18/04/2011

Os três super-heróis de Chernóbyl

Artigo tirado de aqui. Pode que salvaram milhons de pessoas sacrificando as suas vidas, mas já ninguém se lembra. A traduçom é de nosso.

É umha das histórias mais conhecidas do nosso tempo: o dia 26 de abril de 1986, o reator nº4 da central nuclear de Chernóbyl estourou durante o transcurso dumha prova de segurança mal executada, a conseqüência de 24 horas de manipulaçons insensantas e mais de duzentas violaçons do Regulamento de Segurança Nuclear da Uniom Soviética. Estas açons conduzírom ao envelenamento por xénon do núcleo, levando-o a um embalamento neutrónico seguido por umha excursom de energia que culminou em duas grandes explosons às 01:24 da madrugada.

Sobre Chernóbyl contárom-se muitas mentiras. E contárom-nas todos, desde as autoridades soviéticas do seu tempo até a indústria nuclear ocidental, passando polos propagandistas de todos os signos e a coleçom de conspiranoicos habituais. Há umha delas que me molesta de modo particular, e é essa de que os liquidadores - o quase milhom de pessoas que acudírom a ecarregar-se do problema- era umha horda de pobres ignorantes levados lá sem saberem a classe de monstruo que tinham diante. E molesta-me porque constitui um despreço ao seu heroismo.

E porque é radicalmente falso. Umha turba ignorante nom serve para rem num acidente tenológico tam complexo. As equipas de liquidadores estavam compostas, sobretodo, por bombeiros, científicos e especialistas da indústria nuclear; tropas terrestres e aéreas prontas para a guerra atómica; e engenheiros de minas, geólogos e mineiros do uránio, por mor da sua ampla experiência na manipulaçom destas substáncias. É néscio supor que esta caste de pessoas ignoravam os perigos dum reator nuclear destripado cujos conteúdos ves brilar perante os teus olhos num enorme buraco.

Os liquidadores acudírom, sabiam o que tinham perante si, e a pesar disso realizárom o seu trabalho com enorme valor e responsabilidade. Centos, milheiros deles, de maneira heroica até o calofrio. Os bombeiros que turbavam entre vómitos e furricas radiológicas para subir ao mítico telhado de Chernóbyl, onde havia mais de 40.000 roentgens/hora, para apagar desde ali os incêndios (a radiaçom ambiental normal som uns 20 microrroentgens/hora). Os pilotos que detinham os seus helicóteros justo por cima do reator aberto e refulgente para esvaziar sobre ele os buckets de areia e argila com chumbo e boro. Os ténicos e soldados que corriam a toda velocidade polas galerias devastadas cantando-se a berros as leituras dos contadores Geiger e os cronómetros para romper paredes, restabelecer conexons e bloquear canalizaçons em quendas de quarenta ou sessenta segundos arredor das turbinas (20.000 roentgens/hora). Os mineiros e engenheiros que trabalhavam em túneis subterráneos, inundando-se constantemente com auga de sinistro brilho azul, para instalar as tuberias dum cambiador de calor que lhe roubasse algo de temperatura ao núcleo fundido e radiante a escassos metros de distáncia. Os milheiros de trabalhadores e arquitetos que levantavam o sarcófago ao seu redor, retiravam do entorno os escombros furiosamente radioativos e evacuavam à populaçom. Agás os soldados submetidos a disciplina militar, a ninguém se lhe proibia colher o petate e ir-se se nom queria seguir ali; quase ninguém o fixo. É mais: muitos deles chegárom como voluntários desde toda a URSS, especialmente muitos estudantes e pós-graduados das faculdades de física e engenheria nuclear. Esta foi a classe de homens e nom poucas mulheres que alguns acreditam ou querem acreditar umha turba ignorante e patética. Isto fôrom os liquidadores.

   Chamavam-lhes, e chamavam-se a si próprios, os bio-robots, que seguiam funcionando quando o aço cedia e as máquinas marravam. Nom o figêrom por quartos, nem pola fama, do que tivêrom bem pouco. Figêrom-no por responsabilidade, pola humanidade e porque alguém tinha que fazer o maldito trabalho. Hoje quero falar de três deles, que figÊrom algo ainda mais extraordinário num lugar onde o heroismo era cousa corrente. Por isso, só se me ocorre denominá-los os três super-heróis de Chernóbyl.





Um helicótero Mi-8 toca os cables dum gindastre utilizado na construçom do sarcófago e cai mentras intenta descarregar areia com boro sobre o reator aberto, o 2 de outubre. As operaçons de liquidaçom extendêrom-se durante mais dum ano.





O monstruo da auga que brilha em azul.

O único que há de certo nestas suposiçons sobre a ignoráncia dos liquidadores é que, nas primeiras horas, nom sabiam que havia extourara o reator. Porém nom o sabiam porque ninguém o sabia. A mesma lógica errónea dos responsáveis da instalaçom que provocou o acidente fixo-lhes crer que explodira o intercambiador de calor, nom o reator; e assim o informárom tanto ao pessoal que acudia como aos seus superiores. Há umha história um tanto sinistra sobre os avions que levavam ao lugar a destacados membros da Academia de Ciências da URSS dérom-se a volta no ar por ordens do KGB quando este descubriu, através da sua equipa de proteçom da central, que explodira o reator (para além das suas atribuçons de espionagem polo que é tam conhecido, o KGB "uniformado" desempenhava na Uniom Soviética um papel muito semelhante ao da nossa Guarda Civil, exceptuando tráfico, mas incluíndo a segurança das instalaçons radiológicas).








Na manhá imediatamente posterior ao acidente, um helicótero militar obtém as primeiras tomas de vídeo onde se observa o reator aberto e fundindo-se.

Devido a este motivo, nun primeiro momento botárom-se sobre o buraco milhons de litros de auga e nitrógeno líquido, com o propósito de manter frio e proteger assim o reator que criam a salvo e selado mais alá das chamas e o denso fumo preto. Isto contribuiu para piorar as conseqüências do sinistro, pois a auga vaporizava-se instantáneamente ao tocar o núcleo fundido a mais de 2.000 ºC; e saia disparada rumo à estratosfera em forma de grandes nuvens  de vapor que o vento arrastaria em todas direçons.

De todos os modos, tinha pouco arranjo: era preciso apagar os enormes era preciso apagar os enormes incêndios. Quando o lume ficou extinguido por fim, nom só passara a contaminaçom ao ar, senom que agora tinha umha grande quantidade de auga acumulada nas piscinas de segurança sob o reator.

Estas piscinas de segurança, conhecidas como piscinas de bolhas, achavam-se em dous  níveis inferiores e tinham por funçom conter auga por se fosse preciso enfriar de emergência o reator. Também serviam para condensar o vapor e reduzir a presom em caso de que escachara algumha tuberia do circuito primário (daí o seu nome), junto a um terceiro nível que atuava de conduçom, imediatamente debaixo do reator. Assim, em caso de rutura de algumha canalizaçom, o vapor veria-se obrigado a circular por este nível de conduçom e liscar através dumha capa de auga, o que reduziria a sua perigosidade.

 Agora, depois da aniquilaçom, estas piscinas inferiores estavam cheias a reverter com auga procedente das tuberias reventadas do circuíto primário e da empregada polos bombeiros para apagar o incêndio e a futil tentativa de manter frio o reator. E sobre elas encontrava-se o reator aberto, fundindo-se lentamente em forma de lava de cório a 1.660 ºC. Em qualquer momento podiam começar a cair grantes goteiras desta lava poderosamente radioativa, ou até o conjunto completo, provocando assim umha ou várias explosons de vapor que projectassem ´a atmosfera centos de toneladas deste corio. Isso teria multiplicado a grande escala a contaminaçom provocada polo acidente, destruíndo o lugar e afetando gravemente a toda Europa. Aliás, a mistura de auga e corio radioativos liscariam e infiltrariam-se no subsolo, contaminando as augas subterráneas e pondo em grave risco o subministro `a achegada cidade de Kiev, com dous milhons e meio de habitantes, numha espécie de síndrome de China.

Tomou-se, daquela, a decisom de esvaziar estas piscinas de maneira controlada. Em condiçons normais, isto seria umha tarefa doada: bastava com abrir as suas esclusas mediante umha singela ordem ao computador SKALA que gestionava a central, e a auga fluiria com segurança a um reservorio exterior. No entanto, com os sistemas de controlodestruídos. De facto, a única maneira de fazê-lo agora era atuando manualmentenas válvulas. O problema é que as válvulas estava sob a válvula, dentro da piscina, perto do fundo cheio de escombros altamente radioativos que a faziam brilhar lenemente em cor azul pola radiaçom de Cherenkov. Justo debaixo do reator que se fundia, emitindo um sinistro brilho rúbio.
  

 Assim, como as máquinas já nom podiam, era trabalho para os bio-robots. Alguém teria que caminhar, um passo após outro, para o reatro reventado e ardente ao longo dum cinsento campo de destruçom onde a radioatividade era tam intensa que provocava um sabor metálico na boca, confusom na cabeça e como agulhas na pele. Vendo como as tuas maos se bronceavam por segundos, como depois de semanas sob o sol. E logo submergir-se na auga oleaginosa e de brilho tenuemente azul com o inestável monstruo radioativo por cima das suas testas, para abrir as válvulas à mao: umha operaçom difícil e perigosa até em circunstáncias normais.

  Essa era umha viagem só de ida.

Ao parecer, a decisom sobre quem o faria tomou-se de maneira muito simples; com aquela velha frase que, ao longo da história da humanidade, sempre bastou aos heróis:
- Eu irei.

Os três homens que fôrom.

Os dous primeiros em oferecer-se voluntários fôrom Alexei Ananenko e Valeriy Bezpalov. Alexei Ananenko era um prestigioso tecnólogo da indústria nuclear soviética, que participara extensivamente no desenvolvimento e construçom do complexo eletronuclear de Chernóbyl: cooperou no desenho das esclusas e sabia onde estavam ubicadas exatamente as válvulas. Casado, tinha um filho. Valeriy Bezpalov era um dos engenheiros que trabalhavam na central, ocupando um posto de responsabilidade no departamento de exploraçom. Estava também casado, com umha nena e duas crianças de curta idade.

Os dous eram engenheiros nucleares. Os dous compreendiam mais alá de toda dúvida que se dispunham a caminhar para a morte.

Enquanto se punham o fato de submarinismo sentados num banco, observárom que necessitariam um ajudante para sujeitar-lhes a lámpada subaquática desde o borde da piscina enquanto eles trabalhavam nas profundidades. E mirárom aos olhos aos homens que tinham ao redor. Entom um deles, um moço trabalhador da central sem família chamado Boris Baranov, alçou-se de ombreiros e dixo aquela outra frase que quase sempre segue a anterior:

- Eu irei com vós.

Era meia manhá quando os heróis Alexei Ananenko, Valery Bezpalov e Boris Baranov tomárom um chuponho de vodka para dar-se valor, agarrárom as caixas de ferramentas e botárom a andar rumo à lava radioativa em que se covertera o reator número 4 do complexo eletronuclear de Chernóbyl. Assim, sem mais.

Perante os olhos encolhidos de quem ficárom atrás, os três camaradas caminhárom os mil duzentos metros que havia até o nível -0'5, dim que conversando apacivelmente entre si.  Que tal, quanto tempo sem ver-te, que tal os teus filhos, a ti nom te conhecia, rapaz, eu é que nom som de por aqui. Ou parece que hoje imos trabalhar um pouco juntos, igual podemos aceder melhor por aí, eu vou à válvula da direita e ti à da esquerda, ti ilumina-nos desde lá, parece que vai chover, nom?, E até está bem boa a secretária do engenheiro Kornilov, eh?, já o creio, menudo bibimbao lhe arrearia, pois parece-mo que este ano o Dínamo de Moscova nom ganha a liga. Essas cousas das que falam os bio-robots enquanto vem como a sua pele se obscurece lentamente, vai-se-lhes um chisco a cabeça devido à ionizaçom das neuronas e a boca sabe-lhes a uránio cada vez mais, contendo a naúsea, jogando-se incomodamente porque é como se umha moreia de trasnos maléficos estiveram chantando agulhas na pele. Cinco mil roentgens/hora, chamam a isso.

E sob aquele céu cinsento e os restos fulgurantes dum reator nuclear, os heróis Alexei Ananemko e valeriy Bezpalov submergírom-se na piscina de bolhas do nível -0'5, com umha radioatividade tam sólida que se podia sentir, enquanto o seu camarada Boris Baranov lhes sujeitava a lámpada subaquática. Esta estava danada e falhou pouco depois. Desde o exterior, já ninguém os ouvia nem os via.


Porém, de sócato, as esclusas começárom a abrir-se, e um milhom de metros cúbicos de auga radioativa escapárom em direçom do reservório seguro preparado para tal efeito. Lograram-no. Alguém murmurou que os heróis Ananenko, Bezpalov e Baranov acabavam de salvar a Europa. Resulta difícil determinar até que ponto tinha razom.


 Há versons contraditórias sobre o que sucedeu depois. A mais tradicional di que jamais regressárom, se seguem lá sepultados. A mais provável assegura que chegárom a sair da piscina e celebrar a sua vitória rindo e abraçando-se aos mesmíssimos pés do mosntruo, no bordo da piscina; e até chegárom a regressar os seus corpos, embora nom as suas vidas. Morrêrompouco depois, de síndrome radioativo extremo, nos hospitais de Kieve e Moscova. Ainda outra mais, que se me antolha quase impossível, sugire que Ananenko e Bezpalov finárom, mas o moço trabalhador Baranov pudo sobreviver e anda ou andivo um tempo por aí.

Esta é a história de Alexei Ananenko, Valeriy Bezpalov e Boris Baranov, os três super-heróis de Chernóbyl, de quem se diz que salvárom a Europa ou ao menos a algum que outro milhom de pessoas em milheiros de quilómetros à redonda um frio dia de abril. Fôrom à morte conscientemente, deliberadamente, por responsabilidade e humanidade e sentido do honor, para os demais pudéssemos viver. Quando alguém pense que este género humano nosso nom tem salvaçom, sempre pode lembrar a homens como estes e outros centos ou milheiros polo estivo que também estivêrom ali. Nom circulam fotos deles, nem figérom superproduçons de Hollywood, e até os seus nomes som difíceis de encontrar. Porém hoje, vintequatro anos depois, eu brindo no seu recordo, quadro-me perante a sua memória e dou-lhe mil vezes as graças. Por ir.

Leitura recomendada:
  • A verdade sobre Chernóbyl, com prólogo do Prémio Nobel Andrei Sakharov (1991), escrito polo engenheiro nuclear Grigory Medvédev, um profundo conhecedor deste complexo eletronuclear e da política energética soviética. Inclui um relato exaustivo do acidente e fazendo honra ao seu título, é o que menos mentiras conta segundo a minha opiniom. Seguramente por esse mesmo motivo, é o mais difícil de conseguir. Em Espanha editou-no Heptada con o ISBN 84-7892-049-8; está esgotado, mas sempre se pode tentar umha chamada. Em inglês foi editado com ISBN 1-85043-331-3 (Tauris & Co, Londres) e está disponível aqui.
De visualizaçom necessária:
  •   O coraçom de Chernóbyl. Seguramente, o melhor documentário que se filmou  sobre las consecuencias humanas da desastre. Desde dentro; tam dentro que a diretora da ONG que o apresenta sufreu envelenamiento por césio-137 durante a realizaçom. Duríssimo, mas absolutamente necessário. Em inglês, disponível em YouTube: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4. Disponível aquí. Se che apetece colaborar com esta ONG, podes fazê-lo aquí.

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