Noam Chomsky. Artigo tirado de Outras Palavras (aqui).
Três
anos após o início das revoluções árabes, o Oriente Médio testemunhou
um caleidoscópio de desdobramentos, que vão de eleições livres à
repressão violenta de mudanças. Como você descreveria, hoje, a Primavera
Árabe?
No
passado eu a descrevi como uma “obra em progresso”. Lamentavelmente,
agora a expressão “obra em retrocesso” seria mais apropriada. As
ditaduras do petróleo foram capazes de reprimir a maioria das tentativas
de fazer até mesmo reformas moderadas. A Síria foi empurrada
violentamente para o suicídio e provavelmente a divisão. O Iêmen está
submetido à campanha terrorista global dos drones. A Tunísia encontra-se
numa espécie de limbo. A Líbia carece de um governo capaz de controlar
as milícias. No Egito, o maior país do mundo árabe, os militares agiram
com extrema brutalidade – e um apoio popular que não deveriam receber, a
meu ver – no que parece ser um esforço para restaurar seu rígido
controle político e manter seu império econômico, ao reverter algumas
das conquistas mais significativas do período anterior, tais como a
liberdade de imprensa e a independência. Os sinais não parecem bons.
Além
disso, o conflito sunita-xiita instigado pela agressão dos Estados
Unidos e Reino Unido ao Iraque está despedaçando o país e espalhando-se
ameaçadoramente por toda a região. Há duas partes do mundo árabe que
permanecem sendo efetivamente colônias: o Sahara Ocidental, onde as
manifestações por democracia no final de 2010 foram duramente reprimidas
e a luta de sua população por liberdade foi quase esquecida; e, claro, a
Palestina. Lá, as negociações estão em andamento conforme as duas
precondições essenciais impostas pelos EUA e Israel: que não haja
barreiras à expansão dos assentamentos israelenses ilegais e que as
negociações sejam encaminhadas pelos EUA. Ocorre que Washington é parte
no conflito (ao lado de Israel) e vem bloqueando um consenso
internacional indiscutível sobre um acordo diplomático desde 1976, com
raras e temporárias exceções.
Sob
tais precondições, as negociações tendem a ser pouco mais do que um
disfarce para Israel levar adiante seus programas de integrar o que
considera aproveitável, na Cisjordânia (inclusive alguns poucos árabes,
para evitar o “problema demográfico”, e de separar a Cisjordânia de Gaza
– o que viola os Acordos de Oslo e mantém um cerco brutal. Não é um
momento brilhante, mas as fagulhas acesas pela Primavera Árabe
provavelmente explodirão em chamas novamente.
As
esperanças iniciais de uma trajetória linear em direção ao
empoderamento e à democracia há muito desapareceram. A euforia teria
sido um engano? Onde e quando as coisas deram errado?
Nunca
deveria ter havido esperança de uma trajetória linear. A Primavera
Árabe foi um processo de importância histórica, que ameaçou muitos
interesses poderosos. O poder não diz “agradecemos por nos desmantelar” e
sai andando calado.
As
reações do Ocidente oscilaram desde a intervenção militar até a
indiferença, como vimos nos Estados do Golfo. Você percebe algum padrão
subjacente?
O
padrão implícito é familiar: apoio ao ditador favorito durante o maior
tempo possível. Se isso tornar-se impossível, porque os militares ou a
elite econômica voltaram-se contra ele por alguma razão, então trate de
enviá-lo para algum lugar, faça declarações tocantes sobre seu amor à
democracia, e tente restaurar a velha ordem tanto quanto possível.
Acontece repetidas vezes. Para mencionar apenas algumas: Somoza,
Ferdinando Marcos, Duvalier, Suharto, Mobutu…
É
uma política natural para um poder imperial – logo, completamente
familiar. Também é natural que isso seja ocultado. A tarefa da
comunidade intelectual é apoiar o poder e justificá-lo, não miná-lo –
embora alguns quebrem as regras.
Uma
das linhas de clivagem regional parece ser o conflito entre forças
seculares e religiosas. De que maneira essa dicotomia pode ser tratada
construtivamente? Que papel devem desempenhar os governos ocidentais?
Nem
a história, nem a lógica, nem a análise política ou qualquer outra
fonte que não a propaganda nos dá razões para esperar que os sistemas de
poder desempenhem um papel construtivo, a não ser em seu próprio
interesse. Isso vale para os sistemas ocidentais, em especial. Na do
Oriente Médio e Norte da África, os maiores poderes – EUA e Grã Bretanha
– têm apoiado de modo bastante consistente o Islã radical contra o
nacionalismo secular. O favorito tem sido a Arábia Saudita, o estado
islâmico de radicalismo mais extremo, e um estado missionário, que
espalha suas doutrinas wahabistas-salafistas por toda a região.
Há
estudos acadêmicos excelentes e detalhados sobre a “promoção da
democracia” dos EUA por seus mais proeminentes defensores, que admitem,
com relutância, que o governo apoia a democracia apenas se e quando ela
está de acordo com os interesses econômicos e estratégicos – como
qualquer pessoa racional poderia prever.
Que
papel eles deveriam desempenhar? Isso é fácil. Eles deveriam apoiar a
liberdade, a justiça, os direitos humanos, a democracia. Podemos dizer o
mesmo sobre a Rússia e a China. Até certo ponto, forças populares
organizadas podem pressionar os governos nessa direção, mas há poucos
sinais disso, hoje, por várias razões.
Em
outro nível, tensões religioss parecem estar em ascensão. Já em 2004 o
rei Abdullahda Jordânia falou de um “Crescente Xiita”. A imagem de uma
guerra por procuração entre sunitas e xiitas é apropriada para
compreender os atuais conflitos na região?
Uma
das conseqüências mais sombrias da agressão dos EUA e Reino Unido ao
Iraque foi acender conflitos entre sunitas e xiitas que já haviam sido
controlados, levando a uma história de horror que está despedaçando o
Iraque e espalhando-se pela região, com efeitos terríveis e ameaçadores.
E
a honestidade nos levaria a recordar o julgamento de Nuremberg, um dos
fundamentos do direito internacional moderno. Definiu-se que a agressão
seria “o supremo crime internacional, diferindo de outros crimes de
guerra na medida em que contém, em si, o mal acumulado no todo”. Isso
inclui os conflitos sectários, entre muitos outros crimes. A honestidade
também nos levaria a recordar a frase que Robert Jackson,
um membro da Suprema Corte dos EUA proferiu no mesmo tribunal: estamos
dando a esses réus “um cálice envenenado”; se cometermos crimes
semelhantes, devemos sofrer as mesmas consequências – ou então este
Tribunal é uma farsa, não passa de justiça dos vencedores. Uma medida do
abismo entre a cultura moral-intelectual do Ocidente e sua civilização é
o quão bem estas palavras foram ouvidas…
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