12/11/2010

Chomsky, a condenação (ou não) dos atentados de ETA e a liberdade de expressão

Daniel Raventós. Artigo tirado de aqui e traduzido por nós. O artigo original foi publicado originalmente em 21 de dezembro de 2008, mas julgamos que volta estar de actualidade.


Não condenar os atentados de ETA pode ser motivo para arrebatar determinadas prefeituras de Acção Nacionalista Basca (ANV), democraticamente eleitas segundo a legislação vigente. No passado dia 16 de dezembro, num pleno das Cortes espanholas, a deputada de direita granespañola Rosa Díez pediu que se dissolvesse 42 prefeituras nos que governa ANV. Não mediante coalizões entre partidos para apartar a ANV das prefeituras, via politicamente legítima que, por outra parte, já foi tentada e não conseguida, senão mediante a dissolução por não condenar os atentados de ETA. Que barbaridade! Da opinião moral e política que possam merecer os atentados de ETA, por dura que seja, não se segue o aval à Lei de Partidos nem aberraciones legais da mesma família. Imaginam-se a exigência aos deputados do PP a condenação dos assassinatos do franquismo para poder presidir prefeituras, ser deputados ou inclusive como condição para ser um partido legal? Não somente seria difícil conseguir que alguns o condenassem, seja dito de passagem, senão que sem dúvida aproveitariam para fazer apología dos crimes franquistas. Mas exigir que os deputados do PP condenassem os assassinatos da ditadura, por dura que seja a opinião que nos mereça este período de horror, para exercer seus cargos políticos eleitos democraticamente seria um grave atentado à liberdade de expressão, entre outras liberdades.


A liberdade de expressão é, para boa parte da população, um bem muito precioso. Que merece se defender a toda costa. Mas para algumas pessoas, a liberdade de expressão deve ser "bem entendida" e tem de se limitar mediante algumas excepções porque "não todo pode ser dito".

Acho que é um bom momento para recordar a desgraçada (mas, apesar de tudo, interesantísima) polémica que teve a Chomsky como ao segundo principal protagonista e que se desenvolveu em França faz quase 30 anos, em 1979.

Recordarei resumidamente os factos. Robert Faurisson, o primeiro protagonista do assunto, ensinava literatura na Universidade de Lión por então. Este professor foi intimidado, ameaçado (até agredido por grupos antifascistas) e finalmente suspendido do ensino em sua universidade. As razões alegadas eram que tinha negado em alguns de seus escritos a existência das câmaras de gás nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Em agosto de 1979, Serge Thion (um universitário socialista libertario "conhecido por sua oposição a qualquer forma de totalitarismo", em palavras de Chomsky) solicitou ao intelectual norte-americano que assinasse uma petição na que se pedia ao governo que se assegurasse "a segurança e o livre exercício dos direitos legais" de Robert Faurisson (1). Chomsky assinou-a. Começou a tempestade.

A assinatura por Chomsky desta declaração mereceu os comentários, por parte de todas as direitas e de algumas esquerdas, mais intransigentes e, em alguns casos, singelamente calumniosos. Somente uns poucos exemplos. "Escandaloso" (Pierre Vidal-Naquet em Esprit), "sostenimiento das posições de Faurisson" (Claude Roy em Le Nouvel Observateur), "a defesa, em nome da liberdade de expressão, do direito de rir-se dos factos" (Jacques Baynac em Le Matin), "condenação ao conjunto dos franceses" (Paul Thibaud em Le Monde).

Este conjunto de críticas e calunias que recebeu Chomsky, lhe obrigou a intervir em sua própria defesa. Com isso escreveu uns poucos textos e contestou a algumas entrevistas que permitiram deixar argumentada sua posição sobre a liberdade de expressão.

Sem pretender abordar todos os pontos que mereceram a atenção de Chomsky, a seguir vai um resumem do que a meu entender são seus aspectos mais importantes.

Para Chomsky, a liberdade de expressão não é muito bem entendida (ou o é de forma muito defectuosa) por parte de muita gente que diz a defender. Uma ideia central de Chomsky é que a liberdade de expressão (que inclui a liberdade académica) não tem interesse quando se defende a manifestação das opiniões que um aprova ou que são muito próximas às próprias; mostra em mudança seu vigor quando se defende esta manifestação precisamente das que não se aprovam e ainda das que se aborrecen. E, diz Chomsky: "é no caso daquelas opiniões que são quase universalmente desprezadas e condenadas que este direito deve ser defendido mais vigorosamente." Repete em diferentes artigos e entrevistas que estudam a liberdade de expressão a famosa frase que Voltaire escreveu numa carta dirigida ao abad Le Riche o 6 de fevereiro de 1770: "Je déteste ce que vous écrivez, mais je donnerais ma vie pour que vous puissiez continuer à écrire" (Aborrezco o que você escreve, mas daria minha vida para que pudesse continuar o escrevendo).

O direito não é a moral. Há ideias e opiniões que sem dúvida nos parecem escandalosas, perigosas, odiosas, mentirosas ou tenebrosas. Que nos mereçam esta opinião, seguramente muito justificada, não é razão para as querer proibir. Que razões oferecem as pessoas que são partidários da censura "democrática"? (2)

A censura da minoria pela maioria parece razoável, mas comporta riscos enormes. Pode reduzir-se ao silêncio a posições execrables, mas também pode se reduzir ao silêncio, diz Chomsky, a "Galileo, Darwin, Einstein". Os partidários da censura democrática que são conscientes deste problema, acrescentam pretendendo salvar sua posição, que o que pretendem é censurar as ideias "verdadeiramente" perigosas, odiosas, escandalosas. Deve procurar-se então um critério ou um conjunto de critérios. Os critérios normalmente invocados pelos partidários da censura "democrática" são os seguintes.

O carácter falso do que se diz. Chomsky pergunta-se quem deve decidir o que é falso ou não. Será uma comissão de censura a que deva as proibir? O autor também se pergunta a onde deveriam ir parar as teorias descabelladas ou seudocientíficas que ele aborrece (3). Que se defendam, diz Chomsky, porque sem dúvida faria suas as palavras de John Milton, agora que se cumpriram os 400 anos do nascimento do grande poeta revolucionário: "Deixemos lidiar [a verdade] com a falsidade, ninguém nunca viu a verdade vencida em liza livre e aberta".

Mas quando são mentiras, pode ainda replicar ainda o defensor da censura "democrática", as opiniões ou as ideias devem censurarse por lei. Todo o contrário. Neste caso trata-se de censurar não somente determinadas ideias senão até a intenção de quem as emite. Algo que, dever-se-á conceder, faz o problema muitíssimo mais complicado.

Existem opiniões que são claramente ofensivas que, na opinião de determinados partidários da censura "democrática", devem ser censuradas. Cabe dizer ao respecto, que o que é ofensivo para uns grupos não o é para outros, ou para determinados membros destes grupos, ou para algumas pessoas concretas. Mas, postos a censurar opiniões que resultem ofensivas a determinadas pessoas, teria que desempolvar o delito de blasfemia. Estamos dispostos?

Ainda há outra barricada que sortear. Os efeitos. Determinadas ideias podem desencadear acções com uns efeitos sociais perversos. Ou podem incitar ao "ódio social". Assim que, pode dizer com um sorriso de suficiencia o censor "democrático", há que ilegalizar a defesa destas ideias. Chomsky responde que então deveríamos censurar os livros que historicamente (mas também na actualidade) provocaram os maiores crimes, violações, massacres de povos inteiros, assassinatos, guerras e roubos: a Biblia e o Corán. Há alguém disposto a pedir esta ilegalización? Qualquer leitor desapasionado do Velho e ainda do Novo Testamento pode realizar uma recopilación de citas que fariam palidecer até ao assassino profissional mais curtido. Ainda que tenha muitas razões para considerar deplorable moralmente estes textos, disso não se segue que tenha boas razões para pedir sua ilegalización. Como também não se segue, pelo mesmo argumento, a ilegalización de boa parte do pensamento ocidental (e também parte do não ocidental) que é muito abundante em apologías da guerra, do esclavismo, do colonialismo, do sexismo, do latrocinio, do imperialismo, do racismo, do genocídio e da homofobia. Recordemos que a moral não é o direito.

Hitler! Os partidários da censura "democrática" não se dão por vencidos e seguem se defendendo: se tivesse-se tido mais cuidado, se tivesse-se sido mais intransigente com as ideias que defendia Hitler nos inícios de seu odiosa carreira política, possivelmente não tivesse subido ao poder. Chomsky deplora esta forma de razonar tão pouco rigorosa. Actualmente, também existem organizações nazistas e fascistas em muitos países. Por que não tomam o poder? As ideias são importantes, claro está. Mas as ideias desenvolvem-se em realidades socioeconómicas determinadas. As ideias de Hitler desenvolveram-se num contexto social e político que pouco tem que ver com a realidade de princípios de século XXI. Que possam se desenvolver no futuro não é algo que possa se descartar, evidentemente. Mas as ideias de Hitler sem o apoio dos grandes magnatas da indústria pesada alemã pouco tivessem feito. E os grandes industriais alemães deram este apoio numas circunstâncias (movimento operário alemão culto, organizado e poderoso; situações revolucionárias em diferentes lugares de Europa...) que agora distan anos luz de ser parecidas. Chomsky revela-se contra a grosería argumentativa e teórica que supõe não ter em conta a realidade social à hora de analisar as ideias. Somente académicos pouco avispados, que são multidão, podem seguir hoje com esta vulgaridad.

Dois argumentos finais a favor da liberdade de expressão sem censuras "democráticas". Um de tipo político, outro de tipo técnico. O político diz que quem se senta cómodo hoje porque uma censura à liberdade de expressão está dirigida a umas ideias muito diferentes às próprias, amanhã pode ser vítima da mesma censura. Chomsky recorda que a censura, por definição, reforça sempre o poder de quem a podem realizar e não permite ou faz mais dificultoso, em mudança, censurar aos poderosos (4).

A razão de tipo técnico. Onde se detém a censura? Se se censura a X, mas autoriza-se a E a defender a liberdade de expressão, será difícil que as opiniões de X não sejam conhecidas. Deve censurarse então a E também? Facto. Mas então aparece Z que admite que se condene a X, mas considera que E deve poder se expressar. Deve censurarse então a Z também? Pronto. Mas então aparece? Etcétera.

Chomsky distingue claramente entre ideias e actos. As ideias devem ser livres e expressadas sem nenhuma censura. Determinados actos podem, e o são em certas circunstâncias, penalizados pela lei.

O 16 de dezembro nas Cortes espanholas pronunciaram-se algumas intervenções (señaladamente a de Rosa Díez e as do Partido Popular) que deixam aos partidários mais inteligentes da censura "democrática" com os que teve que se enfrentar Chomsky no final dos 70 e princípios dos 80 como campeões da liberdade de expressão. A partir da negativa a condenar os atentados de ETA por parte dos prefeitos de Herri Batasuna e Batasuna (dantes) e ANV (agora), se fez e se pensa seguir fazendo uma legislação que ataca aos mais elementares princípios da liberdade de expressão. Alguns políticos, como a mencionada Rosa Díez (que disse que "não é uma proposta nem de esquerda nem de direita", frase para enmarcar no museu das imbecilidades políticas com especial menção honorífica) e os do Partido Popular ainda querem apertar mais as porcas.

Pintam bastos para a liberdade de expressão.


NOTAS do texto original: (1) A declaração, que foi assinada por umas 500 pessoas mais, tão só constava de 4 brevísimos parágrafos, e pode se ler, bem como parte da história aqui contada, em Noam Chomsky, "Il a le droit de le dire", em Chomsky, Jean Bricmont et Julie Franck (eds.), Cahiers de l'Herne, Paris, 2007. As citações que faço no texto principal estão sacadas e traduzidas deste extenso livro. Chomsky também assinou muitas declarações em defesa da liberdade de expressão de muitas pessoas que foram perseguidas na antiga URSS e em seus países satélites.

(2) Chomsky discute com os partidários da censura que a argumentam não desde regimes filonazis ou filoestalinistas, contra os quais, além do dito aqui, teria uma batería adicional de argumentos, senão com os partidários da censura em países com regimes democráticos.

(3) Chomsky tem um pedigree científico a prova do exame mais rigoroso. Suas contribuições científicas ao que se veio em chamar "gramática universal", e o golpe de graça que isso supôs às concepções psicológicas conductistas, não precisam nenhuma apresentação. São conhecidas também suas divertidas, contundentes e, por que não, despreciativas opiniões contra os relativistas e pós-modernos de todo tipo. Assim que sua opinião sobre a liberdade de expressão é, a minha entender, mais meritoria precisamente pela concepção científica que Chomsky sustenta, que inclui a militancia contra as pseudociencias e a impostura intelectual. Chomsky, que agora acaba de cumprir 80 anos, foi considerado por Paul Robinson já em 1979 e no New York Times "o intelectual vivo maior". Muito depois, no ano 2005, a revista Prospect também o considerou o intelectual contemporâneo maior.

(4) Recorde-se a multa a El Jueves por desenhar ao futuro rei de Espanha (se a vontade popular e a razão não o impedem) realizando o acto sexual com sua esposa na posição mais comum entre os mamíferos. Ou os julgamentos a independentistas catalães por queima-a de fotografias do actual rei Borbón. Ou os mais recentes ainda aos jornalistas dos diários vascães Deia e Gara (felizmente absolvidos) pelo fotomontaje do Borbón e o urso que caçou que parece ser estava repleto de álcool (o urso, não o Borbón). Compare-se estes três exemplos com a magnitude das declarações de José Bono, o chocarrero presidente das Cortes, que deixou dito faz poucos dias uma frase que mostra a mais vil (e atrevo-me a dizer que ilegal) sumisión dos poderes públicos eleitos directa ou indirectamente mediante sufragio universal à vontade dos conselhos de administração: "A liberdade de empresa está acima dos desejos dos Governos". ¡E não passou nada!

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