30/08/2010

Entrevista com Ángeles Maestro: 'Falam em proteger os pobres, mas governam para os ricos'

Entrevista publicada em Insurgente no número de Dezembro de 2009 e traduzida para o galego por Guilherme Coelho para O Diário.info. Ángeles Maestro é jornalista e umha das dirigentes de Corriente Roja. É colaboradora habitual do portal de contra-informaçom La Haine.



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Como caracterizas a actual situação política espanhola?
A situação política está marcada pela agudização progressiva  
de todos os problemas que não resolveram, nem a Transição, nem todos os governos que se seguiram. Dois grandes assuntos a caracterizam: as dimensões devastadoras da crise económica do capitalismo espanhol, dentro de uma crise sistémica, sem perspectivas de futuro, e a agudização sem precedentes dos conflitos pelos direitos nacionais dos povos, especialmente do conflito basco.
O capitalismo espanhol aprofundou as suas características de atraso científico e tecnológico, de subordinação aos imperialismos dos E.U.A. e da UE e de dependência do gasto público. A isso há que acrescentar a criação de grandes empresas que, quase sem excepção, são o resultado da venda a preços de saldo dos monopólios públicos da banca, das telecomunicações, da energia, da água, do transporte, etc., assim como da privatização do solo e de políticas de habitação ao serviço da especulação imobiliária. Com o apoio de políticas e manobras de pressão dos diferentes governos, muitas vezes mediante autênticas manobras de extorsão para forçar privatizações [1], produziu-se a enorme penetração da banca e das empresas espanholas sobretudo na América Latina. Essa espoliação de recursos, que lhes proporciona suculentos benefícios, é responsável por milhões de despedimentos e pelo empobrecimento das classes populares; origem por sua vez de migrações maciças que se encontram aqui com condições de trabalho semi-escravas, com ferozes leis de estrangeiros e com o desemprego e a desprotecção social mais absoluta como consequência da crise.
Esta liquidação do património público, eixo estrutural do capitalismo espanhol, levada a cabo no Estado pelo PSOE e continuada pelo PP, foi e é executada fielmente por todos os governos das Comunidades Autónomas e municipais com as únicas excepções dos municípios governados pela CUT, como o de Marinaleda, alguns como o de Oleiros na Galiza e aqueles em que tem maioria a Izquierda abertzale.
O rebentamento da crise capitalista derrubou um modo de crescimento económico com pés de barro, centrado no sector imobiliário (especulação urbanística, corrupção institucional e depredação do meio ambiente), turismo (muito sensível ao ciclo económico) e empresas automobilísticas filiais de multinacionais estrangeiras que enfrentam um grave problema de sobreprodução internacional.
Por outro lado, o espectacular crescimento económico dos últimos 15 anos produziu-se mediante uma vultuosa transferência dos rendimentos do trabalho para o capital, com incrementos sem precedentes da taxa de exploração e da precariedade, com reduções sucessivas dos impostos sobre grandes fortunas e benefícios empresariais e das quotizações patronais para a Segurança Social, com um enorme défice exterior intensificado após o ingresso no euro, um défice público gigantesco e um endividamento generalizado das famílias e empresas. Como exemplo deste último tenha-se em conta que só o endividamento do sector imobiliário ascende a 470.000 milhões de euros, equivalente a 50% do PIB. Perante estes dados pode-se avaliar o risco real de bancarrota da banca espanhola e, por conseguinte, os mais de 200.000 milhões postos á sua disposição pelo governo Zapatero são uma desesperada intenção de que esta não aconteça [2].
Neste quadro se produzem também as privatizações dos grandes serviços sociais públicos, a educação, a saúde e os serviços sociais, com a consequente transferência para o capital privado da parte do leão dos orçamentos públicos e com as consequentes degradações da qualidade que caminham rapidamente para a sua conversão em guetos de beneficência para as grandes maiorias, que vêem assim o seu "salário social" reduzido à miséria.
Por detrás destes dados oculta-se o drama quotidiano de mais de quatro milhões de desempregados, cerca de um milhão e meio de famílias sem nenhum rendimento, o esgotamento das raquíticas prestações por desemprego – fruto das sucessivas reformas laborais – os despejos de milhares de pessoas, as graves repercussões sobre a saúde e a vida de que dão conta o intenso incremento dos suicídios e de todo o tipo de doenças mentais e um largo conjunto de sofrimentos anónimos, agravados por carecerem de esperança razoável no futuro e de expressão colectiva.
O exemplo mais evidente do esgotamento do regime político da Transição é a sua absoluta incapacidade para servir de rumo á vontade de soberania dos povos do Estado espanhol, especialmente agudizada na Catalunha e na Euskal Herria.
No caso da Catalunha, a experiência de um Tripartido de "esquerdas" com políticas impossíveis de diferenciar de governos anteriores, privatizações, aceitação de EREs e deslocalizações, incluindo as de "ordem pública" dirigidas pela Iniciativa para Catalunha e que vê cair a sua expectativa de voto enquanto se vê envolta em gravíssimos casos de corrupção, é paradigmática do esgotamento de um modelo. Boa ideia disso dá a escalada de referendos em que o povo catalão está expressando os seus desejos de independência, exactamente no momento em que tudo indica que a próxima sentença do Tribunal Constitucional cortará gravemente uma reforma do Estatuto votada por 92% dos cidadãos. A clareza meridiana deste facto mostrará os intoleráveis limites do aparelho jurídico constitucional que pressagiam um cataclismo a que se referia o presidente Montilla aludindo á capacidade do Tribunal Constitucional de criar independentistas.
Mas é sem dúvida a brutal repressão da Izquierda Abertzale, exercida por uma repetida engrenagem que inclui: a acusação por parte da extrema direita contra pessoas e organizações de pertencer ao "âmbito da ETA", a ordem de detenção e o processo de ilegalização orquestrado por um juiz da Audiência Nacional, e a execução da mesma pelo Ministério do Interior, a que mais claramente põe em evidência a continuidade do aparelho do Estado com o regime da Ditadura [3].
A recusa por parte de sectores muito importantes do povo basco da Constituição e do Estatuo de Guernica, o seu Não no Referendo da NATO, as dimensões da luta operária e popular e o alto grau de apoio eleitoral conseguido pela Izquierda abertzale, expressam – diferentemente do ocorrido com a esquerda política e sindical no Estado espanhol – a persistência da identidade nacional basca, a sua vontade de soberania e o desenvolvimento, ainda que nas condições mais difíceis, de uma densa estrutura política, social e cultural.
Contra isso esbarra uma vez e outra a rede da repressão, legislativa e policial, que articulada sobre a Lei dos Partidos, deve inventar progressivamente medidas mais sofisticadas e brutais para tentar dobrar a vontade do povo basco.
As declarações de Rubalcaba auto-qualificando-se de herdeiro de 50 anos de luta contra-terrorista e afirmando que a Izqueirda Abertzale (IA) não voltará ás instituições, ainda que condene a violência da ETA, revelam as verdadeiras razões da perseguição: acabar com a expressão política da vontade de independência e socialismo.
Tudo indica que, pese embora a dureza da repressão, essa estratégia, da qual faz parte destacada o governo do PSE apoiado pelo PP, pode estar tendo um efeito boomerang. As últimas detenções, as levadas a cabo na sede do LAB e as dos 34 jovens de SEGI, não puderam ocultar ante o povo basco que o que se queria abortar precisamente era a proposta exclusivamente política da Izquierda abertzale, desencadeando uma solidariedade de enormes dimensões expressada na rua. Estas importantes mobilizações, que tiveram precedente imediato na greve geral convocada a 21 de Maio passado, estão sendo acompanhadas por tomadas de posição por parte de outras forças políticas e sindicais bascas favoráveis a cenários como o que pretende abrir a Proposta de Altsasu e que se viu facilitada pela percepção destas forças de que o espantalho espanholista mais rançoso é a única alternativa à liquidação da IA.
Que cenário pode definir-se para op aís, com uma profunda crise mas com uma esquerda quantitativamente muito débil? Poderá o governo e o partido que o apoia continuar enganando milhões de trabalhadores ao dizer que são de "esquerdas"? Qual é o papel das C.O. e UGT?
Por agora, a estratégia das classes dominantes e das forças políticas que as representam, de forma especialmente útil o PSOE, avança sem obstáculos graças ao impagável labor de contenção das C.O. e da UGT que, no meio do desastre em que vivem milhões de trabalhadores, continuam apregoando a paz social como solução. A última demonstração é a convocatória de manifestação estatal em Madrid para o próximo dia 12 de Dezembro "Pelo diálogo social", na qual não denunciam medidas nem responsabilidade alguma do Governo, a ponto de o PSOE anunciar o seu apoio á citada manifestação.
Como analisa o sindicato CO.BAS no seu excelente comunicado, sobram razões para sair á rua contra a crise, contra o Plano da CEOE e contra um governo que fala em proteger os pobres e governa para os ricos, mas não há uma única razão para se manifestar a favor de um diálogo social que tem sido a ruína da classe operária, porque é evidente que o 12 D é uma manifestação de apoio a uma nova contra-reforma laboral [4].
A cadeia que aperta a classe operária, as classes populares, é uma esquerda institucional dobrada perante o governo PSOE e que não ousa desgrudar-se nem um milímetro, como repetem os dirigentes da IU e do PCE, das "centrais sindicais de classe", quando há muito tempo que as mesmas servem de forma privilegiada os seus inimigos de classe.
Os dados reflectidos no citado comunicado das CO:BAS são arrasadores:
Crescimento real dos salários 1995 - 2005, segundo a OCDE... - 0.30%
Crescimento real dos benefícios empresariais 1995 – 2005, segundo a OCDE...+73%
Trabalho temporal em Espanha (33,3%), na UE (14,2%)
ERE,s que segundo o Mº do Trabalho chegam aprovados com assinatura de sindicatos.... 85%
Indemnização por despedimento. 1980: 60 d/ano, agora........... 19 d/ano
Subvenções a sindicatos:
C.O.: 6,4 M euros,
UGT: 6,1M euros
Para Formação: 28M euros
A situação geral que se vive em cada empresa e em cada sector em luta, é uma mescla de indignação e impotência face á actuação por parte das burocracias correspondentes, ás vezes subtil e ás vezes violenta. Os exemplos são incontáveis: SINTEL, SEAT, TELEFÓNICA, a recente greve do metal em Sevilha, a greve estatal da administração de Justiça, a privatização da saúde em Madrid, a enorme quantidade de EREs com benefícios empresariais.
Nem tudo são derrotas. A luta dos metalúrgicos galegos, da TMB barcelonesa, os protestos dos jornaleiros andaluzes, as assembleias e marchas dos desempregados, ou a última greve geral em Euskadi mostram que há onde se apoiar para lutar e impedir que a crise não acabe por fazer-nos retroceder ás condições de há mais de um século, porque essa é a única "saída" concreta para a crise que nos preparam.
Apoiar cada luta, - que ninguém se sinta só no combate - construir a unidade na acção com todas as organizações que se opõem á burocracia sindical e recusam a nova reforma laboral que se prepara, no sentido de reorganizar o sindicalismo de classe, combativo e democrático, é a única salda.
Só na realidade e na acção se pode destruir esse enorme poder económico e político, cultural e mediático, que se erige precisamente sobre o claudicar e a cumplicidade dos supostos representantes dos interesses da classe operária e dos povos. Para isso não há atalhos, só o trabalho organizado em cada centro de trabalho, em cada bairro e em cada localidade, para mostrar o desastre a que nos leva o entreguismo das burocracias sindicais, de apoio ás lutas concretas, de reforço de organizações independentes dos governos e da entidade patronal e de busca da unidade, conseguirá que a brutal guerra social que se prepara para destruir qualquer resistência e impor o que em outras épocas conseguiu o capital em crise mediante guerras, não se imponha.
A luta pela III República é estratégica para a acumulação de forças da esquerda?
A luta para acabar com o regime monárquico imposto pela Transição e com toda a trama das classes dominantes que sobre ele se sustenta é efectivamente estratégico porque este se fez para consumar uma dupla derrota: a dos povos do Estado espanhol após a guerra civil e a do potente movimento operário e popular construído na luta contra a Ditadura.
Quero abrir aqui um debate que me parece necessário.
A traição mais forte aos povos do Estado espanhol perpetrada na Transição foi a imposição da monarquia. Por um triplo motivo:
- porque o rei designado por Franco encarnava, e encarna, a perpetuação do domínio das classes dominantes vencedoras da guerra civil, e dos seus instrumentos de Estado;
- porque a sua aceitação implicava a ruptura com a indispensável continuidade das lutas emancipadoras e muito especialmente com o tesouro de dignidade que nos legaram aqueles que perderam a vida e a juventude na luta contra o fascismo, no campo de batalha, aqui e ao lado, de outros povos europeus, no exílio, nos cárceres, nas valetas em execuções extrajudiciais e nos assassinatos perpetrados por forças repressivas e grupos fascistas;
- porque o seu papel constitucional de chefe das forças armadas, estas por sua vez garantes da unidade de Espanha, erigem o rei como símbolo máximo do nacionalismo espanhol mais arcaico e por isso, máximo baluarte frente aos direitos nacionais dos povos do Estado espanhol.
A consequência de tudo isso é que a luta pela República é efectivamente estratégica e que, sem a força da memória dos que nos precederam, que com tanta fúria como inteligência pretenderam e pretendem retirar-nos, não seremos capazes de reconstruir nossas organizações de classe e de povos soberanos.
O assunto que quero apresentar é se a luta pela III República, quer dizer, por uma República do Estado espanhol, federal ou confederal e continuadora da II, é a formulação adequada.
Que assumamos a enorme legitimidade histórica da II República não quer dizer que ignoremos erros ou assuntos inconclusivos. Por exemplo, a insensibilidade do Governo do Frente Popular frente á legítima luta anti-imperialista dos povos das colónias africanas foi um caldo de cultura que Franco aproveitou bem. São factos reais as dificuldades para a aprovação dos Estatutos catalão, basco e galego, não chegando a consumar-se os dois últimos, fruto de enormes tensões entre o nacionalismo espanhol republicano e os desejos de auto-governo das nacionalidades históricas dos que participavam amplamente nas organizações operárias, incluindo de forma destacada os comunistas.
Para lá da história da II República, há um facto inegável. A identidade nacional e a reivindicação do Direito de Autodeterminação têm servido nas nacionalidades históricas, incluindo a Andaluzia com o exemplo do SOC-SAT, como elemento de resistência e dique de contenção frente á derrocada política, sindical e dos movimentos populares no resto do Estado espanhol. Este facto toma proporções muito maiores em Euskal Herria, onde o repúdio ao regime de Transição e a reivindicação de Independência e Socialismo têm servido para manter a continuidade histórica da luta e das suas organizações.
Estes factos, em minha opinião incontestáveis, aos quais se deveria acrescentar realidades que desconheço, como a do povo canário, cantábrico, asturiano, etc, não pressupõem que se possam criar artificialmente "identidades nacionais" em outros lugares do Estado.
Remeto-me à análise realizada anteriormente pelo que se conclui que um dos elementos chaves que mostra a insustentabilidade do quadro constitucional de 1978, sem dúvida agudizado pela crise económica e pelas forças centrífugas que alimenta em sectores da burguesia, é a sua incapacidade para dar resposta á vontade de soberania e auto-governo dos povos.
A tese que coloco tem duas vertentes que são inseparáveis:
A análise objectiva da realidade e o pânico desatado no aparelho do Estado pela Iniciativa Internacionalista mostrou com clareza meridiana que não é possível construir uma alternativa política real que não coloque como duas faces da mesma moeda a emancipação da classe operária e os direitos nacionais dos povos do Estado espanhol, frente ao regime surgido da Transição e ao seu aparelho de Estado como instrumentos de dominação em ambas as frentes.
A luta pela República, que para além da sua legitimidade histórica, transporta elementos de identidade popular e de memória indispensáveis para a continuidade na resistência e na luta emancipadora, não pode esconder a realidade, nem a legitimidade da luta pela independência dos povos do Estado espanhol, nem o seu valor para quebrar a identidade espanholista, chave no aparelho ideológico das classes dominantes. Outra coisa serão as condições concretas em que as lutas nacionais e de classe se manifestam e a adequação ás mesmas que nos exijam.
Como consequência, falar de III República, e não da República simplesmente, pressupõe negar ou subordinar o direito dos povos do Estado espanhol aos seus legítimos objectivos de independência. Além disso introduz uma discussão que qualificaria de absurda por extemporânea, acerca do que será primeiro, se o exercício concreto do Direito de Autodeterminação ou a República, se não fosse porque essa mesma discussão nos afasta do objectivo central comum: acabar com o regime da Transição monárquica.
As conclusões, entretanto, são claras:
Que a situação de crise política e económica mostra que as classes dominantes e os seus representantes políticos estão ante uma situação extrema, na qual as almofadas de legitimidade desaparecem e a sua única possibilidade é acentuar a repressão e a exploração.
Que na Euskal Herria a sua incapacidade para a proposta política se resolve obstinando-se na única coisa que são capazes de oferecer, a repressão.
Que a impunidade com que actuam é apenas possível pelo êxito conseguido em levantar um muro entre a luta do povo basco e as lutas operárias e populares no resto do Estado.
Que em outros povos do Estado, o exemplo de resistência do povo basco pode servir de pilar para a reconstrução de nossa memória colectiva e de nossas organizações operárias e populares, que devem levar no seu código genético o respeito pelos direitos nacionais dos povos do Estado espanhol.
Que a partir do compromisso real com o direito a independência dos povos do Estado espanhol é preciso construir, passo a passo, encontro a encontro, solidariedade a solidariedade, elementos de luta conjunta frente ao inimigo comum: o Estado que oprime os povos, o mesmo Estado que representa as classes dominantes.
Tudo isso sem pressupor ou antecipar quadros que espartilhem os projectos políticos nacionais de cada povo, que legitimamente actuem nos tempos e nos conteúdos, de acordo com os caminhos que abra a luta popular.

[1] Como exemplo recordo a imprescindível película do argentino Fernando Solanas "Memoria do saqueo" http://video.google.es/videoplay?docid=-7470743912986095493&ei=ObkaS5STJ9WC
AbMgvH8Ag&q=memoria+do+saqueo&client=firefox-a#

[2] Uma análise detalhada da crise do capitalismo espanhol pode encontrar-se em http://www.corrienteroja.net/spip.php?article456

[3] Ver comunicados de Corriente Roja perante as últimas detenções http://www.corrienteroja.net/spip.php?article466 y
http://www.corrienteroja.net/spip.php?article497

[4] http://www.cobas.es/spip.php?article283

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