23/04/2013

Grécia morreu

Yanis Varoufakis, economista grego. Artigo tirado de Kaos en la Red (aqui) e traduzido por À revolta entre a mocidade.



Aos hospitais já chegam os que desesperados, depois de muitos meses de exclusão social, apresentam quadros só vistos em antigos livros de medicina... um homem com o 90% do seu corpo corroído pela sarna... uma mulher com um tumor de peito do tamanho de uma laranja, tão grande que já assoma pela ferida que se limpa com guardanapos de bar... médicos e enfermeiras que saem do dispensário para que o paciente não lhes veja chorar...

Silencio rádio, termo carimbado durante a Segunda Guerra Mundial, referido à cessação total das transmissões. Aplicado ao âmbito militar significa que não se permite comunicação alguma até nova ordem. O silêncio de rádio tem como objectivo evitar a localização ou alerta por parte do inimigo, impedir que os sinais interfiram com as comunicações oficiais de uma determinada missão, ou operação de resgate.

Silêncio, silêncio absoluto... e que o que não esconda o silêncio... que o esconda o ruído.

Grécia já mal ocupa espaço nos meios, de um tempo a esta parte os seus problemas mal são um murmullo entre o estrondo dos papéis de Bárcenas, as saias de Corina, os diferidos e os simulados... Grécia já não existe, é só um montão de cinzas baixo uma grande cortina de fumaça.

Quiçá seja pura prevenção... quiçá seja pelo nosso bem, quiçá seja que o que foi a Grécia se transformou em uma imensa bola de cristal, a que reflecte com detalhe o nosso porvir .. o que está por chegar... e pelisso já não se fala desses onze milhões de pessoas que não faz muito pareciam ser o centro da economia mundo, o epicentro da grande quebra ocidental... quiçá não seja por nenhuma dessas razões, e seja porque começou a voladura controlada do mundo que conhecemos.

Sento curiosidade por saber como farão para, chegado o momento, voltar a nos ligar com aquele poço de miséria, quais serão as palavras que justifiquem tão prolongada desconexão, a sua saída das portadas dos grandes jornais, como enlaçarão a simples crise com esse inferno em que se converteu Grécia.

Já o sei... dizer-nos-ão que tudo ocorreu ontem... dar-nos-ão cumpridas rações de médias verdades e embalsamados enviados especiais... ou simplesmente calarão... é o mais provável. Saltarão da nada ao holocausto, que isso sempre impacta no telejornal das três, e depois, pouco a pouco, irão administrando as imagens mais duras... os depoimentos dobrados com voz de tarado... e tudo ligeiramente desenfocado, as cores esvaídas  os rostos esmaecidos, com feição de catástrofe em um país muito, muito longínquo, longínquo e diferente... quando diferente significa pior.

O que hoje ocorre na Grécia é muito fácil de entender... é que a crise já passou... e entraram em um indefinível estado de agonia, a médio caminho entre a guerra civil e a postguerra.

O documento de rendición chama-se  MEMORANDUM.

Lá por fevereiro de 2012, os parlamentares gregos puseram a sua assinatura no que não é mais que uma condenação a morte de todo um país. "Memorando de Entendimento" (MOU nas suas siglas em inglês), é a entrega sem condições da soberania da Grécia em mãos de bancos e empresas estrangeiras. Páginas e páginas nas que se desenha o paulatino e sistémico desmantelamento do estado, a usurpação dos seus recursos naturais, da sua indústria, do mais necessário para a sobrevivência dos cidadãos...

O edicto impõe normas estritas para tudo, desde a redução de despesas em medicamentos de vital necessidade às "limitações impostas aos minoristas na venda de produtos de categorias restringidas, como alimentos para bebés." Em outro apartado exige um progressivo recorte do salário dos servidores públicos e demais trabalhadores do governo, descapitalização dos fundos da segurança social e pensões, privatizações de activos de propriedade pública, e uma consequente redução do PIB. Alguns das suas alíneas dizem assim:

"O governo está comprometido a sacar à venda as participações que ainda mantém em empresas propriedade do Estado, se é necessário, para atingir o objetivo da privatização total. O controlo público será puramente testimonial e limitado só a casos críticos..."

"O governo não proporá nem implementará medidas que infrinjam em modo algum as normas do livre movimento de capitais."

"O governo grego deve revogar o direito a greve e à negociação colectiva, derogar a legislação sobre o salário mínimo que socava a 'competitividade dos custos' (já se aplicou em quatro ocasiões a lei marcial)"

"O governo estabelecerá um mecanismo especial para revisar o tratamento de determinados contenciosos judiciais (evasão de capitais), mecanismo que tem de incluir inclusive a possibilidade de eliminar dos arquivos judiciais certos casos em espera de ser julgados"

Atenas permanece oculta baixo uma espessa capa de fumaça, parte dessa fumaça provem das estufas de quem já não podem pagar a factura da luz, de quem arrasaram os bosques que rodeiam a cidade para conseguir madeira grátis e não morrer de frio durante este inverno... outra parte dessa fumaça procede dos edifícios em lumes, edifícios que já não ardem por ser atacados com cocktails molotov, senão com explosivos caseiros.

Na praça de Exarchia, no mesmo centro da capital, já não existe nada que possa recordar ao local que foi no seu dia. O pequeno comércio desapareceu, traficantes de todo o tipo misturam-se com grupos de jovens ansiosos por dar com o responsável pela sua raiva e da sua frustração  a máfia albanesa da heroína estabeleceu-se definitivamente e campa às suas largas, bandas de crianças empreendem-na a golpes com todo aquele que tenha feição de imigrante...

Não bem longe da praça, centos de sacas azuis cheias de fruta são repartidas por membros de "Amanhecer Dourado" entre os passeantes (prévia inscrição voluntária no partido)... já nem sequer se deixam ver pelo bairro os luxuosos descapotáveis carregados de garotos, garotas, e sacos de Louis Vuitton, filhos de famílias acomodadas ansiosos por "saborear a revolução"... a violência já deixou de ser contida, quase ao mesmo tempo que a miséria. Pintadas sem manha cobrem a cada parede, muitas delas reivindicam ataques a edifícios públicos, outras prometem vingança pela morte de Lambros Funtas, membro do grupo armado "Luta Revolucionária"... um muro empapelado com cartazes recordando a morte de um quinzeanheiro chamado Alexis Grigoropulos... mais nomes... todos mortos a tiros durante confrontos com a polícia.

Não só Atenas já não é Atenas... nada é como era na Grécia... tudo se reflete em um espelho imperfecto que já ninguém chama crise... tudo se deformou até o irreconhecível. Carros negros com os cristais tintados chegam de quando em quando às barriadas de imigrantes para os atropelar, inclusive ante a complacente mirada da polícia...

As possibilidades de encontrar trabalho já não são diferentes entre jovens e adultos, todas se reduzem a empregos por horas, a esporádicas reparos a domicílio, a cobrar em especiarias... a ganhar cinco euros ao dia por ajudar em uma oficina ou em uma panadería, a conseguir algo de pão ou chatarra que vender para pagar a gasolina do gerador elétrico... comprar champô, mantequilla, pilhas para a rádio... e poder escutar as palavras de Yannis Stournaras (Ministro de economia Grego): "Se abandonamos a austeridade não receberemos o seguinte trecho do empréstimo. estabelecemos objectivos que temos que cumprir. Se não, perderemos a confiança que começámos a reconstruir"

Os gregos perguntam-se quando começou esta guerra que não viram começar, esta guerra sem trincheiras, sem bandeiras e sem cartazes chamando a filas... esta guerra sem bombas, mas com tanta miséria como a que mais... esta guerra sem notícias da frente.

Amnistia Internacional denunciou ante a Comissão de Direitos e Justiça da UE em Bruxelas o facto de que se esteja a deter a pessoas sem a assistência de um advogado, que lhas incomunique e lhas torture... são de ver os grosseiros retoques das fotografias tomadas aos detentos para ocultar os sinais dos seus rostos. Patrulhas compostas de polícias e membros de "Amanhecer Dourado" patrulham as ruas e dão caça a todo aquele com feição de ser imigrante.

Já são mais que habituais os multitudinarios saques dos supermercados, já ninguém se estranha da cumplicidade dos mesmos empregados que facilitam  aos asaltantes o acesso à comida e artigos de primeira necessidade. São vários os assaltos a sucursais bancárias nos que os ladrões repartiram o dinheiro entre os viandantes.

Centos de pequenos empresários agrícolas negam-se a cumprir a ordem do governo de destruir os seus produtos e decidem distribuí-los gratuitamente por colégios e hospitais.

Quase uma centena de ativistas armados com cocktails molotov atacaram uma mina de ouro e cobre situada ao norte do país, uma mina cuja exploração se cedeu a uma empresa canadiana... uma mina da que se esperam extrair mais de 12.000 milhões de euros só em ouro... uma empresa que paga à o estado grego mal 11 milhões... uma mina que está a causar efeitos desastrosos na agricultura e a pesca de toda a zona.

A metade dos gregos vivem já baixo o que se considera índice de pobreza. O 9,5% de desemprego de antes do "resgate" transformou-se em um 28%... hoje só um da cada sete parados recebe algum tipo de subsídio... subsídios que oscilam entre um mínimo de 180 euros e um máximo de 468 euros... por um período nunca maior de 12 meses. Os mais afortunados... os pensionistas e os que ainda conservam o seu trabalho, se viram obrigados a aceitar um recorte de 50% dos seus rendimentos... a renunciar ao seu direito de estar assegurados.

Na Grécia já não existe nenhum tipo de dedução fiscal para famílias numerosas, em desemprego, ou com membros discapacitados... pelo contrário, criaram-se novos impostos sobre a morada e as rendas do trabalho... as isenções fiscais às grandes multinacionais atingem em alguns casos o 60%... a carga impositiva sobre pequenas e médias empresas incrementou-se em um 420%... e com esse dinheiro recheia-se esses buracos negros chamados "recapitalización bancária" ou "pagamento da dívida"

O consumo de gasóleo para calefação caiu em mais de 75%... e mesmo assim o seu preço multiplicar por três desde 2009. Apesar do frio intenso deste inverno, apesar de que inclusive a Corte Suprema declarou inconstitucional o corte de luz por impago, o governo cedeu às pressões das grandes companhias energéticas e quase um terço dos lares não recebem fornecimento eléctrico desde faz meses.

O orçamento sanitário ficou reduzido à a metade... o copago das medicinas dobrou-se... uma grande maioria dos gregos já não podem pagar os seus medicamentos... Os diabéticos não podem costearse a insulina, o uso de antidepresivos e outros fármacos para prevenir o suicídio, estão fora do menu, as taxas de tuberculoses e VIH são altísimas.

O Centro de Controlo de Doenças da UE emitiu um relatório que avisa contra o mais que provável rebrote de todo o tipo de infecções e doenças contagiosas... a associação de médicos adverte do espectacular incremento de casos nos que bebés são levados aos hospitais com graves problemas estomacais dado que os pais não podem pagar os alimentos adequados à sua idade.

Aos hospitais já chegam os que desesperados, depois de muitos meses de exclusão social, apresentam quadros só vistos em antigos livros de medicina... um homem com o 90% do seu corpo corroído pela sarna... uma mulher com um tumor de peito do tamanho de uma laranja, tão grande que já assoma pela ferida que se limpa com guardanapos de bar... médicos e enfermeiras que saem do dispensário para que o paciente não lhes veja chorar...

"Grécia deve sair, rápida e temporariamente do Euro, e ainda a risco da definitiva destruição da sua economia, a sua moeda terá de ser devaluada em um 20/30%. A situação actual chegou a um ponto tal de degradação que poderia ser considerada como tragédia humanitária, e por tanto, deveríamos começar a baralhar a hipótese de pedir a intervenção da ONU".

Estas são as recomendações de um recente relatório apresentado com urgência ante o Conselho da Europa, o BCE, e o Escritório de Preupuestos e Fazenda da UE. Está assinado pelos mais influentes economistas da Alemanha, entre eles Hans Werner Sinn (assessor pessoal de Merkel).

Provavelmente seguiremos escutando palavras como "resgate" "ajuda" ou "recuperação" durante bem mais tempo... as palavras "genocídio", "catástrofe humanitária", ou "crimes contra a humanidade" ainda demorarão em chegar... se é que chegam.

Alguma razão terá pára que já ninguém fale da Grécia... será por ocultar-nos/ocultá-nos esse futuro que nos vem... será por não alterar essa falsa esperança de que todo este inferno será para bem... ou talvez, singelamente... porque Grécia não suportou tanta ajuda... porque Grécia morreu aplastada pelo resgate... ou quiçá porque, baixo o silêncio rádio e depois da grande cortina de ruído,  Grécia já não existe... e começam a surgir outras novas.

"A economia grega está rematada. A economia grega está em uma tremenda depressão" Não há potência, não há força dentro da economia grega, nem há força dentro da sociedade grega para o evitar... Imaginem-se se estivéssemos em Ohio no 1931 e perguntássemos: Que pode fazer a casta política de Ohio para conseguir sacar a Ohio da Grande Depressão? E a resposta é "nada".

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