A estratégia da coalizão conservadora-liberal em Grã-Bretanha em suas recortes de gasto público é predecível e segue a mesma linha dos partidos conservadores-liberais da União Européia, incluindo o PP em Espanha e CiU em Cataluña. Ainda que não o expliciten, sua intenção é aproveitar a crise económica e financeira para conseguir o que tais partidos desejaram desde que a debilidade e desarmamento ideológico das esquerdas dirigentes lhes permitiu dominar a vida política, hegemonizando a cultura mediática do país. Seu sucesso baseia-se em ter convencido a um sector importante do país de que não há alternativa possível às políticas de austeridad.
Em Grã-Bretanha, a coalizão dirigente apresenta "a enorme dívida pública de Grã-Bretanha" como a causa de que se devam levar a cabo estas políticas, com o fim de acalmar a suposta desconfiança dos mercados financeiros. Tal argumento repete-se em Alemanha, em França, em Espanha (incluindo Cataluña), em Grécia, em Portugal, em Irlanda, e numa longa lista de estados da União Européia.
A limitada credibilidade deste argumento no caso britânico denunciou-a Martin Wolf, columnista do Financial Times, que tem desmontado um por um os argumentos que o novo governo britânico apresentou como justificativa das políticas de austeridad. Em primeiro lugar, a dívida pública como percentagem do PIB é em Grã-Bretanha muito semelhante à que teve historicamente: nem maior, nem menor. Em segundo lugar, não parece que tenha ansiedade por parte dos mercados financeiros a respeito da possibilidade de que o governo britânico não possa pagar a dívida. Os bonos públicos vendem-se com grande facilidade. Os interesses dos bonos públicos a dez anos são só de 3% e permaneceram constantes após a mudança de governo. Tal como assinala Martin Wolf, David Cameron e seu aliado Nick Clegg estão a utilizar os mercados financeiros para levar a cabo mudanças que desejavam fazer.
As medidas tomadas pelo governo britânico têm como objectivo desmantelar o estado do bem-estar britânico mediante as seguintes intervenções. Uma é a eliminação do princípio da universalidade dos direitos sociais e dos trabalhadores. Um princípio da socialdemocracia, sobre o qual se estabeleceu o estado do bem-estar em Europa, era o princípio de universalidade, isto é, que os direitos de acesso à providência, à educação, aos serviços sociais, às escolas de infância, aos serviços de dependência, à moradia social, às transferências públicas (como pensões e ajudas às famílias), eram direitos universais (direitos de cidadania), que beneficiavam a todas as classes sociais, independentemente de sua localização social e de seu nível de renda. O princípio de "à cada qual segundo sua necessidade e de cada qual segundo a sua habilidade" era um princípio fundamental das diferentes sensibilidades socialistas em democracia, chamaram-se como quisessem. O direito era igual para todos e o pagamento predominantemente se fazia através da gravación fiscal progressiva. A fortaleza e a popularidade do estado do bem-estar estavam baseadas neste princípio que estava no eixo da Europa Social. Era resultado de uma aliança de classes, entre a classe trabalhadora e a classe média, estabelecendo um estado do bem-estar de elevada qualidade, onde as classes médias se encontrassem cómodas.
Pois bem, isto é o que os conservadores e liberais (em realidade ultraliberais) querem destruir, privando de tal universalidade àqueles que -dizem eles- o podem pagar. O argumento de que é injusto que uma pessoa de renda alta e renda média alta receba ajudas ou serviços públicos em momentos de austeridade é o argumento que utilizam e chega a parecer lógico e razoável. Assim, em Grã-Bretanha famílias com meninos acima de verdadeiro nível de renda não receberão os pagamentos por menino que recebem agora. E em Espanha, conservadores e ultraliberales estão a propor que os pensionistas acima de verdadeiro nível de renda não deveriam ter os medicamentos gratuitos. A consequência disso é que se elimina o princípio de universalidade e, com isso, se abre a possibilidade de que o nível de renda que separa aqueles que têm direitos contra aqueles que não os têm vá se reduzindo mais e mais até chegar um momento em que o estado do bem-estar se transforma num estado para os pobres, isto é, um estado assistencial. E esta é a estratégia de Cameron, de Rajoy e de Artur Mas para desmantelar o estado do bem-estar: transformar o estado do bem-estar universal em estado assistencial.
Esta conversión implica também a privatização do estado do bem-estar, para o qual se dá autonomia financeira aos centros sanitários públicos, por exemplo, para aumentar seus rendimentos mediante a contratación com as mútuas privadas, para conseguir privilégios para pacientes de tais mútuas. Um tanto semelhante ocorre com as escolas públicas, às quais se lhes permite que possam contratar seus serviços a instituições privadas com o fim de conseguir fundos. Uma pessoa que denunciou estas políticas na Grã-Bretanha é o novo responsável em temas económicos do Partido Laborista, Alan Johnson, o único membro do governo laborista na sombra, por verdadeiro, que não tem educação universitária. (Orfão aos 12 anos, viveu numa moradia pública com sua irmã. Não foi à escola para além de suas 15 anos, tendo trabalhado como carteiro e com os sindicatos desde então). Por que não há mais Johnsons nas direcções dos partidos de esquerda? A grande maioria da direcção do partido laborista são, como Ed Miliband, licenciados em políticas, em filosofia e em economia das universidades mais prestigiosas de Grã-Bretanha. E este é um problema que explica, em parte, a transformação do Partido Laborista (New Labour) num partido socioliberal que tinha já iniciado, em parte, tais mudanças no estado do bem-estar. Em realidade, muitas das políticas que a coalizão conservadora-liberal tem expandido as iniciaram os governos laboristas anteriores. A impopularidade desta reforma entre suas bases eleitorais explica seu espectacular descenso eleitoral.
SEMELHANÇAS COM O REINO DE ESPANHA
Algo semelhante está a ocorrer em Espanha, onde as políticas de austeridade do governo PSOE estão a causar um grande declive de sua popularidade entre suas bases eleitorais, dando pé à possível vitória das direitas, que irão para além em suas recortes sociais para destruir o estado do bem-estar. Se o debate político se centra no tamanho dos recortes, em quem recorta menos e quem recorta mais, a derrota das esquerdas dirigentes é quase inevitável, lhe oferecendo em bandeja a vitória eleitoral às direitas.
Uma última observação. Está a apresentar-se o declive do apoio popular ao governo Zapatero como consequência de que tal governo não se explica bem, o qual me parece um argumento pouco crível. Em realidade, explicou-se muito bem, com grande apoio dos meios, a maioria dos quais (de persuasom conservadora e liberal) apoiam tais políticas. Não é o mensageiro, senão a mensagem o que, com razão, é impopular. O crescente distanciamiento das direcções dos partidos dirigentes (de tradição social-democrata) de suas bases populares fá-las vulneráveis a ser seduzidos pela estrutura do poder e sua sabedoria convencional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário