19/04/2013

É isto, ainda, democracia? Die Linke face o sistema alemão de partido único

Oskar Lafontaine, militante do partido alemão de esquerdas Die Linke (A Esquerda). Artigo tirado de Sin Permiso (aqui) e traduzido por À revolta entre a mocidade.

"Enquanto os grandes patrimónios -e a estrutura social de poder deles decorrente- seguam formando-se de modo que a minoria exploda o trabalho da maioria; enquanto isso ocorra, não poderão, logicamente,  impor-se os interesses da maioria. Por outras palavras: a democracia, que significa uma ordem social no que os interesses da maioria se impõem, naufraga no rocalhar das estruturas de poder armadas pelo partido único alemão."






Nos próximos meses representar-se-á na Alemanha uma comédia. A peça titula-se: O campo da contenda eleitoral. Os papéis principais correspondem a Angela Merkel e Peer Steinbrück. Entre os atores secundários vemos a Horst Seehofer, Sigmar Gabriel, Philipp Rösler, Jürgen Trittin e o resto do pessoal dirigente da CDU/CSU, SPD, FDP e Verdes. Para a Esquerda não está previsto nesta representação papel algum. Com ajuda da polícia política, dos meios de comunicação em mãos de grandes corporaciones privadas e da radiotelevisão de titularidade pública fá-se-á todo o possível para jogar da passarele do capitalismo ao incómodo partido.

O falangueiro escritor norte-americano Gore Vidal deixou-o dito faz já uns quantos anos: "A democracia é manifestamente um local no que se dá um inúmero de eleições com imensos custos sem assuntos programáticos de por médio e com candidatos intercambiáveis". Para ele não tinha já nos EEUU vários partidos, senão "um sistema de partido único com duas asas direitas" trabalhando a favor dos interesses das grandes empresas privadas. E não via nos meios de comunicação senão instrumentos de propaganda para a conservação dos relacionamentos sociais de poder.

Poder-se-á descontar a opinião de Gore Vidal como exagero literário de um escritor, mas o verdadeiro é que Heribert Prantl acaba de nos oferecer na Süddeutschen Zeitung uma translação do julgamento de Gore Vidal sobre a política em EEUU às eleições alemãs em curso para o Parlamento Federal:

"O campo da contenda eleitoral é uma disputa eleitoral que propriamente não existe já". O campo da contenda eleitoral é um termo malhadado, por muito que o acuñara Heiner Geißler. O que Geißler quis significar no seu dia, existia no seu dia como tal. Tinha posições encontradas, opostas, em todas as questões fundamentais da política: política exterior, política económica, política energética, política migratória... As diferenças fundamentais entre os partidos (excetuada a Esquerda) desapareceram."

Americanización

A coisa não oferece dúvida: a americanización da política alemã levou a que hoje, também na Alemanha, tenha um sistema de partido único com quatro asas, para seguir com a imagem de Gore Vidal. As asas chamam-se CDU/CSU, SPD, FDP e Verdes, e atuam todas, umas vezes mais, outras vezes menos, a favor dos interesses dos bancos e das grandes empresas, como o provam a política fiscal dos últimos anos e o inúmero de resgates bancários aprovados. Afirmam todos sem reservas uma ordem económica no que a desigual distribuição do rendimento, do património e do poder leva a que uma minoria faça trabalhar no seu próprio benefício a uma maioria, dando a essa maioria salários e participações subalternas muito por embaixo do que corresponde ao pleno rendimento do seu trabalho. Em oposição ao partido único federal alemão, Die Linke diz: a propriedade deveria dimanar só do próprio fazer, do próprio trabalho, e não de conseguir que outros trabalhem para um. Enquanto os grandes patrimónios -e a estrutura social de poder deles decorrente- seguam formando-se de modo que a minoria "exploda" o trabalho da maioria; enquanto isso ocorra, não poderão, logicamente, se impor os interesses da maioria. Em outras palavras: a democracia, que significa uma ordem social no que os interesses da maioria se impõem, naufraga no rocalhar das estruturas de poder armadas pelo partido único alemão.

Enquanto não se ataquem essas estruturas, assistiremos ao sumo a pugnas face à galeria e a crispadas disputas em torno de objectivos secundários de batalhinhas menores. Quanto menos diferenciam-se as posições políticas fundamentais unas de outras, tanto mais ruidosa deve ser a grita, a fim de dar a impressão de que o campo da contenda eleitoral se mantém vivo. De aqui o julgamento de Heribert Prantl: "É o mais provável que, pese a toda a barafunda organizada em torno da política de rendas, não tenha em toda a Alemanha mais de mil pessoas capazes de poder deletrear as diferenças entre a CDU e a SPD. E o mesmo ocorre com outras políticas". Também o diário [conservador] Frankfurter Allgemeine Zeitung fala de um campo de contenda eleitoral "impróprio".

Também não há que se deixar cegar pelos "casos de plagio" vermelho-verde. Com grande diligência social-democratas e Verdes vieram fazendo suas, com modificações e desnaturalizações várias, tradicionais propostas políticas de Die Linke, a fim de fazer esquecer os desastres sociais causados pelas políticas que desenvolveram durante os seus anos de governo em coligação  relacionamentos laborais precarizadas, salários ínfimos, pauperismo da velhice, destruição dos sistemas sociais de segurança.

Plagianm, desde depois, a ideia do salário mínimo, e o mesmo pode dizer-se respeito das timoratas propostas com que agora pretendem:

* melhorar as aposentações e elevar um tanto o baixo nível das prestações oferecidas desde a sua contra-reforma do Hartz-IV;

* rebaixar o copagamento sanitário e as matrículas universitárias;

* pôr coto ao trabalho temporário e aos contratos exteriorizados de obra;

* aumentar os tipos fiscais marginais altos, gravar fiscalmente o património, as rendas de capital e as transacções financeiras;

* limitar os alugueres, os preços da energia e os interesses por descobertos bancários;

* introduzir eurobonos;

* retirar licenças aos bancos que facilitam a evasão fiscal;

* promover a separação entre banca comercial e banca de investimento;

* limitar as remunerações dos executivos;

* exigir responsabilidade aos credores e proceder a tiras de dívida.

Isso, por nos limitar a uns quantos exemplos.

O roubo de ideias não pode confundir a ninguém: a SPD e os Verdes, o mesmo que CDU/CSU e FDP, são e serão, chegado o caso, secções leais ao sistema do partido alemão federal único. votaram todos de consono a favor de modificar a Constituição para impor um topo de dívida; de consono votaram todos a favor do Pacto Fiscal europeu, bem como pelos diferentes resgates. O que mostra que o "campo da esquerda", SPD e Verdes, não rompeu amarras com as suas velhas e catastróficas políticas do Hartz-IV e da Agenda-2010. O Pacto Fiscal significa o afiançamento desta brutal política de recortes para toda a Europa. Só pelisso se avilantan a SPD e os Verdes a se chamar a si mesmos partidos europeus: porque têm interiorizado e facto sua com descaro a ideia de uma Europa de mercados livres e grandes empresas como a única Europa possível. 

Minas sem explodir semeadas por toda a Europa

De medir-se a realidade social conforme à intenção política declarada, não resultaria um julgamento demasiado duro dizer que ambos protagonistas "de esquerda" do atual "campo de contenda eleitoral" são como artefactos explosivos sem detonar abandonados por toda a Europa. O Conselho Europeu resolveu em Lisboa, em dezembro de 2010, com a colaboração do Chanceler vermelho-verde Schröder, "fazer da UE o espaço económico baseado no conhecimento mais competitivo e dinâmico do mundo: um espaço económico capaz de crescimento duradouro, com mais e melhores postos de trabalho e uma maior coesão social". Essa era a intenção declarada. Como é a realidade?

Os jovens europeus de hoje que, crescentemente açoitados pelo desemprego, leiam isto estarão plenamente justificados para duvidar da capacidade de julgamento e ainda do equilíbrio mental desses estadistas. Quando compreenderão os políticos do partido alemão único que um sistema económico que tem como fim a maximização dos benefícios e do património da minoria necessariamente tem de trazer consigo situações como as que estamos a observar hoje na Europa?

Nesse contexto resulta uma brincadeira de péssimo gosto ouvir dizer de consono a CDU/CSU, SPD, FDP e Verdes que querem pôr a justiça social no centro do "campo de contenda eleitoral".

É lógico também -porque está na natureza do sistema- que ambos "campos" coincidam em converter as guerras pelos direitos humanos no instrumento essencial da sua política exterior. De maneira inigualável tem estampado o Príncipe Harry a quintaessência desta nova era da política exterior alemã na primeira plana do diário sensacionalista Bild: "Resulta sem dúvida notável neste contexto que políticos da SPD e dos Verdes criticassem com tal acritude a Merkel e a Westerwelle, acusando-os de que o governo federal não colaborasse na guerra de Líbia."

O rasgo que faz único a Die Linke

Die Linke, e isso o sabe a grande maioria dos seus partidários e dos seus membros, só pode justificar a sua existência e só pode se sustentar com sucesso nas contendas eleitorais, se não se converte em uma asa mais do partido único. O rasgo que a faz única é advogar por uma ordem económica em que todos recebam o pleno custo do trabalho realizado. Essa constituição económica leva a empresas democráticas cooperativas, e não a estruturas económicas autoritarias com trabalho temporário, empreitadas, salários paupérrimos e minijobs. Leva a uma política exterior pacífica, que procura se assegurar as matérias primas com o comércio, e não com guerras de direitos humanos.

Com esse transfondo resulta claro porqué SPD e Verdes vêm recusando cortantemente desde faz anos as repetidas ofertas de colaboração de Die Linke. Os políticos do partido único alemão querem arranjar-se entre si. Recusam as reformas estruturais que poderiam mudar a constantemente crescente desigualdade na distribuição do bem-estar e das oportunidades na Alemanha. Os programas eleitorais da SPD e dos Verdes, que incorporam, mais ou menos desleídas, propostas do Partido da Esquerda, apenas servem para mascarar a realidade. As eleitoras e os eleitores não devem reparar em que por trás dessas proclamas não há a menor intenção das pôr por obra. Como disse o outrora Grande Maestro das campanhas eleitorais social-democratas Franz Münterfering: "É injusto valorizar aos partidos, após as eleições, conforme às suas promessas eleitorais".

O susodito campo de contenda eleitoral é uma farsa. As eleitoras e os eleitores terão a experiência de um dejà-vu. Depois das eleições, tudo será na Alemanha como antes das eleições, quaisquer que sejam os políticos e as fracções do partido único que formem o governo federal. Assombrosamente, os representantes da economia alemã manifestam, de furtado, a sua preferência por um governo federal vermelho-verde. O antigo chefe da BDI [a organização da patronal industrial alemã], Keitel, resumiu-o assim: "Quando um país precisa fazer reformas político-económicas, o melhor é que o governo que as leve a cabo não tenha uma cor política demasiado suspeito de favorecer aos empresários."



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