Convocados pelas maiores centrais sindicais do país, trabalhadores portugueses paralisaram atividades em greve geral e foram às ruas, nesta quinta-feira (24), para repudiar as medidas de arrocho que vêm sendo anunciadas pelo governo de direita formado pela coalizão entre o Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrático Social (CDS).
O contestado pacote - que prevê meia hora a mais de trabalho por dia sem aumento de remuneração, corte de salários e de subsídios de Natal e de férias para funcionários públicos, aumento de impostos, flexibilização das regras para desligamentos, entre outras medidas – faz parte das contrapartidas para o socorro financeiro de € 78 bilhões (cerca de R$ 200 bilhões) da chamada troika, forma utilizada para denominar o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE), frente às agruras da dívida lusa.
Em Coimbra, as manifestações puxadas pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN) e pela União Geral de Trabalhadores (UGT) se concentraram pelo final da manhã na Praça 8 de Maio, no centro da cidade. António Moreira, coordenador da União de Sindicatos de Coimbra (USC), que faz parte da CGTP, destacou que, desde meia-noite, vinha contabilizando adesões em diversos segmentos e que a mobilização, por certo, já poderia ser considerada “uma das maiores greves gerais de Portugal”.
Moreira criticou a linha de austeridade que vem sendo seguida pelo governo lembrando que o receituário escolhido tende a manter inabalada uma gama de privilégios restritos aos mais ricos e a abalar as condições de vida da classe trabalhadora. “O dinheiro ‘poupado’ do subsídio de Natal enche os bolsos de envolvidos em casos de corrupção”, atacou. Segundo ele, analistas apoiados pela banca financeira ocupam os meios de comunicação para dizer que esse é o único caminho a ser seguido e pedem sacrifício à população. “Por que não falam da necessidade do sacrifício dos mais ricos, de quem ganha mais de € 15 mil por mês?”
O desemprego na região de Coimbra, frisou o dirigente sindical, já atinge cerca de 20 mil pessoas que integram a população economicamente ativa, dos quais 12 mil são mulheres. Estima-se que uma parcela de 45% dos que estão sem ocupação já deixaram de receber qualquer tipo de benefício social, ou seja, são desempregados de longa duração.
Foram mais de 50 piquetes no distrito. Um dos setores que contou com especial adesão, a despeito das denúncias de intimidação para que não participassem das paralisações, foi o dos transportes, que está sob ameaça de novas demissões em massa. A empresa pública Carris, por exemplo, já teve 8 mil contratados e hoje mantém um quadro de 2,7 mil.
Durante o ato, os manifestantes aprovaram uma moção “contra a exploração e o empobrecimento” e em defesa “do serviço público de qualidade e do emprego com direitos”. Realizou-se, então, uma passeata até o escritório local do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social para que representantes pudessem entregar o documento às autoridades. “Não é o fim de nada. O percurso é ainda longo”, completou Moreira.
Cartão vermelho
Como num jogo de futebol, os manifestantes que participaram da passeata da greve geral ergueram diversas vezes um cartão vermelho como símbolo da intenção de “expulsar” o governo português por conta das medidas adotadas. Antes da caminhada, o sistema de som repetiu seguidas vezes o refrão da música “Até quando? “ [Até quando você vai levando? Porrada! Porrada! Até quando vai ficar sem fazer nada?], do brasileiro Gabriel, O Pensador.
Um dos manifestantes era Mário Gomes, 53 anos, servidor público da área da saúde. Para além da “evaporação” do seu 13º salário, ele conta que terá praticamente mais um vencimento tungado porque o governo também cortou deduções anteriormente autorizadas do imposto de renda. “A indignação é grande. Comecei a trabalhar bem cedo, contribuo há décadas e estou sendo penalizado. Não deveria ser assim”.
Pelas regras anteriores ao pacote de arrocho, Gomes estaria próximo de se aposentar. Agora, deve prosseguir na labuta por mais um bom tempo. Para galgar posições no mercado de trabalho, chegou a iniciar a graduação em Psicologia, mas foi obrigado a desistir. Segundo ele, a dupla jornada como trabalhador e universitário “é simplesmente impossível” de ser mantida.
Desempregada há dois anos, a sexagenária Elsa Maria Coelho também engrossou o protesto. Para sobreviver, a moradora de uma casa abandonada recebe o Complemento Solidário para Idosos (CSI), auxílio semelhante ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) brasileiro. São pouco mais de € 100 mensais. “Portugal está cada vez pior. Estamos pior que a Grécia”, lamentou Elsa, que relatou sofrer com o alcoolismo, além de outros problemas de saúde.
Questão de meses
Esta veio a ser a terceira greve geral desde que se instalou o período democrático consolidado pela Revolução dos Cravos (1974). A primeira ocorreu em 1988, quando o governo de plantão também tentou alterar a lei laboral. A segunda se deu há exatamente um ano, em 24 de novembro de 2010, quando setores da sociedade já declaravam o seu descontentamento com relação aos rumos tomados pelo governo, naquele momento liderado pelo Partido Socialista (PS), de centro-esquerda , diante da crise. Em março deste ano, caíram os socialistas e, após os desdobramentos e entrada em cena da troika, assumiu a direita do PSD/CDS, com o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho à frente como principal autoridade.
De acordo com Luís Lobo, da direção do Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) e da Federação Nacional dos Professores (Fenprof), ligada à CGTP-IN, o protesto nacional liderado pelas centrais contou também com o apoio de outras agremiações sindicais independentes. E como há representantes de praticamente todos os partidos do espectro da esquerda dentro dos sindicatos, houve um suporte político bastante amplo à mobilização.
Para ele, a raiz do problema está no modelo de democracia, que não permite que a população se posicione na tomada de decisões cruciais ao país. Enquanto especuladores e investidores do setor financeiro “votam todos os dias” ao induzir a maneira de condução da crise, os cidadãos precisam se contentar em votar apenas de quatro em quatro anos.
O socorro oferecido pela troika, avalia Lobo, ajudará paradoxalmente a piorar o quadro de penúria. Na visão dele, trata-se de um modelo de atrofiamento que não incentiva o setor produtivo. Calcula-se que o poder de compra de uma família lusa média já tenha se reduzido em 20%. “Em dois anos, serão sete salários a menos”, quantifica o representante docente. Nas universidades e nas escolas politécnicas, o corte geral aplicado foi de severos 8,5%.
Especialmente para uma nação periférica da União Europeia sem grandes reservas, como é o caso de Portugal, seria preciso, conforme recomenda o sindicalista, inverter a situação: o poder de compra precisaria aumentar para impulsionar a economia. “Só no pagamento de juros até 2014, será gasto tanto ou mais que o que foi `poupado` com o corte de salários”.
“Estamos a meio ano da catástrofe. Se nada for feito, deve estourar em junho de 2012”, antevê Lobo. Será o período, frisa, em que o corte do subsídio de férias, muito utilizado para saldar as dívidas já contraídas, será mais sentido. “É impossível hoje que uma família normal de classe média consiga garantir que seu filho esteja no ensino superior”.
Crise de valores
A Fenprof, de Lobo, sustenta números bastante distintos quanto à participação dos trabalhadores da área da educação na greve geral. Balanço oficial da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), órgão do governo, apontou que apenas 10,5% (43,6 mil funcionários) aderiram à manifestação. As centrais asseguram que foi bem mais.
Guerra de números à parte, pelo menos na Universidade de Coimbra, uma das mais tradicionais do país, não se viu grandes agitações em função da greve geral. Segundo levantamento da reitoria, a proporção dos que se uniram à paralisação foi baixa. Mesmo na manifestação que atravessou o centro da cidade, contavam-se os estudantes com facilidade.
A apatia verificada no núcleo, por excelência, de universitários dá margem para enfatizar outro aspecto associado à árdua fase pela qual passa Portugal e outras nações pressionadas pela dívida: a crise de valores. “O problema não está apenas no governo e nos governantes”, complementou o desiludido técnico da área médica, Mário Gomes, que fez questão de comparecer aos atos. “Existe uma subserviência muito grande diante do que se apresenta”, salientou. Faz lembrar, de acordo com ele, um trecho da obra (Diário XI) de Miguel Torga, que chegou a trabalhar com o tio nas lavouras de café do Brasil e se notabilizou como poeta, contista e memorialista em Coimbra: "Que povo este! Fazem-lhe tudo, tiram-lhe tudo, negam-lhe tudo, e continua a ajoelhar-se quando passa a procissão".
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