19/04/2013

A vingança de Marx, ou como a luta de classes está definindo o mundo

Michael Shuman. Artigo tirado de Sin Permiso (aqui) e traduzido por À revolta entre a mocidade. Michael Schuman é, desde 2002, o correspondente do semanário norte-americano conservador Time em Beijing, China. Especialista em assuntos económicos, antes de trabalhar para Time, foi correspondente do Wall Street Journal e escreveu como colunista na revista de negócios Forbes.  

O correspondente da revista Time em Beijing, Michael Schuman, oferece na secção de "Negócios e dinheiro" do conservador semanário norte-americano esta agoniada e reveladora reflexão sobre o mundo actual.





Karl Marx parecia morto e enterrado. Com o afundimento da União Soviética e o grande salto chinês para o capitalismo, o comunismo desvaneceu-se para os mundos pitorescos dos filmes de James Bond ou para o mantra manipulado sobre Kim Jong Um. O conflito de classe que Marx considerava como determinante no curso da história parecia se desvanecer em uma era próspera de livre comércio e livre empresa. O inabarcável poder da globalização ligou as mais remotas cantos do planeta com os lucrativos bonos das finanças e as indústrias deslocalizadas e sem fronteiras, oferecendo a todo mundo, desde os gurús tecnológicos de Sillicon Valley até as camponesas chinesas, amplas oportunidades de se fazer rico. Nas últimas décadas do século XX, Ásia bateu quiçá o mas notável recorde de redução da pobreza da história da humanidade, todo isso graças às muito capitalistas ferramentas do comércio, a iniciativa empresarial e o investimento estrangeiro. O capitalismo pareceu cumprir as suas promessas de elevar a todo mundo para novas cotas de riqueza e bem-estar. Ou isso chegamos a achar...

Com a economia global em uma longa crise, e com trabalhadores de todo mundo vítimas do desemprego, a dívida e o estancamento dos seus rendimentos, a aguda crítica de Marx ao capitalismo (que o sistema é intrinsecamente injusto e autodestrutivo) não pode ser tão facilmente descartada. Marx teorizou que o sistema capitalista empobreceria inevitavelmente às massas, à medida que a riqueza concentrar-se-ia nas mãos da cobiça de uns poucos, causando crises económicas e reforçando o conflito entre os ricos e as classes trabalhadoras. Marx escreveu que "o agregado de riqueza em um só pólo gera ao mesmo tempo no pólo oposto o agregado de miséria, trabalho duro e agónico, escravatura, ignorância, brutalidade e  degradação mental".

Um expediente a cada vez mais cheio de provas sugere que poderia ter estado no verdadeiro. Lamentavelmente, são evidentes as estatísticas que demonstram que os ricos são a cada vez mais ricos, enquanto a classe média e os pobres a cada vez são mais pobres. Um estudo feito em setembro pelo Economic Policy Institute (EPI) em Washington assinalou que a média anual de rendimentos reais de um homem trabalhador a tempo completo nos EEUU em 2011, uns 48.202 dólares, era inferior à de 1973. Entre 1983 e 2010, o 74% do aumento da riqueza nos EEUU foi a parar às mãos de 1% mais rico, enquanto o mais 60% pobre sofreu um declive, segundo cálculos do EPI. Não surpreende de modo que alguns estejam repasando o que escreveu o filosofo alemão no XIX. Na China, o país marxista que deu as costas a Marx, Yu Rongjun se inspirou nos acontecimentos actuais para escrever um musical baseado no clássico O Capital de Karl Marx. "Um se dá conta de que a realidade encaixa com o que escreveu no seu livro", assegura o dramaturgo.

Isso não significa que Marx acertasse completamente. A sua "ditadura do proletariado" não funcionou como estava planeado (1). Mas as consequências deste aumento da desigualdade, são exatamente como o predisse Marx. A luta de classes regressou. O enfurecimiento dos trabalhadores no mundo vai em aumento e exigem a sua justa parte da economia global. Desde o chão do Congresso dos EEUU até as ruas de Atenas, passando pelas assembleias do sul da China, a actualidade está a ser sacudida por uma escalada na tensão entre o capital e o trabalho, em uns níveis inéditos desde as revoluções comunistas do século XX. Como se resolva este conflito determinará a direcção da política económica global, o futuro do estado do bem-estar, a estabilidade política da China, e quem terá o comando do governo desde Washington até Roma. Que diria Marx do que hoje acontece? "Algo parecido a: adverti-vo-lo", assegura Richard Wolff, um economista marxista na New School de Nova York. "A desigualdade de rendimentos está a produzir um nível de tensões que não via na minha vida".

As tensões entre classes económicas nos EEUU estão claramente à alça. A sociedade mostra-se dividida entre o 99% (a gente normal que luta para sair adiante) e o 1% (os privilegiados, bem conectados e muito ricos que a cada vez o são mais). Em um inquérito do Pew Research Center publicado em ano passado, dois terços dos interrogados achavam que EEUU sofria um conflito "forte" ou "muito forte" entre ricos e pobres, um aumento significativo de 19 pontos desde 2009, chegando a ser considerada o primeiro fator de divisão da sociedade.

O assinalado conflito dominou a política americana. A batalha partidária sobre como arranjar o deficit orçamental da Nação foi, em grande parte, um conflito de classe. A cada vez que o Presidente Barack Obama fala de aumentar os impostos aos americanos mais ricos para reduzir o deficit orçamental, os conservadores assinalam que está a lançar uma "guerra de classe" contra os acaudalados. Assim mesmo, os republicanos estão comprometidos com uma guerra de classe pela sua conta. O plano republicano de estabilização financeira situa a carga do ajuste nas classes médias e pobres, através de recortes nos serviços sociais. Obama baseou uma grande parte da sua campanha para a reeleição caracterizando aos republicanos como insensíveis para a classe trabalhadora. O Presidente acusou ao candidato republicano, Mitt Romney, de ter um plano para a economia norte-americana com um só ponto, "assegurar-se que os tipos de acima joguem com regras diferentes ao resto".

No entanto, no meio desta retórica há sinais que este novo classismo americano mudou o debate sobre a política económica da Nação. A teoria da cascada, que afirma que o sucesso de 1% beneficiará ao 99% restante, se encontra baixo grave suspeita. David Madland, um diretor do Center for American Progress, um think tank com sede em Washington, acha que a campanha presidencial de 2012 fez emergir o debate sobre a reconstrução da classe média, e a busca de uma agenda económica diferente para conseguir este objectivo  "Toda a forma de conceber a economia está a ser revisada", afirma. "Noto que se está a produzir uma mudança fundamental".

A ferocidade da nova luta de classes está a ser inclusive mais pronunciada na França. Em maio passado, à medida que a dor da crise financeira e os recortes orçamentas fez com que a divisão entre pobres e ricos fizesse-se a cada vez mais dura, os franceses votaram ao Partido Socialista de François Hollande, que uma vez proclamou: "não gosto dos ricos".  Parece ter mantido a sua palavra. A chave da sua vitória foi a sua promessa em campanha  de extrair mais dos ricos para manter o estado do bem-estar francês. Para evitar os recortes drásticos que outros políticos na Europa aplicaram para reduzir a amplitude dos seus deficits orçamentas, Hollande planeou aumentar o imposto sobre a renda até o 75%. Apesar de que a sua ideia foi tombada pelo Tribunal Constitucional do país, Hollande está a procurar fórmulas para introduzir uma medida similar. Ao mesmo tempo, Hollande focou a sua acção de governo de novo para a gente corrente. Retirou uma medida impopular do seu predecessor de incrementar a idade de aposentação na França, voltando-a a situar em 60 anos para alguns trabalhadores. Muitos na França querem que Hollande vá ainda mais longe. "A proposta fiscal de Hollande tem que ser um primeiro passo na percepção do governo de que o capitalismo na sua forma actual se voltou tão injusto e disfuncional que corre o risco de implodir se não se reforma em profundidade", assegura Charlotte Boulanger, uma experiente em desenvolvimento e ONGs.

As suas táticas, no entanto, estão a gerar um contra-ataque por parte da classe capitalista. Mao Zedong fizesse questão de que "o poder político aumenta a partir do canhão de uma arma", mas em um mundo onde Das Kapital é mais e mais móvel, as armas da luta de classes mudaram. Em local de pagar a Hollande, alguns dos mais ricos franceses se estão a marchar, se levando com eles empregos e investimentos muito necessários. Jean Emile Rosenblum, fundador da empresa online Pixmania.com, está a restabelecer a sua vida e o seu novo negócio em EEUU, onde sente que o clima é mais hospitalário para os empresários. "O aumento do conflito de classe é uma consequência normal de qualquer crise económica, mas a exploração política disso foi demagógica e discriminatória", assinala Rosenblum. "Em local de confiar nos empresários para desenvolver as empresas e empregos que precisamos, França lhes está a empurrar a se marchar".

A divisão entre pobres e ricos é quiçá mas volátil na China. Ironicamente, Obama e o recentemente instalado Presidente da China comunista, Xi Jinping, devem fazer frente ao mesmo desafio. A intensificação da luta de classes não é só um fenómeno do endividado e estancado mundo industrial. Inclusive nos mercados emergentes que se expandem rapidamente, as tensões entre ricos e pobres se está a converter em uma preocupação de primeira magnitude para os políticos.  Contrariamente ao que muitos dos contrariados americanos e europeus acham, China não foi um paraíso para os trabalhadores. A "fonte de arroz de aço?"(a prática maoísta que garantia aos trabalhadores um trabalho para sempre) evaporou-se junto ao maoísmo, e durante a era das reformas, os trabalhadores tiveram poucos direitos. Apesar de que os rendimentos nas cidades chinesas está a crescer substancialmente, o diferencial entre ricos e pobres é extremamente grande. Outro estudo do Pew revela que cerca da metade dos chineses interrogados considera que a divisão entre ricos e pobres é um grande problema, enquanto 8 em cada 10 está de acordo com o propósito de que  na China "os ricos a cada vez fazem-se mais ricos enquanto os pobres seguem-se empobrecendo".

A adversão está a atingir um ponto de estourido social nas aldeias industriais da China. "A gente de fora vê as nossas vidas muito prósperas, mas a vida real o a fábrica é muito diferente", afirma o trabalhador fabril Peng Ming no enclave de Shenzhen no sul industrial. Com longas horas às suas costas, com o aumento do custo da vida, uns directores indiferentes e muito com frequência com atrasos em paga-las, os trabalhadores começam a parecer autêntico proletariado. "A maneira em que os ricos obtêm dinheiro é através da exploração dos trabalhadores", afirma Guan Guohau, outro trabalhador de fabrica-a em Shenzhen. "O comunismo é ao que aspiramos". A não ser que o governo actue mais decididamente para melhorar o seu bem-estar, assinalam, os trabalhadores quererão de forma crescente actuar pela sua conta". "Os trabalhadores organizar-se-ão mais", prediz Peng. "Todos os trabalhadores devem estar unidos".

Isso pode que já esteja a acontecer. Medir o nível de mal-estar dos trabalhadores na China é difícil, mas os experientes acham que foi aumentando. Uma nova geração de trabalhadores fabriles, melhor informados que os seus pais graças a Internet, se fazem ouvir mais nas suas demandas de melhores salários e condições laborais. Até agora, a resposta do governo foi ambígua. Os políticos aumentaram os salários mínimos para incrementar os rendimentos, reforçaram a legislação laboral para dar aos trabalhadores mas protecção, e em alguns casos, permitiram-lhes ir à greve. No entanto o governo segue desincentivando o activismo  operário independente, muito com frequência através do uso da força. Estas tácticas deixaram ao proletariado da China desconfiado da sua ditadura proletária  "O governo pensa mais nas suas empresas que em nós", diz Guan. Se Xi não reforma a economia para que o chinês da pé se beneficie mais do crescimento da nação, corre o risco de acender o lume do mal-estar social?.

Marx previu exactamente este resultado: "à medida que o proletariado tome consciência do seu interesse comum de classe, fará cair o injusto sistema capitalista e substitui-lo-á por um mundo socialista novo". Os comunistas "declaram abertamente que os seus objetivos só podem ser atingidos com a derrota pela força de toda condição social existente", escreveu Marx. "Os proletarios não têm nada que perder, salvo as suas cadeias". Há sinais que indicam que os trabalhadores do mundo estão a cada vez mais impacientes com as suas debilitadas perspectivas. Dezenas de milhares saíram à rua de cidades como Madrid e Atenas, protestando contra o desemprego astronómico e as medidas de austeridade que estão a piorar as coisas.

Até agora, no entanto, a revolução de Marx está por se materializar. Os trabalhadores pode que tenham os mesmos problemas, mas não se estão a unir para os resolver. O nível da afiliação sindical nos EEUU, por exemplo, continuou o seu declive através das crises económicas, enquanto o movimento Occupy Wall Street decaía. Os que protestam, assinala Jacques Ranciere, um experiente em marxismo na Universidade de Paris, não têm como objectivo remprazar o capitalismo, tal e como Marx predisse, senão simplesmente o reformar. "Não estamos a ver às classes que protestam pedindo o derrube ou a destruição do sistema sociopolítico actual", explica. "O que o conflito de classe produz hoje são chamadas a arranjar os sistemas para que sejam mais viáveis e sustentáveis em longo prazo através de uma maior distributividade da riqueza criada".

No entanto, apesar destes telefonemas,a política económica actual contínua alimentando as tensões de classe. Na China, os altos servidores públicos mostraram pouca convicção à hora de reduzir o desnível de rendimentos e na prática eludiram as reformas que poderiam o ter permitido (na luta contra a corrupção, permitindo a liberalização o sector financeiro). Os governos endividados na Europa caparam os programas do Estado do Bem-estar inclusive em momentos nos que o desemprego aumenta e o crescimento se afunda. Na maioria de casos, a solução eleita para consertar o capitalismo foi mais capitalismo. Os políticos em Roma, Madrid e Atenas estão a ser pressionados por tedores de bónus para que desmantelem a protecção dos trabalhadores e continuem desregulando os seus mercados interiores. Owen Jones, o autor britânico de Chavs: The Demonization of the Working Class [há tradução castelhana na editorial madrilena Capitão Swing; T.], une a isto "guerra de classe desde acima".

Poucos aguentam a investida. O aparecimento de um mercado laboral global desarmou aos sindicatos em todo mundo. A esquerda política, arrastada para a direita desde o violento ataque do livre mercado de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, não soube desenhar um horizonte alternativo crível. "Virtualmente, todos os partidos progressistas e de esquerdas contribuíram em algum momento para o auge dos mercados financeiros, e ao retrocesso dos sistemas de bem-estar para demonstrar que também eram capazes de levar adiante reformas", assinala Rancière. "Diria que as perspectivas de que partidos laboristas ou socialistas ou governos em qualquer lado vão mudar (muito menos derrubar) os sistemas económicos actuais se têm mais bem evaporado".

Isso deixa aberta uma possibilidade escalofriante: que Marx não só diagnosticasse corretamente o comportamento do capitalismo, senão também o seu resultado. Se os políticos não encontram novos métodos para assegurar oportunidades económicas justas, talvez os trabalhadores do mundo decidam, simplesmente, se unir. Pode que então Marx se tome a sua vingança.

______________________________________________________________

 (1) Nota do tradutor galego: o conceito de ditadura em Marx é o conceito de ditadura próprio do seu tempo e presente também em Robespierre. É a "ditadura" da Comuna de Paris que nada tem a ver com a concepção que no século XX se lhe dará a ditadura. Portanto, a "ditadura do proletariado" que se aplicou no "socialimo num só país" é a de Lenine e o leninismo (com as suas variantes mais uniforme no essencial) e não pode culpar-se já que logo dessas "ditaduras" a um autor que nem manejava esse conceito nesse sentido nem queria exprimir isso.

Nenhum comentário: