21/01/2011

A apócema da austeridade

Marshall Auerback. Artigo tirado de aqui e traduzido por nós. Ilustraçom de George Grosz do seu quadro Lady Hamilton.

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O início de um novo ano sempre parece um bom momento para abordar aqueles grandes temas que cobrarão relevancia durante o mesmo, para bem ou para mau. Assim que aí vão alguns deles:

Uma primeira boa notícia é que o déficit fiscal dos EEUU parece que vai seguir sendo suficientemente grande para sustentar um crescimento moderado e estabilizar a renda e os rendimentos, ainda que não seja o bastante abultado para gerar os postos de trabalho necessários. Como sustentei numerosas vezes no passado, os déficits públicos elevados facilitam o desapalancamento do sector privado e vão se acrescentando paulatinamente aos rendimentos e a poupança. Não é uma coincidência que os ónus financeiros das famílias e as empresas não tenham deixado de se reduzir (aumentando, pois, sua poupança) à medida que crescia o déficit público.
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Desgraçadamente, o novo Congresso parece obcecado numa redução do déficit totalmente desencaminada. Na próxima semana, a Câmara de Representantes vai dispor de uma maioria de histéricos do déficit, muitos deles comprometidos com uma emenda a favor do equilíbrio fiscal. E parece o mundo encaminha-se por doquiera para um endurecimiento das medidas de contenção fiscal. O programa de subsídio de desemprego prolongou-se, mas os pagamentos ainda duram somente 99 semanas, ou menos em muitos estados. O gasto neto estatal segue reduzindo-se à medida que os governos estatais e locais seguem recortando seus déficits.

É verdadeiro que a arrecadação de impostos dos estados tem estado aumentando recentemente. Mas inclusive com esta melhoria a arrecadação mensal de muitos estados segue estando aos níveis de 2007/2008, pelo que não podem se propor a opção de relançar o gasto. Os comentaristas que não param de falar do presente aumento dos rendimentos não entendem a significação histórica da grande debilidade que tivemos durante os dois últimos anos. Como me assinalou Philippa Dunne (coautora do excelente Relatório Liscio), a arrecadação do os impostos ao consumo começou a ter já problemas em 2007. E pôr ao dia os fundos necessários para pagar as pensões não contributivas vai seguir sendo também um problema persistente.

Sem dúvida, boa parte do desasosiego gerado pelos déficits públicos poderia relativizarse se os vissem como o que realmente são. O balanço fiscal é a diferença entre os rendimentos totais e as obrigações de pagamento totais. A nível do governo federal, se os rendimentos totais superam os compromissos vai ter superávit, e vice-versa. É uma forma de contabilidade muito singela sem nada de teoria detrás. Isso é tudo. Ou seja, se não há mudanças de política discrecionais, por definição o balanço fiscal vai variar automaticamente ao longo do ciclo económico. Quando a economia esteja debilitada, os rendimentos por impostos caem e aumentam os pagamentos relativos à protecção social, assim que o balanço fiscal entra em déficit (ou aumenta um déficit já existente). Quando em mudança a economia prospera, aumentam os rendimentos dos impostos e caem os gastos de protecção social, de modo que a situação das finanças públicas melhora por si sozinha. Os estabilizadores automáticos atenuam, pois, a amplitude do ciclo económico ao expandir o gasto durante uma recessão e contraí-lo durante um boom [para uma explicação didáctica disso, se veja AQUI e AQUI].

Nem a direita nem a sedicente esquerda parecem entender um problema que não é de teoria económica, senão de elementar contabilidade

A julgar pelas declarações desde ambas, a direita e também a sedicente a esquerda, está claro que muito poucos políticos entendem esta questão de contabilidade básica, o que aumenta as probabilidades de que os programas sociais sigam sendo atacados durante todo o 2011. Isto já está a ser assim no Reino Unido desde os últimos meses. Ali, um governo de coalizão liderado pelos tories engoliu-se totalmente o conto da redução do déficit. Em lugar de que o sector público lidere a criação de emprego num momento em que o sector privado ainda não está pronto para o fazer, o Governo de David Cameron dedicou-se a recortar os postos de trabalho e relançar o desemprego (só há que ver as estatísticas oficiais sobre o mercado de trabalho). À medida que o giro para a austeridade se aprofunda, o impacto deflacionário desse recorte nos postos de trabalho vai debilitar a capacidade do sector privado de gerar emprego. Mas não pensemos que isso vá evitar esses mesmos recortes aqui nos EEUU. Esta espécie de vandalismo económico tem-se metamorfoseado numa "actuação fiscal responsável", se um faz caso à grande maioria de "experientes" do establishment.

Os meios de comunicação esquecem-se dos sociópatas de Wall Street e cebam-se com os sindicatos operários

Os ataques aos sindicatos do sector público refletem outro frente desta implacável tenaça sobre os estadounidenses de classe média e trabalhadora, como mostra este artigo do NY Times. É fascinante ver como o foco do discurso dominante nos meios de comunicação foi se deslocando durante este último ano desde as práticas sociópatas de Wall Street "responsáveis directas da criação da crise" para a suposta cobiza imputada aos sindicatos do sector público e as pensões que estes defendem, muitas das quais foram o resultado de negociações salariais e acordos nos que estes sindicatos recebiam essas pensões a mudança de renunciar a melhores salários. Durante 2008, disse-se-nos que o governo tinha as mãos atadas e que a santidad edos contratos devia se respeitar. Isso foi quando a Reserva Federal autorizou que se pagasse a Goldman Sachs o 100% dos CDs (credit default swaps) de AIG (o que na prática permitia à FED actuar como um novo mecanismo orçamental do Tesouro, o que viola a Constituição e mostra como são de falsas as declarações de independência da FED). Mas na lembrança a muita gente de Wall Street mencionando o sagrado dos contratos quando se reestructuraron os acordos com a UAW (International Union, United Automobile, Aerospace and Agricultural Implement Workers of America, um dos principais sindicatos de EEUU - N. do T.) para salvar a General Motors, ou agora que os fundos de pensões dos servidores públicos estão a ser atacados. O argumento parece ser que os estados estão a sofrer uma genuina crise de solvencia na qual todo mundo deveria fazer sacrifícios, incluídos os "cobizosos" sindicatos. Assim que por que deveriam ser diferentes as grandes assinaturas financeiras, as quais não faz tanto ter-se-iam ido a pique de não ser pela magnificencia dos sofridos contribuintes? Se os ataques que descreve o artigo do NY Times se consolidam neste ano, isso terá nefastas consequências para todo o país.

O aumento dos preços do cru

Outra preocupação relacionada com a potencial diminuição da capacidade de gasto é a preocupante subida do preço do cru. A demanda neta não se aprecia que tenha aumentado, e a produção de Arábia Saudita se mantém relativamente baixa. Poderíamos estar numa situação onde opere uma verdadeira dinâmica de teto de produção. Num sentido amplo, o que diz Paul Krugman - "vivemos num mundo finito, no qual o rápido crescimento das economias emergentes exerce pressão sobre uma oferta limitada de matérias primas, fazendo subir seus preços" - poderia muito bem se revelar verdadeiro. O que, em ausência de um apoio compensatorio dos rendimentos mediante a política fiscal ou graças a um aumento da actividade no sector privado que aumente o emprego, vai implicar recortes discrecionales em muitas outras áreas do gasto. Más notícias para um mundo que já está asfixiado por uma demanda insuficiente. A subida do preço do petróleo foi já o bastante pronunciada para representar um forte golpe sobre a demanda dos consumidores estadounidenses, que provavelmente tenha já contrarrestado qualquer que tenha sido a demanda agregada acrescentada pelo último pacote de estímulos fiscais.

Por outro lado, propom-se que se congelem os gastos federais. E a continuação da política de uma taxa de juro zero da FED e sua "flexibilización cuantitativa" serve para reduzir os rendimentos netos através de interesses que gera a economia.

Os reguladores bancários seguem impondo políticas que operam na contramão dos empréstimos dos bancos pequenos, cujos custos primarios de financiamento são bastante mais altos que os de seus irmãos maiores, "demasiado grandes para cair". A "reforma financeira" de Dodd-Frank fortalece a dominación daquelas instituições que resultam sistémicamente perigosas, a costa dos mais de 6.000 pequenos bancos que se dedicam às clássicas actividades de intermediación prestataria - precisamente o que queremos que se dediquem a fazer nossos bancos [nom acontece na Galiza o mesmo dalgumha maneira na bancarizaçom das caixas?].

Para além de nossas fronteiras, a zona euro mal as arranja com seus problemas de uma baixa demanda interior. As perturbaciones periódicas que sacodem os mercados financeiros foram, até agora, mitigadas pelas repetidas compras nos mercados secundários de bonos de dívida nacional por parte do Banco Central Europeu, mas a expensas de uma maior austeridade fiscal imposta aos países periféricos.

E daí ocorre no mundo em via de desenvolvimento, o qual resultou ser  a melhor linha de defesa para salvar o crescimento global? Vai frear-se China como resultado de sua luta contra a inflação? Ou Brasil? Talvez Índia também?

O problema da corrupção política: as portas giratorias entre os grandes negócios e a política
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Finalmente, está o odioso problema da corrupção política, o qual se manifesta em múltiplas formas, mas ultimamente através da cínica política de "portas giratorias" entre Wall Street e o governo [veja-se a entrada de Felipe González em Gás Natural e de Aznar em Endesa]. A recente incorporação de Peter Orszag a Citigroup, após passar meses caluniando à Segurança Social desde sua posição na OMB [Office of Management and Budget, o Escritório de Gestão e Orçamento, uma das principais instituições com funções executivas e orçamentas da Casa Branca;T.] , foi coroada por um autêntico exercício de cinismo por parte do NY Times. Ninguém espera que um alto servidor público viva como um monge após ter estado um verdadeiro tempo no sector público. Mas o que alguém que trabalhou em planificar, defender, e levar a cabo uma política económica que jogou um papel crucial na sobrevivência de uma instituição financeira vaia depois, menos de dois anos após que seu governo chegasse ao poder, e aceite um trabalho que a) exemplifica as crescentes desigualdades que a administração diz querer corrigir, e b) sem lugar a dúvidas requer dos contactos e o conhecimento que adquiriu precisamente quando trabalhava para a OMB, resulta em extremo irritante. E que seu sucessor resulte que também prove de Citigroup, simplesmente perpetua a minha incredulidade. Tudo isto, em cima,  baixo uma administração democrata "patentemente progressista".

A porta giratoria entre Wall Street e Washington deveria chamar a atenção sobre a podredume que impregna o coração da classe política estadounidense de hoje em dia: o que James Galbraith tem felizmente baptizado como "o Estado depredador".O Estado acabou sendo demasiado débil, e converteu-se em outro instrumento em mãos da depredación capitalista. A política de portas giratorias (gratamente aceitada pelo actual presidente, ao igual que fizeram seus predecessores) perpetua o problema porque potência a capacidade do chamado sector FIRE [finanças, seguros e bens raízes, por suas siglas em inglês; T. castelhano] de controlar a economia. O sector FIRE actua simplesmente como um parasita da produção e o consumo que formam o coração do sistema económico, extraindo rendas financeiras que não são custos necessários tecnológica ou economicamente. Seus ganhos tomam a forma do que os economistas clássicos chamavam "rendas económicas", uma classificação ampla que inclui interesses, grandes benefícios monopolísticos (mediante a fijación ilegal de preços) e rendas da terra, bem como os ganhos "de capital". E seu esencia consiste em despojar ao Estado da provisão de serviços públicos, privatizando o domínio público e erigiendo portagens para cobrar taxas por serviços básicos como o seguro médico, o uso do solo, o acesso à moradia, todo o espectro das comunicações (o direito ao acesso a internet e ao telefone), as patentes médicas, água e electricidade, e demais serviços públicos, incluindo a utilização de cartões de crédito ou simplesmente o acesso ao financiamento necessário para sair adiante. É uma actividade económica de soma zero. O que ganha uma das partes (habitualmente, Wall Street), é o que perde a outra. Parece, pois, que vamos ter bem mais do mesmo neste 2011.

"Feliz" Ano Novo a todo mundo.

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