kill people", Daily Mail, 18 de março de 2011.
[9] "Acham altos níveis de radiatividade em alimentos cerca de Fukushima", Público, 19 de março de 2011.
[10] "Na indústria nuclear não há organismos independentes", entrevista de Rafael Poch, La Vanguardia, 17 de março de 2011; "IAEA urges Japan to give more information on nuclear crise", The Guardian, 18 de março de 2011. [11] "Estoques tumble and manufacturers fear global shortage of car parts", The Guardian, 16 de março de 2011, p. 7.
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