18/04/2011

Aristocráticas terras fora-da-lei

David Runciman, do London Review of books. Tirado de Outras Palavras, aqui. Tradução de Daniela Frabasile.


Dois livros jogam luz sobre paraísos fiscais, onde transitam alegremente (e sonegam impostos…) o crime organizado e os executivos globais


  • Treasure Islands: Tax Havens and the Men who Stole the World by Nicholas Shaxson
    Bodley Head, 329 pp, £14.99, January 2011, ISBN 978 1 84792 110 9
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  • Winner-Take-All Politics: How Washington Made the Rich Richer – and Turned Its Back on the Middle Class by Jacob Hacker and Paul Pierson
    Simon and Schuster, 368 pp, £11.50, March 2011, ISBN 978 1 4165 8870
Como sintetizar Saif al-Islam Gaddafi, filho do ditador líbio e figura emblemática dos nossos tempos, com seu doutorado na London School of Economics-LSE (“O papel da sociedade civil na democratização das instituições de governança global”), suas fundações de caridade, suas diversas propriedades, seu estilo de vida playboy, sua coleção variada de amizades (Peter Mandelson, Nat Rothschild, Prince Andrew), seu fácil acesso ao fundo soberano da Líbia, e sua recentemente declarada vontade de eliminar um a um os inimigos do regime de seu pai, a bala.

Ele é um hipócrita – é claro – mas isso não lhe faz justiça (quem não é?). Ele também é, na visão de alguns, uma vítima: seu infeliz orientador da LSE, David Held, descreveu a saia-justa em que Saif, supostamente reformista, viu-se metido, após a revolta do povo contra seu pai como “coisa de Shakespeare”.

Ele pode ser apenas um bandido de fala suave, e muitos observadores da internet notaram que ele parece copiar o modelo de bandido de fala suave e pretenso empresário Stringer Bell, de A Escuta [The Wire – série de drama da televisão norte-americana]. Mas a palavra que melhor capta Saif Gaddafi vem da consideração mordaz de Nicholas Shaxson sobre a importância dos paraísos fiscais nas finanças internacionais. Shaxson não debate os próprios Gaddafis, mas ele pinta a imagem do mundo em que o jovem Gaddafi, até muito recentemente, sentia-se em casa. Esse é o mundo do offshore1, ou dos paraísos fiscais. Shaxson não limita o termo a seu significado técnico, como uma simples descrição da jurisdição particular que permite que as pessoas eliminem a cobrança de impostos. Ele aplica o termo tanto a pessoas quanto a lugares; a um modo de vida e a um estado de espírito. Vista desta forma, ela se torna uma palavra muito útil. Saif Gaddafi é apenas uma pessoa offshore, que vive em um mundo offshore.

A essência do paraíso fiscal é a necessidade de manter uma sólida aparência de respeitabilidade, enquanto se permite que o dinheiro entre e saia com o mínimo de alarde possível. A elisão2 fiscal, ao contrário da evasão não é uma atividade ilícita, e os paraísos fiscais não existem apenas para permitir que as pessoas escondam seu dinheiro das autoridades. O dinheiro precisa ser acessível, e precisa ser líquido. Por essa razão, as pessoas preferem os paraísos fiscais onde podem administrar seus negócios de maneira relativamente aberta. As jurisdições offshore mais bem sucedidas são as que não perguntam nada, mas que também não mentem. A frase memorável de Shaxson para isso é “teatro de honestidade”. A Suíça sempre foi o mestre, com maneiras formais e documentação cuidadosa. Mas parece que outros campeões desse modo de se fazer negócios são os ingleses. O livro de Shaxson explica como e por que Londres tornou-se o centro do que ele chama de “teia de aranha” das atividades offshore (e, portanto, um lar tão confortável para os gostos de Said Gaddafi). É que offshore é a desdobramento [offshoot, em inglês – o trocadilho é intraduzível] de um império em declínio. Isso se aplica perfeitamente a um país que tem aparência de grandeza e tradicional alto padrão mas, por baixo disso, cheiro de desespero e necessidade urgente de mais dinheiro.

Como Shaxson mostra, muitos dos paraísos fiscais mais bem sucedidos são aqueles que foram, ou ainda são, parte do Império Britânico. Isso inclui Hong Kong, as ilhas Channel e territórios remanescentes como as ilhas Cayman. O que esses lugares oferecem são regimes fiscais limitados ou inexistentes, regulamentações extremamente frouxas, política local fraca, mas muitos dos aparatos de respeitabilidade e democracia. Os depositantes colocam, felizes, seu dinheiro em localidades que dão a impressão de ter jurisdições importantes, como a Inglaterra, sem realmente estar sujeitos às regulamentações britânicas – ou seus tributos.

As ilhas Cayman, ou Jersey, fazem pleno uso de suas conexões com a Inglaterra para assegurar às pessoas que seu dinheiro está seguro (o hino nacional de Cayman ainda é o “Deus salve a Rainha”). Mas quando alguém aponta às autoridades em Londres que esses lugares são usados por criminosos e ditadores para lavagem de seus bens, responde-se que a Grã-Bretanha não tem mais responsabilidade de dizer às colônias como lidar com seus próprios assuntos. É uma função que Hong Kong preencheu antes de ser entregue à China em 1997. Era possível apresentar-se ao mundo como um território com os valores britânicos, mas sem a tendência infeliz de aumentar seus impostos ou padrões de regulamentação em resposta à pressão política. Surpreendentemente, Hong Kong tem a mesma função para a China hoje. Após 1997, o governo chinês preservou Hong Kong como “zona administrativa especial”, autônoma da porção continental em todas as questões, com exceção das relações internacionais e defesa. Como Shaxson coloca: “a analogia com a conexão ambígua entre Inglaterra e Jersey, ou entre a Inglaterra e Cayman, não é coincidência. As elites chinesas querem seu próprio paraíso fiscal, com controle político e judicial completamente separado”. Portanto, os paraísos fiscais também atendem aos interesses de impérios em crescimento.

Outro fato que a maioria desses países tem em comum é que são ilhas. Ilhas tornam-se bons paraísos fiscais, e não só porque podem se separar das exigências políticas do continente. É também porque muitas vezes são comunidades unidas, nas quais todos sabem o que se passa, mas ninguém quer falar por medo de ostracismo. Esses “aquários”, como Shaxson chama, encaixam-se à mentalidade do paraíso fiscal, porque são aparentemente transparentes. Pode-se ver tudo o que acontece, mas quando você olha, não enxerga nada.

Jersey é o padrão: um lugar bom e distinto, com um forte senso de responsabilidade civil e muitas oportunidades para participação da sociedade, incluindo eleições para todos os cargos públicos, mas com partidos políticos fracos, eleições “gerais” escalonadas, e sem mudanças significativas no governo. “Se você não gosta, pode sair” é o lema básico da política de Jersey. Dissidentes não são reprimidos, como seriam em uma ditadura (é o motivo pelo qual ditaduras não são bons paraísos fiscais: nunca se sabe quando tudo vai cair por terra). Os dissidentes são simplesmente autorizados a deixar o país. O mesmo acontece nas ilhas Cayman, com sua minúscula população (por volta de 55 mil), seu legislativo e seu governador-geral nomeados por Londres – que toma todas as decisões difíceis, mas permite que os locais expressem sua opinião. Como um antigo governador-geral , “eu acho que estamos no campo da semântica nesse ponto. Quanto mais naturais de Cayman pudermos colocar em posições de poder, tanto melhor; eles neutralizarão, como pára-raios, as dissidências”.

Essa é a teia, mas onde está a aranha? No centro da história de Shaxson, está a cidade de Londres, que é um tipo de ilha no meio do Estado britânico. Novamente, a ascensão da cidade como local favorito para estrangeiros estacionarem seu dinheiro, não importando quem sejam ou de onde vieram, está relacionada ao declínio do império. Após a II Guerra Mundial, a libra ainda financiava muito do comércio global, mas a economia britânica não era mais capaz de sustentar o valor da moeda frente ao dólar. Como resultado da perda do controle sobre o canal de Suez, que causou uma corrida contra a libra, o governo tentou impor um freio nos empréstimos estrangeiros concedidos por bancos comerciais de Londres.

A resposta dos bancos, com conivência do Banco da Inglaterra (Bank of England), foi converter os empréstimos internacionais para dólares. O resultado foi a criação do chamado “mercado de eurodólar” – efetivamente, um paraíso fiscal. Como as trocas aconteciam em dólares, a Inglaterra não viu necessidade de impor tributos ou regulações a elas; como aconteciam em Londres, os norte-americanos não tinham meios de regular as trocas. Entre os primeiros a detectar as vantagens desse novo sistema estavam os soviéticos, que queriam um local seguro, fora dos Estados Unidos, para guardar seus dólares. Assim os norte-americanos não poderiam apreendê-los, se as relações entre os países se deteriorassem. Eles foram logo seguidos pelos próprios estadunidenses. Ou seja, por bancos norte-americanos e particulares ricos – que viram o mercado londrino como um local para se fazer negócios longe das mãos das autoridades nacionais. O dinheiro começou a se juntar.

O Banco da Inglaterra estava feliz: Londres voltara a ser o eixo central das finanças internacionais. As autoridades norte-americanas, como era de esperar, não gostaram: temiam uma crise do balanço de pagamentos. Mas quando, em 1963, o presidente Kennedy tentou conter a saída da moeda, tributando juros auferidos em papéis estrangeiros, em um esforço para reduzir a saída de dólares para mercados mais lucrativos, o efeito foi contrário às expectativas. Produziu-se o que Shaxson chama de “debandada para o mercado offshore de Londres, livre de taxas e regulamentações”.

Os políticos dos Estados Unidos viram-se diante de um dilema. Eles poderiam tentar enfrentar a ameaça dos paraísos fiscais com maiores taxas de juros domésticas; ou com controle mais forte sobre a saída de moeda e um regime regulatório mais resistente, exigindo que os bancos compartilhassem informações sobre suas atividades em outros países. Ou eles poderiam copiar Londres, criando um paraíso fiscal próprio e mais próximo: em outras palavras, se não pode competir, junte-se a eles. O segundo era o caminho de menor resistência – entre outras coisas, era uma maneira útil de reforçar a posição do dólar como moeda de reserva global. Com o tempo, foi o que o que escolheram. Lentamente, no final da década de 1960 e na década de 1970, e muito mais rápido nas décadas de 80 e 90, os Estados Unidos desregulamentaram seus controles financeiros e permitiram que o dinheiro se movesse com poucas perguntas.

Assim que o processo começou, desencadeou uma nova onda de competição entre os próprios Estados norte-americanos, que passaram a oferecer mais facilidades, e regulamentação menos intrusiva, para empresas de fora. Liderando esse caminho estava Delaware, que sempre tentou compensar sua pequena área abrindo-se a qualquer negócio. A partir da década de 80, cada vez mais empresas se mudavam para Delaware, para se beneficiarem da atitude extremamente favorável às administrações das empresas, contra os direitos dos empregados e acionistas. Se você levasse seu negócio a Delaware, (e muitas vezes isso era apenas uma questão de estabelecer um escritório e preencher alguns formulários), seria muito difícil que provassem qualquer coisa contrária a seus interesses, pois as cortes do Estado não se julgavam obrigados a controlar o que você fazia. Novamente, outros Estados colocaram-se diante da pergunta: poderiam isolar Delaware, reforçando suas próprias regulamentações? Ou deveriam tentar competir por uma parte dos lucros? Muitos decidiram competir. O paraíso fiscal tornava-se interno.

Quando autoridades de Delaware percorreram o globo no final da década de 1980, fazendo propaganda de seus serviços (e esperando, entre outras coisas, proporcionar um paraíso fiscal para todo o dinheiro que provavelmente sairia de Hong Kong, prestes a ser entregue à China), criaram a frase “Delaware pode te proteger da política”. Shaxson define um paraíso fiscal como “local que procura atrair negócios oferecendo comodidades politicamente estáveis que ajudassem pessoas ou entidades a contornar as regras, leis e regulamentações de jurisdições que existiriam em outros lugares”. Mas esse é o ponto crucial: onde está a política? Por que esses movimentos não geram resistências ou, ao menos, controvérsias?

No caso de Delaware, como em outras comunidades “aquário”, o tamanho provavelmente explica (por muito tempo, a política de Delaware foi moldada pela influência da família Du Pont, cujas vastas operações químicas dominavam a economia local). E no caso de Washington, onde a mudança para uma mentalidade offshore em nível nacional pode encontrar sérias oposições políticas? O que aconteceu com os representantes de todas as pessoas que não têm muito dinheiro para aplicar, que não podem realocá-lo mesmo que queiram, e que têm interesses em um sistema fiscal justo, aberto e amplamente progressivo? Eles não perceberam o que estava acontecendo?

Essa é a questão que Jacob Hacker e Paul Pierson abordam em Winner-Take-All Politics. Eles se estendem muito sobre offshore, mas a história que contam tem um surpreendente paralelo com a estabelecida por Shaxson. Uma das maneiras de identificar um ambiente offshore, de acordo com Shaxron, é que a política local é capturada pelos serviços financeiros. Para Hacker e Pierson, isso, mais do que qualquer outra coisa, explica o motivo pelo qual os ricos ficaram muito mais ricos nos últimos trinta anos. E por “ricos”, não entendem os “genericamente ricos”. Falam dos muito ricos. A explosão da renda dos “de cima”, ocorrida desde a década de 1970, não beneficiou 1% da população – mas, apenas, 0,1%. Desde 1974, a parcela da renda nacional abocanhada pelo 0,1% mais rico da população norte-americana cresceu de 2,7% para 12,3% do total. Trata-se de uma redistribuição alucinante de renda dos que não têm para os que têm muito.

Quem são essas pessoas? Como Hacker e Pierson apontam, eles “não são, em sua maioria, celebridades nas artes, entretenimento ou esportes. Nem são os rendistas, que vivem da riqueza acumulada, como ocorria no começo do século passado. A maioria substancial é de executivos e empresários, e uma parte crescente deles são administradores financeiros de empresas.

1Offshore: Em tradução literal, “fora da costa”, ou “em alto mar”. O termo é empregado para designar empresas ou instituições financeiras que se localizam fora da jurisdição dos respectivos Estados nacionais – escapando, desta forma, à cobrança de impostos.

2Elisão fiscal é um termo técnico que designa a prática de buscar brechas na lei para evitar o pagamento de impostos. Ao contrário da evasão, ela procura burlar o espírito da lei, embora respeitando, formalmente, seu texto.

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