Slavoj Žižek. Artigo tirado de Outras Palavras (aqui). Slavoj Žižek é um filósofo e teórico crítico esloveno. É professor da
European Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia
da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias
universidades norte-americanas, entre as quais a Universidade de
Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e
a Universidade de Michigan. Por Slavoj Zizek, Guardian | Tradução: Vila Vudu
Ao unirem três etnias da ex-Iugoslávia, protestos retomam projeto
emancipatória e revelam: é possível enfrentar onda de fundamentalismo
que atravessa o planeta
Semana passada, cidades queimavam,[1] na Bósnia-Herzegovina. Tudo
começou em Tuzla, cidade de maioria muçulmana. Os protestos então se
espalharam até a capital, Sarajevo, e Zenica, mas também até Mostar,
onde vive largo segmento da população croata, e Banja Luka, capital da
parte sérvia da Bósnia. Milhares de manifestantes furiosos ocuparam e
incendiaram prédios públicos. Embora a situação já tenha se acalmado,
persiste no ar uma atmosfera de alta tensão.
Os eventos fizeram surgir teorias da conspiração (por exemplo, que o
governo sérvio teria organizado os protestos para derrubar o governo
bósnio), mas é preciso ignorá-las firmemente, porque, haja o que houver
por trás das manifestações, o desespero dos manifestantes é autêntico.
Fica-se tentado a parafrasear aqui a famosa frase de Mao Tse Tung: há
caos na Bósnia, a situação é excelente![2]
Por quê? Porque as exigências dos manifestantes são as mais simples
que há – emprego, uma chance de vida decente e o fim da corrupção – mas
mobilizaram pessoas na Bósnia, país que, nas últimas décadas, tornou-se
sinônimo de feroz limpeza étnica.
Antes disso, os únicos protestos de massa na Bósnia e em outros
estados pós-Iugoslávia tinham a ver com paixões étnicas ou religiosas.
Em meados de 2013, dois protestos públicos foram organizados na Croácia,
país mergulhado em profunda crise econômica, com desemprego alto e
profundo sentimento de desespero: os sindicatos uniram-se para organizar
uma manifestação em apoio aos direitos dos trabalhadores, ao mesmo
tempo em que nacionalistas de direita[3] iniciavam um movimento de
protesto contra o uso do alfabeto cirílico em prédios públicos em
cidades de minoria sérvia. A primeira iniciativa levou umas duas
centenas de pessoas para uma praça em Zagreb; a segunda mobilizou
centenas de milhares, como, antes, acontecera num movimento
fundamentalista contra o casamento de homossexuais.[4]
A Croácia está longe de ser exceção: dos Bálcãs à Escandinávia, dos
EUA a Israel, da África Central à Índia, está começando uma nova Idade
das Trevas, com paixões étnicas e religiosas explodindo, e com os
valores das Luzes retrocedendo. Essas paixões sempre arderam por trás de
tudo, mas a novidade é que, hoje, aparecem desavergonhadamente
expostas.
Assim sendo, o que fazer? Liberais dominantes nos dizem que, quando
os valores básicos da democracia são ameaçados por fundamentalistas
étnicos ou religiosos, temos todos de nos unir numa agenda
liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que possa ser salvo
e deixar de lado todos os sonhos de transformação social mais radical.
Nossa tarefa, dizem eles, é clara: temos de escolher entre a liberdade
liberal e a opressão fundamentalista.
Porém, quando nos fazem, em tom triunfalista, perguntas
(exclusivamente retóricas!) como “Você deseja que as mulheres sejam
excluídas da vida pública?” ou “Você deseja que todos os que critiquem a
religião sejam condenados à morte?”, o que mais nos deve fazer
desconfiar da pergunta é a obviedade da resposta.
O problema aí é que esse universalismo liberal simplório já perdeu a
inocência, há muito tempo. O conflito entre a permissividade liberal e o
fundamentalismo é, na verdade, um falso conflito – um círculo vicioso e
viciado no qual os dois polos pressupõem-se e geram-se mutuamente, um o
outro.
O que Max Horkheimer[5] disse sobre o fascismo e o capitalismo lá nos
anos 1930s (que os que não querem falar criticamente sobre o
capitalismo devem também calar sobre o fascismo) pode aplicar-se ao
fundamentalismo de hoje: os que não querem falar criticamente sobre a
democracia liberal devem também calar a boca sobre o fundamentalismo
religioso.
Reagindo contra caracterizar-se o marxismo como “o Islã do século
20”, Jean-Pierre Taguieff escreveu que o Islã está em vias de mostrar-se
como o “marxismo do século 20” para prolongar o violento
anticapitalismo do comunismo, depois do declínio do comunismo.
Mas as recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam, pode-se dizer, o antigo insight de
Walter Benjamin, de que “cada ressurgimento do fascismo dá testemunho
de uma revolução fracassada”. O crescimento do fascismo é, em outras
palavras, o fracasso da esquerda e, simultaneamente, prova de que
subsiste um potencial revolucionário, uma insatisfação, que a esquerda
não é capaz de mobilizar. E não se pode dizer exatamente a mesma coisa
do hoje chamado “islamo-fascismo”? O surgimento do islamismo radical não
é perfeito correlato do desaparecimento da esquerda secular nos países
muçulmanos?
Quando o Afeganistão é apresentado como país fundamentalista
islamista “típico”, quem ainda lembra que, há 40 anos, foi o país de
mais forte tradição secular, incluindo um poderoso Partido Comunista que
chegou ao poder no Afeganistão, independente da União Soviética?
Esse é o contexto no qual se tem de compreender os recentes eventos
na Bósnia. Numa das fotos dos protestos, veem-se os manifestantes
exibindo três bandeiras lado a lado: da Bósnia, da Sérvia e da Croácia,
mostrando o desejo de ignorar todas as diferenças étnicas. Para resumir,
temos aqui uma rebelião contra elites nacionalistas: o povo da Bósnia
afinal compreendeu quem é o seu verdadeiro inimigo: não outros grupos
étnicos, mas os seus próprios “representantes” políticos que fingem
protegê-los contra os demais. É como se o velho e tantas vezes mal usado
lema titoísta[6] da “fraternidade e unidade” das nações iugoslavas
ganhasse nova atualidade.
Um dos alvos dos manifestantes era o governo da União Europeia que
supervisiona o estado bósnio, forçando a paz entre as três nações e
oferecendo considerável ajuda financeira para ajudar no funcionamento do
Estado. Pode parecer estranho, porque os objetivos dos manifestantes
são, nominalmente, os mesmos objetivos de Bruxelas: prosperidade e o fim
das tensões étnicas e da corrupção.
Contudo, o modo como a União Europeia realmente governa a Bósnia cria
divisões: a União Europeia só vê, como suas parceiras privilegiadas, as
elites nacionalistas, entre as quais faz uma mediação.
O que as explosões na Bósnia confirmam é que ninguém jamais
conseguirá superar paixões étnicas impondo a elas uma agenda liberal: o
que uniu os manifestantes foi uma mesma radical exigência de justiça.
O passo seguinte e mais difícil será organizar os protestos num novo
movimento social que ignore as divisões étnicas; e organizar novos
protestos – já imaginaram uma cena, com bósnios e sérvios furiosos,
reunidos num comício conjunto, em Sarajevo?
Ainda que os protestos percam gradualmente a força, ainda assim
permanecerão como uma fagulha de esperança, como soldados inimigos que
se abraçavam nas trincheiras, na primeira guerra mundial. Eventos
autenticamente emancipatórios sempre incluem ignorar identidades.
E vale o mesmo para a recente visita de duas representantes do movimento Pussy Riot a New York: num grande show de
gala foram apresentadas por Madonna, na presença de Bob Geldof, Richard
Gere, etc., toda a gangue dos direitos humanos de sempre. Deveriam ali,
isso sim, manifestar solidariedade a Snowden, para mostrar que o Pussy
Riot e Snowden são parte do mesmo movimento global. Sem esses gestos que
aproximem o que, na nossa experiência ideológica diária, parecem ser
coisas incompatíveis (muçulmanos, sérvios e croatas na Bósnia;
secularistas turcos e muçulmanos anticapitalistas na Turquia, etc.), os
movimentos de protesto sempre serão manipulados por alguma
superpotência, em sua luta contra outra.
[2] A citação, atribuída a Mao, é “Há grande caos sob os céus – a situação é excelente” (de http://beijingcream.com/week- in-review/ ) [NTs].
[4] http://www.theguardian.com/ commentisfree/2013/dec/04/ croatia-gay-marriage-vote- europe-rotten-heart
[5] http://www.theguardian.com/ commentisfree/video/2013/jul/ 23/max-horkheimer-critique- instrumental-reason-video ver também, para bibliografia, http://acoisaforadesi. wordpress.com/2008/10/31/max- horkheimer-crtica-da-razo- instrumental/ [NTs].
[6] Referência a Josip Broz Tito (sobre ele, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/ Josip_Broz_Tito) [NTs].
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