09/12/2013

Embalsamamento mediático, amnésia política O Evangelho segundo Mandela

 Alain Gresh. Artigo tirado do site de Le Monde Diplomatique em português (aqui). Na morte de Nelson Mandela, o presidente da República portuguesa, Aníbal Cavaco Silva, enviou condolências ao seu homólogo sul-africano, Jacob Zuma. Aí evoca «o exemplo de coragem política, a sua estatura moral», a dedicação aos «valores da democracia, da liberdade e da igualdade – nas suas palavras, “um ideal por que espero viver e que espero alcançar, mas, se necessário, por que estou preparado para morrer”». Mandela estava preso há 24 anos quando, em 1987, a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, por 129 votos a favor, a Resolução 42/23, que apelava à sua libertação incondicional e se solidarizava com a luta do Congresso Nacional Africano (ANC). Houve apenas 3 estados que votaram em contra: o dos Estados Unidos, sob a presidência de Ronald Reagan; o do Reino Unido, da primeira-ministra Margaret Thatcher; e o de Portugal … do primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva. A amnésia política daqueles a quem ela convém só resulta se as comunidades perderem a memória. Cavaco, representando Portugal, não foi dos que estiveram com Mandela quando ele e «os valores da democracia, da liberdade e da igualdade» mais precisavam. Cavaco esteve do lado do Apartheid. Votou pela manutenção de Mandela na prisão (e nenhuma declaração de voto altera isso). Passaram mais três anos até que Mandela fosse libertado, a 11 de Fevereiro de 1990. Honrar a vida de Mandela é prosseguir, em todo o mundo, a imensa tarefa da emancipação social de que ele foi um exemplo audaz e corajoso.
 

FOTOGRAFIA de Bruce Clarke, artista plástico de origem sul-africana, que trabalha a mil léguas do cinismo e dos diktats da arte conceptual. Antigo militante contra o Apartheid, trata nas suas obras da história contemporânea, da escrita e da transmissão da memória.


«Um herói do nosso tempo», titula um número especial do Courrier international (Junho-Agosto de 2010). «Ele mudou a história», diz o Le Nouvel Observateur (27 de Maio de 2010), aumentando a parada. Acompanhadas do retrato de um Nelson Mandela sorridente, estas duas capas testemunham uma adoração consensual, cuja apoteose foi o filme Invictus, do realizador Clint Eastwood [1]. Com o Campeonato do Mundo de Futebol, todo o planeta comunga no culto do profeta visionário que rejeita a violência, que guiou o seu povo para uma terra prometida onde negros, mestiços e brancos vivem em harmonia. A prisão de Robben Island, onde aquele a quem os seus camaradas chamavam Madiba foi enclausurado durante longos anos – e que é lugar de peregrinação obrigatório para os hóspedes estrangeiros –, recorda um «antes» um pouco vago, esse tempo do maldito Apartheid que só podia suscitar uma condenação universal, a começar pela das democracias ocidentais.

Cristo morreu na cruz, há uns dois mil anos. Muitos investigadores questionam-se sobre a correspondência entre o Jesus dos Evangelhos e o Jesus histórico. O que sabemos da vida terrestre do «filho de Deus»? De que documentos dispomos para descrever a sua prédica? Os testemunhos recuperados no Novo Testamento são fiáveis? Seria de presumir uma maior facilidade de apreender o «Mandela histórico», tanto mais quanto dispomos de um evangelho escrito pela sua própria mão [2], bem como de muitos testemunhos directos. No entanto, a lenda parece estar pelo menos tão distanciada da realidade quanto a do Jesus dos Evangelhos, de tal forma parece intolerável admitir que o novo messias foi um «terrorista», um «aliado dos comunistas» e da União Soviética (a do Gulag), um revolucionário determinado.

O Congresso Nacional Africano (ANC), aliado estratégico do Partido Comunista Sul-Africano, lançou-se na luta armada em 1960, depois do massacre na township de Sharpeville, a 21 de Março, de que resultaram várias dezenas de mortos. Os negros estavam a manifestar-se contra o sistema do pass (passaporte interno). Mandela, até então adepto da luta legal, convenceu-se nessa altura de que a minoria branca nunca renunciaria pacificamente ao seu poder, às suas prerrogativas. Tendo, num primeiro tempo, privilegiado as sabotagens, o ANC também utilizou, é certo que de forma limitada, a arma do «terrorismo», não hesitando em colocar algumas bombas em cafés.

Preso em 1962 e condenado, Madiba rejeitou, a partir de 1985, várias ofertas de libertação em troca da sua renúncia à violência. «É sempre o opressor, e não o oprimido, que determina a forma da luta», escreveu ele nas suas memórias. «Se o opressor utiliza a violência, o oprimido não tem outra escolha que não seja responder através da violência.» E só esta, apoiada em crescentes mobilizações populares e sustentada por um sistema internacional de sanções que, com o passar do tempo, se tornaram cada vez mais incómodas, pôde demonstrar a inanidade do sistema repressivo e levar o poder branco ao arrependimento. Estabelecido o princípio de «um homem, um voto», Mandela e o ANC souberam então dar provas de flexibilidade na implantação da «sociedade arco-íris» e nas garantias outorgadas à minoria branca. Foram mesmo forçados – mas isso é uma outra história – a restringir o seu projecto de transformação social.

A estratégia do ANC beneficiou de um apoio material e moral da União Soviética e do «campo socialista.» Muitos dos seus quadros foram formados e treinados em Moscovo ou em Hanói. O combate estendia-se a toda a África austral, onde o exército sul-africano tentava estabelecer a sua hegemonia. A intervenção das tropas cubanas em Angola em 1975 e as vitórias que aí teve, em particular em Cuito Cuanavale em Janeiro de 1988, contribuíram para enfraquecer a máquina de guerra do poder racista e para confirmar o impasse em que este se encontrava. A batalha de Cuito Cuanavale constituiu, segundo Mandela, «uma viragem na libertação no nosso continente e do meu povo» [3]. Não o esqueceu, tendo feito de Fidel Castro um dos convidados de honra das cerimónias da sua tomada de posse como presidente, em 1994.

Neste choque entre a maioria da população e o poder branco, os Estados Unidos, o Reino Unido, Israel e a França (esta até 1981) combateram «do lado errado», o dos defensores do Apartheid, em nome da luta contra o perigo comunista. Chester Crocker, o homem-chave da política do «envolvimento construtivo» do presidente Ronald Reagan na África austral na década de 1980, escreveu o seguinte: «Pela sua natureza e pela sua história, a África do Sul faz parte da experiência ocidental e é parte integrante da economia ocidental» (Foreign Affairs, Inverno de 1980-1981). Washington, que apoiou Pretória em Angola em 1975, não hesitou em contornar o embargo às armas e em colaborar estreitamente com os serviços de informações sul-africanos, rejeitando qualquer medida coerciva contra Pretória. A maioria negra era instada à moderação, enquanto aguardava uma evolução gradual.

A 22 de Junho de 1988, dezoito meses antes da libertação de Mandela e da legalização do ANC, o sub-secretário do Departamento de Estado norte-americano, John C. Whitehead, explicava ainda na Comissão do Senado: «Temos de reconhecer que a transição para uma democracia não racial na África do Sul levará inevitavelmente mais tempo do que desejamos». Afirmava ainda que as sanções não teriam qualquer «efeito desmoralizador sobre as elites brancas» e que penalizariam em primeiro lugar a população negra.

No último ano do seu mandato, Ronald Reagan tentou uma última vez, mas sem êxito, impedir o Congresso de punir o regime do Apartheid. Nessa altura ele celebrava os «combatentes da liberdade» afegãos e nicaraguenses, enquanto denunciava o terrorismo do ANC e da Organização de Libertação da Palestina (OLP).

O Reino Unido não se ficou atrás. O governo de Margaret Thatcher recusou qualquer encontro com o ANC até à libertação de Mandela em Fevereiro de 1990. Na Cimeira da Commonwealth de Vancouver, em Outubro de 1987, opôs-se à adopção de sanções. Questionada sobre as ameaças do ANC de atacar os interesses britânicos na África do Sul, Thatcher respondeu: «Isso mostra a organização terrorista banal que é [o ANC]». Nessa altura a associação dos estudantes conservadores, filiada no partido, distribuía cartazes que diziam o seguinte: «Enforquem Nelson Mandela e todos os terroristas do ANC! São uns carniceiros». O novo primeiro-ministro conservador David Cameron acabou por decidir pedir desculpas por este comportamento… em Fevereiro de 2010! Mas a comunicação social foi certeira ao recordar-lhe que ele próprio se deslocou à África do Sul em 1989, a convite de um lóbi anti-sanções.

Israel manteve-se até ao fim como o aliado indefectível do regime racista de Pretória, fornecendo-lhe armas e ajudando-o no seu programa militar nuclear e de mísseis. Em Abril de 1975, o actual chefe de Estado Shimon Péres, então ministro da Defesa, assinou um acordo de segurança entre os dois países, Um ano depois, o primeiro-ministro sul-africano Balthazar J. Vorster, um antigo simpatizante nazi, foi recebido com todas as honras em Israel. Os responsáveis pelos dois serviços de informações reuniam anualmente e coordenavam a luta contra o «terrorismo» do ANC e da OLP.

E França? A do general de Gaulle e dos seus sucessores de direita estabeleceu relações descomplexadas com Pretória. Numa entrevista publicada na edição acima citada do Nouvel Observateur, Jacques Chirac vangloria-se do seu apoio de longa data a Mandela. Mas, tal como acontece com muitos dirigentes direita, Chirac tem sobre esta matéria uma memória curta – e o jornalista que o entrevista aceita a sua amnésia sem reagir. Primeiro-ministro entre 1974 e 1976, Chirac homologou em Junho de 1976 o contrato com a Framatome para a construção da primeira central nuclear na África do Sul. Nessa ocasião, o editorial do Le Monde assinalava o seguinte: «A França encontra-se em curiosa companhia no pequeno grupo de parceiros considerados “seguros” por Pretória» (1 de Junho de 1976). «Viva a França. A África do Sul está a tornar-se uma potência económica», titulada a toda a largura da primeira página o diário sul-africano de grande tiragem Sunday Times. Apesar de ter decidido, em 1975, muito por pressão dos países africanos, deixar de vender armas directamente à África do Sul, a França honrou durante vários anos ainda os contratos em curso, enquanto os seus blindados Panhard e os seus helicópteros Alouette e Puma tinham uma licença para serem construídos localmente.

Apesar do discurso oficial de condenação do Apartheid, Paris manteve, pelo menos até 1981, numerosas formas de cooperação com o regime racista. Alexandre de Marenches, o homem que dirigiu o Serviço de Documentação Externa e Contra-Espionagem (SDECE) entre 1970 e 19801, resumiu assim a filosofia da direita francesa: «O Apartheid é certamente um sistema que se pode lamentar, mas é preciso fazer com que ele evolua devagar» [4]. Se o ANC tivesse escutado estes conselhos de moderação (ou os do presidente Reagan), Mandela teria morrido na prisão, a África do Sul teria mergulhado no caos e o mundo nunca teria podido fabricar a lenda do novo messias.

Notas

[1] Mona Chollet, «Les dérobades d’“Invictus”», Le Lac des signes, les blogs du Monde diplomatique, 12 de Janeiro de 2010.
[2] Nelson Mandela, Un long chemin vers la liberté, Fayard, Paris, 1995. (Em português: Um Longo Caminho para a Liberdade, Campo das Letras, Porto, 1995.)
[3] Ronnie Kasrils, «Turning point at Cuito Cuanavale », 23 de Março de 2008, IOL.
[4] Alexandre de Marenches e Christine Ockrent, Dans le secret des princes, Stock, Paris, 1986, p. 228.

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