15/11/2011

1-“Quando o juiz Felice Casson revelou a existência de Gládio...”

Daniele Ganser. Artigo tirado de aqui: http://www.voltairenet.org/Cuando-el-juez-Felice-Casson. A traduçao é de Héctor Rodríguez Vidal, membro do Grupo de trabalho da Mocidade Irmandinha. O texto en castelhano conta com várias notas que são fontes para reforçar os dados do texto, em tudo caso o tradutor decidiu não inclui-las para agilizar um texto já de por si longo. Não conviria desligar a Rede Gládio doutras manifestações que têm servido os interesses do poder nos últimos anos: o terrorismo islamista, ou o terrorismo de extrema-direita manifestamente em auge nos últimos tempos após os acontecimentos de Noruega e Alemanha. 

O 31 de maio de 1972, um auto-bomba rebentou em um bosque próximo á povoação chamada Peteano, na Itália, deixando um ferido grave e um morto entre os carabineros, a polícia uniformada italiana. Os carabineiros tinham chegado ao lugar após receber um telefonema telefónico anónimo. Ao inspeccionar um auto Fiat 500 ali abandonado, um dos carabineiros levantou o capô, produzindo assim a explosão.

Dois dias depois, um novo telefonema anónimo reclamava a autoria do atentado em nome das Brigadas Vermelhas, grupúsculo terrorista que tratava naquele tempo de romper o equilíbrio do poder na Itália mediante a realização de tomadas de reféns e de assassinatos de altas personagens do Estado. A polícia voltou-se imediatamente para a esquerda italiana e encarcerou a cerca de 200 comunistas. Durante mais de 10 anos, os italianos viveram convencidos de que o acto terrorista de Peteano tinha sido obra das Brigadas Vermelhas.

Posteriormente, em 1984, Felice Casson, um juiz italiano, decidiu reabrir o caso já que lhe intrigavam toda uma série de irregularidades e falsificações cometidas ao redor do drama de Peteano. O juiz Felice Casson descobriu que a polícia não tinha pesquisado o lugar dos factos. Também reparou em que o relatório que tinha concluído naquele tempo que os explosivos utilizados eram os mesmos que utilizavam tradicionalmente as Brigadas Vermelhas era com efeito uma falsificação.

Marco Morin, um especialista em explosivos da polícia italiana, tinha proporcionado intencionalmente conclusões falsas. Morin era membro da organização italiana de extrema direita «Ordine Nuovo» e, no contexto de guerra fria, tinha contribuído assim ao que ele considerava uma luta legítima contra a influência dos comunistas italianos. O juiz Casson conseguiu provar que, ao invés do que tinha concluído Morin, o explosivo utilizado em Peteano era o C4, a substância explosiva mais poderosa daquele então e que também fazia parte do arsenal das forças da OTAN.

 «Simplesmente quis arrojar uma nova luz sobre anos de mentiras e segredos. Isso é tudo», declarou posteriormente o juiz Casson aos jornalistas que o interrogavam em seu minúsculo escritório do palácio de justiça, junto à lagoa de Venécia. «Queria que, por uma vez, os italianos soubessem a verdade.»

 O 24 de fevereiro de 1972, cerca de Trieste, um grupo de carabineiros descobre por acaso um escondite de armas cheio de munições, armas e explosivo do tipo C4, idêntico ao utilizado em Peteano. Os polícias estavam convencidos de ter descoberto uma rede criminosa. Anos mais tarde, a investigação do juiz Casson permitiu determinar que se tratava em realidade de um dos centos de escondites subterrâneos criados pelo exército secreto do chamado stay-behind, estrutura que responde às ordens da OTAN e que se conhece na Itália pela apelação codificada de Gladio (do latín Gladius, denominación da espada curta em uso na Roma da antigüedade). Casson percebeu que os serviços secretos do exército italiano e o governo daquela época se tinham esforçado consideravelmente por manter em segredo a descoberta de Trieste bem como seu contexto estratégico.

Ao prosseguir sua investigação sobre os estranhos casos de Peteano e Trieste, o magistrado descobriu com assombro, não a mão da esquerda italiana senão a dos grupúsculos de extrema direita e dos serviços secretos do exército depois do atentado de 1972. A investigação do juiz revelou a existência de uma estreita colaboração entre a organização de extrema direita Ordine Nuovo e o SID (Servizio Informazioni Difusa), ou seja os serviços secretos do exército italiano. Ordine Nuovo e o SID tinham preparado juntos o atentado de Peteano, e depois tinham acusado aos militantes da extrema esquerda italiana, as Brigadas Vermelhas.

Casson conseguiu identificar o homem que tinha posto a bomba, um tal Vincenzo Vinciguerra, membro de Ordine Nuovo. Como era o elo final de uma longa corrente de comando, Vinciguerra só foi preso vários anos após o momento dos factos. Confessou e declarou que tinha usufruído da protecção de toda uma rede de simpatizantes, tanto na Itália quanto no estrangeiro, que tinham feito possível sua fugida após o atentado. «É todo um mecanismo que se pôs em marcha», contou Vinciguerra. «O qual quer dizer que desde os carabineiros até o ministro do Interior, passando pela alfâdega e os serviços de inteligência civis e militares, todos tinham aceitado o razoamento ideológico que justificava o atentado.» 

Vinciguerra sublinhava, com toda a razão, o agitado contexto histórico em que se tinha produzido o atentado de Peteano. A fins dos anos 1960, com o surgimiento da revolução pacifista e os movimentos estudantis de protesto contra a violência e contra a guerra do Vietname em particular, o confronto ideológico entre a direita e a esquerda tinha-se intensificado, tanto na Europa Ocidental como nos Estados Unidos.

A imensa maioria dos cidadãos comprometidos com os movimentos sociais de esquerda recorriam a formas de protesto não violentas, como manifestações, actos de desobediencia civil e, sobretudo, debates com moderadores. No seio do parlamento italiano, o poderoso Partido Comunista (Partito Communisto Italiano, PCI) e em menor medida o Partido Socialista (Partito Socialisto Italiano, PSI) simpatizaban com esse movimento.

 Os movimentos sociais de esquerda opunham-se à política dos Estados Unidos, à guerra do Vietname e sobretudo à repartição do poder na Itália já que, apesar de dispor de uma importante maioria no parlamento, o PCI não tinha recebido nenhum ministério e se lhe mantinha assim à margem do governo. A direita italiana estava perfeitamente ciente de que aquilo constituía uma injustiça flagrante e uma violação dos princípios básicos da democracia.

Foi naquele contexto de guerra fria e de luta pelo poder que os extremistas recorreram ao terrorismo na Europa Ocidental. Na extrema esquerda, os grupos terroristas mais notorios foram os comunistas italianos das Brigadas Vermelhas bem como a Rote Armee Fraktion alemã ou RAF (Fracção Exército Vermelho). Fundadas por vários estudantes da universidade de Trento que não tinham nenhum conhecimento quanto a técnicas de combate, as Brigadas Vermelhas contavam entre seus membros a Margherita Cagol, Alberto Franceschini e Alberto Curcio.

Ao igual que os membros da RAF, estes estavam convencidos da necessidade de recorrer à violência para mudar a estrutura do poder vigente, que lhes parecia injusto e corrupto. Ao igual que as acções da RAF, as das Brigadas Vermelhas não tinham como alvo a população civil senão determinados indivíduos que consideravam representantes do «aparelho do Estado», como banqueiros, generais e ministros, aos que sequestravam e com freqüência assassinavam. As acções das Brigadas Vermelhas, que tiveram lugar principalmente na Itália dos anos 1970, deixaram 75 mortos.

Devido a sua pouca capacidade estratégica e militar e a sua inexperiência, os membros das Brigadas Vermelhas acabaram sendo presos mediante redadas, e posteriormente julgados e encarcerados.

Ao outro extremo do tabuleiro político da guerra fria, a extrema direita também recorreu à violência. Na Itália, sua rede incluía aos soldados clandestinos do Gládio, os serviços secretos militares e organizações fascistas como Ordine Nuovo. Ao invés do que praticava a esquerda, o objectivo do terrorismo de direita era semear o terror em todas as camadas da sociedade mediante atentados dirigidos contra grandes multidões e destinados a provocar a maior quantidade possível de mortos para acusar posteriormente aos comunistas.

O juiz Casson conseguiu determinar que o drama de Peteano fazia parte desse esquema e entrava no marco de uma série de crimes que tinha começado em 1969. Durante aquele ano 4 bombas tinham explodido pouco dantes do Natal em vários lugares públicos de Roma e Milão. O saldo tinha sido de 16 mortos e 80 feridos, em sua maioria camponeses que iam depositar no Banco Agrícola da Piazza Fontana de Milão o que tinham arrecadado no dia através de suas vendas no mercado. Conforme a uma estratégia maquiavélica, a responsabilidade daquele massacre foi atribuído aos comunistas e à extrema esquerda, escamotearam-se as pistas e realizou-se imediatamente uma onda de detenções.

 A população em seu conjunto tinha muito poucas possibilidades de descobrir a verdade já que os serviços secretos militares esforçaram-se por enmascarar o crime. Em Milão, uma das bombas não tinha chegado a rebentar, devido ao mau funcionamento do mecanismo de relojoaria, mas nos primeiros actos de dissimulação, os serviços secretos a fizeram rebentar no lugar dos factos e vários componentes de artefactos explosivos foram expelidos à casa de Giangiacomo Feltrinelli, célebre editor conhecido por suas opiniões de esquerda.

«Segundo as estatísticas oficiais, entre o 1º de janeiro de 1969 e o 31 de dezembro de 1987 registaram-se 14 591 actos de violência com motivos políticos», afirma o senador Giovanni Pellegrino, presidente da Comissão Investigadora Parlamentar sobre Gládio e o terrorismo, ao recordar a violência do contexto político daquele período da história recente da Itália. «Quiçá não resulta inútil recordar que aquelas “acções” causaram a morte a 491 pessoas bem como feridas e mutilações a outras 1181.

 Cifras dignas de uma guerra, sem comparação na Europa.» Após os atentados da Piazza Fontana, em 1969, e de Peteano, em 1972, outros actos de terrorismo voltaram a ensangrentar o país. O 28 de maio de 1974, em Brescia, uma bomba deixou 8 mortos e 102 feridos entre os participantes em uma manifestação antifascista. O 4 de agosto de 1974, um atentado a bordo do comboio «Italicus Express», que enlaça Roma com Munich, matou a 12 pessoas e feriu a 48. O ponto culminante daquela onda de violência produziu-se em uma soleada tarde, o 2 de agosto de 1980, no dia da festa nacional da Itália, quando uma explosão de grande potência devastou o salão de espera dos passageiros de segunda classe na estação de comboios de Bolonha, matando a 85 pessoas e ferindo ou mutilando a outras 200. O massacre de Bolonha é um dos maiores atentados terroristas que tenha sofrido Europa em todo o século 20.

Contrariamente aos membros das Brigadas Vermelhas, que acabaram todos no cárcere, os terroristas de extrema direita conseguiram escapar após a cada atentado já que, como assinala Vinciguerra com toda a razão, todos usufruiram da protecção do aparelho de segurança e dos serviços secretos do exército italiano. Anos mais tarde, quando ao fim se estabeleceu o vínculo entre o atentado da Piazza Fontana e a direita italiana, se lhe perguntou a Franco Freda, membro de Ordine Nuovo, se ao cabo do tempo cria ter sido manipulado por personagens que ocupavam altos cargos, gerais ou ministros.

 Freda, admirador declarado de Hitler, que tinha publicado Mein Kampf em italiano graças a sua pequena estrutura pessoal de edição, respondeu que, segundo seus conceitos, todo mundo é mais ou menos manipulado: «Todos somos manipulados por outros mais poderosos do que nós», declarou o terrorista. «No que diz respeito a mim, admito ter sido uma marioneta movida por ideias mas em nenhum caso pelos homens dos serviços secretos, nem aqui [na Itália] nem no estrangeiro. Em outros termos, eu mesmo escolhi minha luta e a desenvolvi segundo minhas ideias. Isso é tudo.»

Em março de 2001, o general Giandelio Maletti, ex chefe do contraespionagem italiana, deixou entrever que para além da da rede clandestina Gládio, dos serviços secretos militares italianos e de um grupúsculo de terroristas de extrema direita, as matanças que difamaram os comunistas italianos receberam também a aprovação da Casa Branca e da CIA. Ao comparecer como testemunha no julgamento contra os terroristas de extrema direita acusados de estar implicados nos atentados da Piazza Fontana, Maletti declarou: «A CIA, seguindo as directivas de seu governo, queria criar um nacionalismo italiano capaz de obstaculizar o que considerava um deslizamento para a esquerda e, com esse objectivo, pôde utilizar o terrorismo de extrema direita.» (…) «Um tinha a impressão de que os americanos estavam dispostos a todo para impedir que Itália virasse para a esquerda», explicou o general, dantes de acrescentar: «Não esqueçam que era Nixon quem estava à cabeça do governo e Nixon não era um tipo qualquer, [era] um político muito hábil mas um homem de métodos pouco ortodoxos.» Retrospectivamente, o general de 79 anos expressou críticas e amargura: «Itália foi tratada como uma espécie de protectorado. Envergonha-me que ainda estejamos a ser objecto de um controle especial.»

Durante as décadas de 1970 e 1980, o parlamento italiano, em cujo seio os partidos comunista e socialista estavam em posse duma parte importante do poder, manifestou crescente inquietude ante aquela onda visivelmente interminável de crimes que ensanguentavam o país sem que se conseguisse identificar os autores nem quem os chefiavam.

Ainda que já naquele tempo circulavam entre a esquerda italiana os rumores de que aqueles misteriosos actos de violência eram uma forma de guerra secreta que Estados Unidos tinha desencadeado contra os comunistas italianos, não existiam provas que permitissem confirmar aquela teoria que parecia trazida por um fio. No entanto, em 1988 o Senado italiano criou uma comissão parlamentar especial de investigação presidida pelo senador Liberto Gualteri, comissão cujo nome era mais que elocuente: «Comissão parlamentar do Senado italiano encarregada de pesquisar sobre o terrorismo na Itália e as razões pelas quais os indivíduos responsáveis das matanças não têm podido ser identificados: O terrorismo, os atentados e o contexto político-histórico.» [

O trabalho da comissão resultou extremamente difícil. As testemunhas negavam-se a declarar. Houve documentos destruídos. A própria comissão, que se compunha de representantes dos partidos de esquerda e de direita, se dividiu ao abordar a questão da verdade histórica na Itália e no tocante às conclusões que deviam ser ou não reveladas ao público.

O juiz Felice Casson revela a existência de uma rede clandestina criada pela OTAN. Oficialmente criada para proteger aos Estados membros, a OTAN é em realidade um protectorado anglo-saxão. Washington e Londres não hesitaram em ordenar atentados terroristas na Itália para falsear o jogo da democracia.

Ao mesmo tempo, baseando no depoimento de Vincenzo Vinciguerra –o terrorista de Peteano– e nos documentos que tinha descoberto, o juiz Casson começa a aperceber a natureza da complexa estratégia militar que se tinha utilizado. Compreende pouco a pouco que não se tratava simplesmente de terrorismo senão de terrorismo de Estado, financiado com o dinheiro dos contribuintes. Obedecendo a uma «estratégia da tensão», o objectivo dos atentados era instaurar um clima de tensão no seio da população.

A extrema direita e seus partidários no seio da OTAN temiam que os comunistas italianos adquirissem demasiado poder e é por isso que, em uma tentativa de «desestabilizar para estabilizar», os soldados clandestinos dos exércitos do Gládio perpetravam aqueles atentados, que atribuíam depois à esquerda. «Para os serviços secretos, o atentado de Peteano era parte do que se chamou “a estratégia da tensão” », explicou publicamente o juiz Casson em uma reportagem da BBC dedicado ao Gládio. «Ou seja, criar um clima de tensão para estimular no país as tendências sócio-políticas conservadoras e reacionárias.

 À medida que se aplicava esta estratégia no terreno, fazia-se necessário proteger os instigadores já que começavam a aparecer provas de seu envolvimento. As testemunhas ocultavam certas informações para proteger aos extremistas de direita.» Vinciguerra, um terrorista que, ao igual que outros que tinham estado em contacto com o ramo Gládio dos serviços secretos militares italianos, foi morrido por causa de suas convicções políticas, declarou: «Tinha que actuar contra os civis, contra a gente do povo, contra as mulheres, os inocentes, os anónimos desvinculados de todo jogo político. A razão era muito simples. Supunha-se que tinham que forçar àquela gente, ao povo italiano, a recorrer ao Estado para pedir mais segurança. A essa lógica política obedeciam todos esses assassinatos e todos esses atentados que seguem sem punir porque o Estado não pode inculparse a si próprio nem confessar sua responsabilidade no acontecido.» 

O horror desse diabólico plano só vai aparecendo, no entanto, de forma progressiva e ficam ainda muitos segredos por revelar hoje em dia. Ademais, o paradouro de todos os documentos originais segue sendo desconhecido. «Após o atentado de Peteano e de todos os demais que seguiram», declarou Vinciguerra no julgamento que se fez em sua contra, em 1984, «ninguém devesse duvidar já da existência de uma estrutura activa e clandestina, capaz de elaborar na sombra esse tipo de estratégia de matanças». Uma estrutura que, segundo o próprio Vinciguerra, «está entranhada nos próprios órgãos do poder.

Existe na Itália uma organização paralela às forças armadas, que se compõe de civis e de militares e de vocação antisoviética, ou seja destinada a organizar a resistência contra uma eventual ocupação do território italiano por parte do Exército Vermelho.» Sem mencionar por seu nome, esse depoimento confirmou a existência do Gládio, o exército secreto e stay-behind criado por ordem da OTAN. Vinciguerra descreveu-o como «uma organização secreta, uma super-organização que dispõe de sua própria rede de comunicações, de explosivos e de homens treinados para os utilizar». O terrorista revelou que essa «superorganização, a falta de invasão soviética, recebeu da OTAN a ordem de lutar contra um deslizamento do poder para a esquerda no país. E isso foi o que fizeram, com o apoio dos serviços secretos do Estado, do poder político e do exército.»

Mais de 20 anos têm decorrido desde o revelador depoimento do terrorista arrependido que, por vez primeira na história italiana, estabeleceu um vínculo entre a rede stay-behind Gládio, a OTAN e os atentados com bombas que enlutaram o país. E só agora, ao cabo de todos estes anos, após a confirmação da existência do exército secreto e da descoberta dos esconderijos de armas e de explosivos, os pesquisadores e historiadores conseguem interpretar por fim o sentido das palavras de Vinciguerra.

Mas, são dignas de crédito as palavras desse homem? Os factos que se produziram após o julgamento parecem indicar que sim. O exército secreto foi descoberto em 1990 e, como para confirmar indirectamente que Vinciguerra tinha dito a verdade, o apoio do que tinha gozado até aquele então por parte das altas esferas lhe foi bruscamente retirado. Contrariamente ao sucedido com outros terroristas de extrema direita, que tinham sido postos em liberdade após ter colaborado com os serviços secretos italianos, Vinciguerra foi condenado a prisão perpétua. Mas Vinciguerra não foi o primeiro em revelar a vinculação entre o Gladio, a OTAN e os atentados.

 Também não foi o primeiro em falar da conspiração do Gladio na Itália. Em 1974, durante uma investigação sobre o terrorismo de extrema direita, o juiz de instrução Giovanni Tamburino tinha sentado um precedente ao inculpar ao general Vito Miceli, o chefe do SID, os serviços secretos militares italianos, por ter promovido, instaurado e organizado, com a ajuda de outros cúmplices, uma associação secreta que agrupava civis e militares e cujo objectivo era provocar uma insurreição armada para modificar ilegalmente a Constituição e a composição do governo».

 O 17 de novembro de 1974, durante seu próprio julgamento, o general Miceli, ex responsável do Buró de Segurança da OTAN, revelou, furioso, a existência do exército Gladio e descreveu-o como um ramo especial do SID: «Dispunha eu de um superSID a minhas ordens? Com certeza! Mas não o criei eu mesmo para tentar dar um golpe de Estado. Não fiz mais que obedecer as ordens dos Estados Unidos e a OTAN!»

 Mercê aos sólidos contactos que tinha do outro lado do Atlántico, Miceli não saiu malparado. Foi liberto baixo fiança e passou 6 meses em um hospital militar. Teve que esperar 16 anos mais até que, baixo a pressão das descobertas do juiz Casson, o premiê italiano Andreotti revelasse ante o parlamento italiano a existência da rede Gladio. Ao inteirar-se, Miceli encheu-se de ira. Pouco dantes de sua morte, em outubro de 1990, Miceli não pôde seguir se contendo: «Eu fui ao cárcere porque me negava a revelar a existência desta super-organização secreta e agora Andreotti se pára adiante do parlamento e conta tudo!»

No cárcere, Vinciguerra, o que tinha posto a bomba de Peteano, explicou ao juiz Casson que, em sua missão de enfraquecer a esquerda italiana, os serviços secretos militares e a rede Gladio tinham contado com a ajuda não apenas de Ordine Nuovo mas de outras organizações de extrema direita muito conhecidas, como Avanguardia Nazionale: «Por trás dos terroristas tinha muita gente que actuava na sombra, gente que pertencia ou colaborava com o aparelho de segurança.

 Eu afirmo que todos os atentados perpetrados após 1969 eram parte de uma mesma estratégia.» Vinciguerra, membro de Ordine Nuovo, contou como ele próprio e seus camaradas de extrema direita tinham sido recrutados para executar as acções mais sangrentas com o exército secreto Gládio: «Avanguardia Nazionale, ao igual que Ordine Nuovo, eram mobilizados no marco de uma estratégia anticomunista que não nascia de grupúsculos que gravitaban nas esferas do poder senão do poder mesmo e que fazia parte das relações da Itália com a aliança atlántica.»

O juiz Casson sobressaltou-se ante aquelas revelações. Para erradicar a gangrena que desfazia o Estado seguiu a pista do misterioso exército clandestino Gladio que tinha manipulado a classe política durante a guerra fria e, em janeiro de 1990, pediu permissão às mais altas autoridades do país para estender suas investigações aos arquivos dos serviços secretos militares, le Servizio Informazioni Sicurezza Militare (SISMI), novo nome do SID desde 1978.

Em julho daquele mesmo ano, o premiê Giulio Andreotti autorizou-o a consultar os arquivos do Palazzo Braschi, sede do SISMI em Roma. O magistrado descobriu ali, por vez primeira, documentos que demonstravam a existência na Itália de um exército secreto cujo nome de código era Gládio, que estava às ordens dos serviços secretos militares e cujo objectivo era a realização de operações de guerra clandestina.

Casson encontrou também documentos que demonstravam o envolvimento da aliança militar maior do mundo, a OTAN, e da última superpotencia existente, Estados Unidos, nos actos de subversão bem como seus vínculos com a rede Gládio e com grupúsculos terroristas de extrema direita na Itália e em toda Europa ocidental. Para o juiz Casson, o facto de dispor de tais informações representava um perigo, coisa da qual ele estava inteiramente ciente já que no passado outros magistrados italianos que sabiam demasiado tinham sido assassinados em plena rua: «Desde julho até outubro de 1990, eu fui o único que sabia [da Operação Gladio], o qual podia me acarretar uma desgraça.»

 Mas a temida desgraça não teve lugar e Casson conseguiu resolver o mistério. Baseando nos dados que tinha descoberto se pôs em contacto com a comissão parlamentar que presidia o senador Liberto Gualteri, encarregada de pesquisar sobre os atentados terroristas. Gualteri e seus pares inquietaram-se ante as descobertas que lhes comunicou o magistrado e reconheceram que tinha que adicionar ao trabalho da comissão já que explicavam a origem dos atentados e as razões pelas quais se tinham mantido impunes durante tantos anos. O 2 de agosto de 1990, os senadores ordenaram ao chefe do executivo italiano, o premiê Giulio Andreotti, «informar em 60 dias ao parlamento sobre a existência, a natureza e o objectivo de uma estrutura clandestina e paralela suspeita de ter operado no seio dos serviços secretos militares com o fim de influir na vida política do país».

Ao dia seguinte, o 3 de agosto, o premiê Andreotti apresentou-se ante a comissão parlamentar e, pela primeira vez desde 1945, confirmou, como membro em funções do governo italiano, que uma organização de segurança que actuava baixo as ordens da OTAN tinha existido na Itália. Andreotti comprometeu-se ante os senadores a entregar-lhes um relatório escrito sobre aquela organização em um prazo de 60 dias: «Apresentarei a esta comissão um relatório muito detalhado que tenho pedido ao ministério de Defesa. [O relatório] tem que ver com as operações preparadas por iniciativa da OTAN ante a hipótese de uma ofensiva contra Itália e a ocupação da totalidade do território italiano ou de uma parte do mesmo. Segundo o que me indicaram os serviços secretos, essas operações se desenvolveram até 1972. Decidiu-se então que já não eram indispensáveis. Proporcionarei à comissão toda a documentação necessária, tanto sobre o tema em general como sobre as descobertas do juiz Casson no marco das investigações sobre o atentado de Peteano.»

Giulio Andreotti, que tinha 71 anos no momento da audiência, não era uma testemunha qualquer. Seu comparencimento ante a comissão deu-lhe a oportunidade de submergir-se novamente em sua larguísima carreira política, provavelmente sem equivalente na Europa ocidental. À cabeça do partido democrata-cristão (Democrazia Cristiana Italiana ou DCI), que actuou durante toda a guerra fria como baluarte contra o PCI, Andreotti gozava do apoio dos Estados Unidos. Conheceu pessoalmente a todos os presidentes estadounidenses e, aos olhos de muitos observadores italianos e estrangeiros, foi o político mais influente da Primeira República Italiana (1945-1993).

Apesar da pouca duração que caracterizou aos governos da frágil Primeira República italiana, a habilidade de Andreotti lhe permitiu manter-se no poder graças a numerosas coalizões se convertendo assim em uma personagem inevitável no Palazzo Chigi, a sede do governo italiano. Nascido em Roma em 1919, Andreotti converteu-se em ministro do Interior aos 35 anos dantes de impor um verdadeiro record ao ocupar 7 vezes a cadeira de premiê e obter sucessivamente não menos de 21 carteiras ministeriais, entre elas a de ministro de de Relações Exteriores, que lhe foi confiada 7 vezes. Seus partidários comparavam-no com Julio Cessar e chamavam-no o «Divino Giulio» enquanto seus detractores viam-no como o arquetipo do trapaceiro e o chamavam «o Tio». Conta-se que seu filme de gángsters preferida era Goodfellas, pela frase de Robert De Niro: «Não delates nunca a teus sócios e evita falar a mais». A maioria dos observadores estão de acordo em que foi seu talento como estratega o que permitiu que o Divino Giulio conseguisse sobreviver às numerosas malandragens e intrigas do poder nas que muito freqüentemente esteve directamente implicado.

Ao revelar a existência da Operação Gladio e dos exércitos secretos da OTAN, «O Tio» tinha decidido finalmente romper a lei do silêncio. Ao derrubar-se a Primeira República, ao final da guerra fria, o poderoso Andreotti, que não era já mais que um velho, foi arrastado ante numerosos tribunais acusado de ter manipulado as instituições políticas, de ter colaborado com a máfia e de ter ordenado em segredo o assassinato de opositores políticos. «A justiça italiana virou doida», exclamou em novembro de 2002 o premiê Silvio Berlusconi quando o Corte de Apelação de Perugia condenou a Andreotti a 24 anos de cárcere.

Enquanto os juízes recebiam ameaças de morte e tinha que os pôr baixo protecção policial, os canais de televisão interrompiam a transmissão do futebol para anunciar que Andreotti tinha sido encontrado culpado de ter encarregado ao padrinho da máfia Gaetano Badalamenti o assassinato, em 1979, do jornalista de investigação Mino Pirelli para evitar que se soubesse a verdade sobre o assassinato do presidente da República Italiana, o democrata-cristão Aldo Moro. A igreja católica tratou de salvar a reputação do Divino Giulio. Ante a gravidade dos factos, o cardeal Fiorenzo Angelini declarou: «Jesucristo também foi crucificado dantes de ressuscitar». Apesar de tudo, Andreotti não acabou em seus dias por trás das grades. Os veredictos em sua contra foram anulados em outubro de 2003 e «O Tio» foi posto novamente em liberdade.

Durante suas primeiras revelações sobre a Operação Gladio ante os senadores italianos, o 3 de agosto de 1990, Andreotti pôs especial ênfase em precisar que «essas operações prosseguiram até 1972» para se proteger a si mesmo de possíveis repercussões. Efectivamente, em 1974, quando era ministro de Defesa, o próprio Andreotti tinha declarado oficialmente no marco de uma investigação sobre vários atentados cometidos pela extrema direita: «Eu afirmo que o chefe dos serviços secretos descartou várias vezes de forma explícita a existência de uma organização secreta de qualquer natureza ou tamanho».  Em 1978, Andreotti também tinha prestado depoimento no mesmo sentido ante os juízes que pesquisavam o atentado perpetrado em Milão pela extrema direita.

Quando a imprensa italiana revelou que o exército secreto Gladio, longe de ter sido dissolvido em 1972, seguia estando activo, a mentira de Andreotti não pôde seguir se sustentando. Durante as semanas seguintes, em agosto e setembro de 1990, contrariamente ao que acostumava a fazer, o premiê se comunicou profusamente com o estrangeiro, tratou de se pôr em contacto com numerosos embaixadores e se entrevistou com eles. Como o apoio internacional demorava em chegar, Andreotti, que temia por seu cargo, passou à ofensiva e tratou de sublinhar a importância do papel da Casa Branca e de outros muitos governos da Europa ocidental que não só tinham conspirado na guerra secreta contra os comunistas senão que tinham participado nela activamente. Ao tratar de dirigir a atenção para o envolvimento de outros países, Andreotti recorreu a uma estratégia eficaz ainda que bastante arriscada.

O 18 de outubro de 1990, Andreotti enviou urgentemente um mensageiro do Palazzo Chigi à Piazza San Macuto, onde decorria uma sessão da comissão parlamentar. O mensageiro entregou ao secretário de recepção do Palazzo Chigi o relatório titulado «Um SID paralelo – O caso Gladio». Um membro da comissão parlamentar, o senador Roberto Ciciomessere, soube por acaso que o relatório de Andreotti tinha sido entregado e que estava em mãos do secretário do Palazzo Chigi. Ao dar uma vista de olhos ao texto, o senador ficou grandemente surpreendido ao comprovar que Andreotti não se limitava a proporcionar uma descrição da Operação Gladio senão que, em contradição com sua própria declaração do 3 de agosto, reconhecia que a organização seguia estando activa.

O senador Ciciomessere pediu uma fotocópia do relatório, que lhe foi denegada com o pretexto que, segundo o procedimento em vigor, o presidente da comissão, o senador Gualtieri, tinha que ser o primeiro em conhecer o conteúdo do relatório. Mas o senador Gualtieri nunca chegou a ler aquela primeira versão do relatório de Andreotti sobre a rede Gladio. Três dias depois, quando o ia guardar em seu portadocumentos para levar a sua casa e o ler ali durante o fim de semana, Gualtieri recebeu um telefonema do premiê lhe informando que este precisava imediatamente o relatório «para voltar a trabalhar alguns trechos».

 Gualtieri sentiu certo incómodo, mas finalmente aceitou de má vontade devolver o documento ao Palazzo Chigi, depois de fazer várias fotocópias do mesmo.  Os métodos pouco habituais aos que recorreu Andreotti provocaram um escândalo em toda a Itália e não fizeram mais que agravar as suspeitas. Os jornais publicaram titulares como «Operação Giulio», em referência à Operação Gladio, e entre 50 000 e 400 000 cidadãos indignados, inquietos e furiosos participaram, respondendo ao chamado do PCI, em uma marcha pelo centro de Roma, uma das manifestações mais importantes daquele período, baixo a consigna «Queremos a verdade». Alguns desfilaram disfarçados de gladiadores. Na Piazza do Popolo, o líder do PCI, Achille Occhetto, anunciou à multidão que aquela marcha obrigaria ao governo a revelar as tenebrosas verdades que tinha mantido em segredo durante tantos anos: «Estamos aqui para obter a verdade e transparência».

O 24 de outubro, o senador Gualteri teve de novo em seu poder o relatório de Andreotti sobre o «SID paralelo». Duas páginas tinham desaparecido e esta versão final já não tinha mais que 10. O parlamentar comparou-a com as fotocópias da primeira versão e notou imediatamente que vários fragmentos sensíveis sobre as conexões internacionais e a existência de organizações similares no estrangeiro tinham sido suprimidos. Ademais, todas as menções relativas à organização secreta, que anteriormente apareciam em presente, o qual sugeria que seguiam existindo, apareciam agora em passado. Estava claro que a estratégia de Andreotti consistente em enviar um documento e o recuperar depois para o modificar dantes do reenviar de novo não podia enganar a ninguém.

Os observadores coincidiram em que aquela manobra atrairia obrigatoriamente a atenção para os fragmentos eliminados, ou seja sobre a dimensão internacional do caso, o qual teria como resultado que se diminuísse a culpabilidad do premiê. No entanto, a ajuda do estrangeiro não chegou.

Na versão final de seu relatório, Andreotti explicava que Gladio tinha sido concebido nos países membros da OTAN como uma rede clandestina de resistência destinada a lutar contra uma possível invasão soviética. Ao terminar a guerra, os serviços secretos do exército italiano, o Servizio dei Informazioni delle Forze Armate (SIFAR), predecessor do SID, tinha assinado com a CIA «um acordo sobre “a organização da actividade de uma rede clandestina postinvasión”, acordo designado com o nome de Stay Behind, no que se renovavam todos os compromissos anteriores que implicavam a Itália e Estados Unidos».

A cooperação entre a CIA e os serviços secretos militares italianos, como precisava Andreotti em seu relatório, se encontrava baixo a observação e a coordenação dos centros encarregados das operações de guerra clandestina da OTAN: «Uma vez que se constituiu essa organização secreta de resistência, Itália estava chamada a participar (…) nas tarefas do CPC (Clandestine Planning Committee), fundado em 1959, que operava no seio do [Supreme Headquarters Allied Powers Europe (SHAPE), o quartel geral das potências européias da OTAN (...); em 1964, os serviços secretos italianos integraram-se também ao ACC (Allied Clandestine Committee).» [24]

 O exército secreto Gladio, como revelou Andreotti, dispunha de considerável armamento. O equipamento proporcionado pela CIA tinha sido enterrado em 139 esconderijos distribuídos em bosques, campos e inclusive em igrejas e cemitérios. Segundo as explicações do premiê italiano, esses arsenais continham armas portáteis, munições, explosivos, granadas de mão, facas, dagas, morteiros de 60 mm., fuzis sem retrocesso calibre 57, fuzis com miras telescópicas, transmissores de rádio, prismáticos e outros tipos de equipamento diverso»  Além dos protestos da imprensa e da população contra as acções da CIA e a corrupção do governo, as escandalosas revelações de Andreotti também deram lugar a uma verdadeira febre na busca de esconderijos de armas.

O pai Giuciano recorda no dia em que os jornalistas invadiram sua igreja em procura dos segredos enterrados do Gladio, movidos por intenções ambiguas: «Avisaram-me após o meio dia quando dois jornalistas de Il Gazzettino vieram a me perguntar se eu sabia algo sobre depósitos de munições aqui, na igreja. Começaram a cavar neste lugar e rapidamente encontraram duas caixas. Mas o texto indicava procurar também a uns 30 centímetros da janela. De modo que retomaram seus excavaciones por ali. Apartaram uma das caixas já que continha uma bomba de fósforo. Os carabineiros saíram enquanto dois peritos abriam a caixa. Ainda tinha outra mais, que continha duas metralletas. Todas as armas estavam novas, em perfeito estado. Nunca tinham sido utilizadas.»

Em contradição com o que o terrorista Vinciguerra tinha indicado nos anos 1980, Andreotti afirmava insistentemente que os serviços secretos militares italianos e os membros de Gladio não tinham absolutamente nada que ver com a onda de atentados que se tinha produzido na Itália. Segundo Andreotti, dantes de ser recrutado, a cada membro de Gladio era submetido a exames intensivos e tinha que «se ajustar rigorosamente» à lei que regia o funcionamento dos serviços secretos com o fim de provar sua «fidelidade absoluta aos valores da Constituição republicana antifascista».

 O procedimento tinha também como objectivo garantir a exclusão de todo aquele que ocupasse alguma função administrativa ou política. Ademais, segundo afirmava também Andreotti, a lei estipulava que «os elementos preseleccionados não tivessem antecedentes penais, não tivessem nenhum compromisso de tipo político e não participassem em nenhum tipo de movimento extremista». Ao mesmo tempo, Andreotti assinalava que os membros da rede não podiam declarar ante a justiça e que suas identidades bem como outros detalhes sobre o exército secreto eram secreto militar. «A Operação, devido a suas modalidades concretas de organização e de acção –tal e como estavam previstas pelas directoras da OTAN e integradas em sua estrutura específica– deve se preparar e se executar no mais absoluto segredo.»

As revelações de Andreotti sobre o «SID paralelo» sacudiram a Itália. A muitos custava-lhes aceitar a ideia de um exército secreto dirigido pela CIA e a OTAN na Itália e no estrangeiro. Podia ser legal uma estrutura desse tipo? O diário italiano A Stampa foi particularmente duro: «Nenhuma razão de Estado pode justificar que se mantenha, que se cubra ou se defenda uma estrutura militar secreta composta de elementos recrutados em base a critérios ideológicos –dependente ou, no mínimo, baixo a influência de uma potência estrangeira– e que sirva de instrumento para um combate político. Não existem, para qualificar isso, palavras que não sejam alta traição ou crime contra a Constituição.»

No senado italiano, representantes do Partido Verde, do Partido Comunista e do Partido dos Independentes de Esquerda acusaram o governo de ter utilizado as unidades de Gladio para praticar uma vigilância territorial e perpetrar atentados terroristas com o objectivo de condicionar o clima político. Mas o PCI estava sobretudo convencido de que, desde o começo da guerra fria, o verdadeiro alvo da rede Gladio não tinha sido um exército estrangeiro senão os próprios comunistas italianos. Os observadores sublinhavam que «com esse misterioso SID paralelo, fomentado para contrarrestar um impossível golpe de Estado da esquerda, estivemos a correr sobretudo o perigo de nos ver expostos a um golpe de Estado da direita (…) Não podemos crer isso (…), que esse superSID tenha sido aceitado como uma ferramenta militar destinada a operar “em caso de uma ocupação inimiga”. O único verdadeiro inimigo foi e tem sido sempre o partido comunista italiano, ou seja um inimigo interno.» 

 Decidido a não assumir só aquela responsabilidade, o premiê Andreotti se apresentou ante o parlamento italiano, no mesmo dia que entregou seu relatório final sobre Gladio, e declarou: «À cada chefe de governo informava-se-lhe a existência de Gladio». Sumamente embaraçosa, essa declaração comprometeu entre outros aos ex premiês, como o socialista Bettino Craxi (1983-1987); Giovanni Spadolini do Partido Republicano (1981-1982), então presidente do senado; Arnaldo Forlani (1980-1981), quem era em 1990 secretário da DCI; e Francesco Cossiga (1978-1979), naquele tempo presidente da República.

 Ao ver-se de repente no olho da tormenta, devido às revelações de Andreotti, as reacções destes altos dignitários foram confusas. Craxi afirmava que nunca se lhe tinha informado a existência de Gladio, até que lhe puseram diante um documento sobre Gladio assinado de seu punho e letra na época em que ele era premiê. Spadolini e Forlani sofreram similares ataques de amnésia, mas também tiveram que retractar-se de suas declarações iniciais. Spadolini causou a hilaridade de todo mundo ao precisar que tinha que distinguir entre o que ele sabia como ministro de Defesa e o que lhe informavam como premiê. Francesco Cossiga, presidente da República desde 1985, foi o único que reconheceu plenamente seu papel na conspiração.

 Durante uma visita oficial na Escócia, anunciou que estava até mesmo «feliz e orgulhoso» de ter contribuído à criação do exército secreto como encarregado de assuntos de Defesa no seio da DCI, nos anos 1950.  Declarou que todos os membros de Gladio eram bons patriotas e se expressou nos seguintes termos: «Eu considero como um grande privilégio e uma prova de confiança (…) o ter sido escolhido para essa delicada tarefa (…) Tenho que dizer que estou orgulhoso de que tenhamos podido guardar esse segredo durante 45 anos.»  Ao abraçar assim a causa da organização implicada em actos de terrorismo, o presidente teve que enfrentar, a seu regresso a Itália, uma tempestade política e exigências de renúncia e de destituição por alta traição provenientes de todos os partidos. O juiz Casson teve a audácia de chamá-lo a comparecer como testemunha ante a comissão investigadora do senado.

 Mas o presidente, que visivelmente já não estava tão «feliz», se negou de forma colérica e ameaçou com fechar toda a investigação parlamentar sobre Gladio: «Reenviarei ao parlamento a acta que estende seus poderes e, se [o parlamento] a aprova de novo, voltarei a examinar o texto para determinar se reúne as condições para apresentar uma rejeição [presidencial] definitiva de sua promulgação».  Como aquela ameaça não tinha nenhuma justificação constitucional, os críticos começaram a questionar a saúde mental do presidente. Cossiga renunciou à presidência em abril de 1992, 3 meses antes do termo legal de seu mandato.

Em uma alocução pública pronunciada ante o senado italiano o 9 de novembro de 1990, Andreotti sublinhou novamente que a OTAN, Estados Unidos e numerosos países da Europa ocidental, como Alemanha, Grécia, Dinamarca e Bélgica, estavam implicados na conspiração stay-behind. Como prova de suas alegações, reveladores dados confidenciais foram entregues à imprensa, a publicação política italiana Panorama divulgou integralmente o documento O SID paralelo – O caso Gladio, que Andreotti tinha entregado à comissão parlamentar.

Quando as autoridades francesas trataram de negar seu próprio envolvimento na rede internacional Gladio, Andreotti contestou implacavelmente que França também tinha participado secretamente na última reunião do comité director de Gladio, o ACC, que se tinha desenvolvido em Bruxelas só em umas poucas semanas dantes, nos dias 23 e 24 de outubro de 1990, ante o qual, um pouco incómoda, França teve que reconhecer sua participação na operação. A partir de então, fazia-se impossível desmentir a dimensão internacional da guerra secreta e o escândalo não demorou em se estender por toda Europa ocidental.

 Depois, seguindo as fronteiras dos Estados membros da OTAN, propagou-se rapidamente por Estados Unidos. A comissão do parlamento italiano encarregada de pesquisar sobre Gladio e sobre os atentados perpetrados em seu país concluiu: «Aquelas matanças, aquelas bombas, aquelas operações militares foram organizadas, instigadas ou apoiadas por pessoas que trabalham para as instituições italianas e, como se descobriu mais recentemente, por indivíduos vinculados às estruturas da inteligência estadounidense». 

Um comentário:

Anônimo disse...

tremendo este artigo, inda que se agradecería versión en pdf.