Oscar Guisoni. Artigo tirado de Carta Maior (aquí). Tradução: Libório Júnior.
A convocatória apareceu uma tarde na rede. Alguém a postou no Facebook porque havia visto no mural de um amigo que, por sua vez, havia visto no Twitter, publicada por alguém que havia levantado de um blog e assim até o infinito. Uma das plataformas cidadãs convocadoras, a “Democracia Já!”, havia tentado a sorte com pequenas manifestações uns dias antes, mas nem sequer eles esperavam um êxito tão importante. Picado pela curiosidade jornalística, decidi passar pela praça. Mais de uma vez havíamos comentado com os demais correspondentes estrangeiros em Madrid sobre a passividade insólita com que os espanhóis enfrentavam a crise econômica, motivo pelo qual nenhum dos colegas acreditava que pudesse chegar a haver uma manifestação massiva naquele dia 15 de maio de 2011.
Motivos para a raiva e a indignação sobravam: desde 2008 a economia espanhola não havia feito mais que cair vertiginosamente, enquanto sua classe dirigente concedia tudo aos inclementes “mercados” que exigiam um ajuste fiscal atrás do outro para recuperar a famosa “confiança” que nunca chegava, enquanto o desemprego crescia e o estado de bem-estar, que tantas décadas custou construir, se ressentia até limites impensados. Como se fosse pouco, a ressaca de um boom imobiliário sem precedentes, que havia começado no final dos anos noventa e havia acabado abruptamente, depois da crise das “subprime” nos Estados Unidos, maltratava um grupo numeroso de famílias que haviam comprado sua casa nova acedendo a hipotecas baratas que agora não podiam pagar por algum de seus membros ter perdido seu trabalho, motivo do aumento dos desalojamentos.
O ambiente na praça era variado. Os jovens preponderavam sobre os demais com suas demandas de emprego – mais de 40% de desemprego entre o segmento que vai dos 18 aos 35 anos de idade –, mas também havia adultos e idosos. Os cartazes deixavam claro quais eram os motivos do protesto. Estavam os que pediam que se freassem os desalojamentos e os que exigiam uma reforma eleitoral para garantir maior transparência e representatividade ao sistema político, estavam os que clamavam contra a corrupção e os que estavam cansados da prepotência dos bancos, havia quem defendia o meio-ambiente da agressão dos especuladores imobiliários e quem pedia o fim das corridas de touros em defesa dos direitos dos animais, estavam os que se queixavam pelos cortes em saúde e educação e os que pediam maiores impostos para as grandes fortunas. Entre todos os cartazes, um gigante que no dia seguinte seria capa em vários periódicos: “Não somos antissistema, o sistema é anti nós”.
Com o correr dos dias o protesto foi se expandindo. Às manifestações na madrilenha Praça do Sol logo se somaram a maioria das grandes cidades espanholas e até às pequenas capitais de província chegou o murmúrio dos “indignados”, como começou a chamar-se um movimento que resistia a ter líderes visíveis ou agrupações que o representasse oficialmente. Depois vieram os acampamentos. O protesto havia chegado para instalar-se e logo floresceram improvisadas barracas nas cidades onde a mobilização havia vingado com mais força: Madri, Valência, Barcelona. Alguns dias mais tarde houve eleições regionais e o governante Partido Socialista desmoronou até níveis nunca vistos desde o retorno da democracia ao país, em 1977. Mas as eleições, que lhe outorgaram uma vitória inaudita ao conservador Partido Popular, deixaram também em evidência a escassa ou nula capacidade dos manifestantes de incidir no debate político tradicional e, por conseguinte, no governo de seu próprio povo. Os elementos para um áspero debate, que não tardaria em começar, estavam servidos. Um ano depois, o 15-M enfronta seu difícil balanço.
Mais indigandos do que antes
Com o correr dos dias e enquanto o país ia se envolvendo pouco a pouco na campanha eleitoral às eleições de novembro, onde haveria de eleger o novo governo nacional, o 15-M foi perdendo fôlego. As manifestações, depois de alcançar um pico durante seu primeiro mês de vida, foram rareando e os acampamentos se transformaram em lugar de passagem de uma variada fauna urbana que muito pouco tinha para oferecer ao debate em torno de uma crise que, com o correr dos meses, foi se tornando mais e mais angustiante.
A “Democracia, Já!”, uma das plataformas fundadoras, não demorou em dividir-se em duas, fruto de suas próprias contradições internas, depois de haver desistido da ideia de transformar-se em um partido político, como sugeriam alguns de seus militantes. E o resto das agrupações, como a Plataforma de Afetados pela Hipoteca (PAH), se concentrou em tratar de mitigar os efeitos da crise aí onde era mais visível, à espera que apareça em cena uma alternativa política capaz de aglutinar o entusiasmo cidadão.
Mas o movimento não foi de todo em vão, sobretudo se for medido por sua capacidade de instalar certos temas na agenda pública e por sua contribuição ao debate cidadão em torno a um modelo econômico em plena eclosão, que não encontra o modo de devolver o crescimento a uma economia exausta de tanto ajuste. Os protestos dos afetados pela crise hipotecária conseguiram frear vários desalojamentos e conseguiram que o governo e a banca se comprometessem em tratar de modificar a legislação vigente, que não permite que uma dívida hipotecária seja saldada com a entrega do imóvel afetado, algo inédito no resto dos países europeus.
Os protestos contra os bancos e os escandalosos salários que recebem seus executivos, motivou que o atual ministro de economia do governo de Mariano Rajoy, Luis de Guidos, decidisse limitar o salário dos executivos das entidades intervidas pelo estado, embora não haja um só responsável pelo desastre processado pela justiça, como ocorre na Islândia. Muito pelo contrário: o estado se viu obrigado a continuar injetado dinheiro público nos bancos privados, um dos pontos que mais criticavam os “indignados” em seus discursos.
As exigências de maior transparência pública e de uma reforma política profunda tampouco chegaram a bom porto. O novo governo do PP aprovou uma morna lei que obriga à administração pública a informar sobre como gasta o dinheiro, mas excetuou à Casa Real de suas exigências e até ganhou as críticas da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) por “não reconhecer que o acesso à informação é um direito fundamental e por excluir a alguns organismos”. Da ansiada reforma eleitoral tampouco há notícias. O sistema vigente está construído para premiar o bipartidarismo e as formações nacionalistas regionais, mas é escassamente representativo. Cada vez que se levou a discussão ao recinto parlamentar, os dois grandes partidos (PP e PSOE) se negaram a modificá-lo.
As demandas por trabalho também caíram num saco sem fundo. Um ano depois da eclosão do 15-M, não só há mais desempregados que antes, como há ainda uma virulenta reforma trabalhista impulsionada pelo Partido Popular, que barateou a demissão e flexibilizou os contratos. Com a desculpa de gerar mais emprego se facilitou que fossem destruídos: em poucos meses o índice disparou e o drama já afeta quase 25% da população ativa. As reivindicações para salvaguardar o estado de bem-estar não tiveram melhor sorte: um ano depois, em que pese as promessas eleitorais do PP, a saúde dispõe de sete bilhões de euros a menos e muitos de seus serviços deixaram de ser gratuitos e a educação tem três bilhões a menos e até multiplicaram o número de crianças nas aulas para ter menos custos. Ao pedido de maiores impostos para os mais endinheirados, o governo respondeu aumentando os impostos à classe média e aos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se negou rotundamente a elaborar uma taxa que grave as grandes fortunas.
Dilemas indignados
Um ano depois de haver irrompido em cena, o 15-M se pergunta, a seu modo: e agora o que fazer? O movimento continua sem ter líderes claros e sua capacidade de mobilização já não é a mesma. Como se isso não bastasse, o governo ameaça com modificar a legislação vigente para penalizar as manifestações convocadas pelas redes sociais, limitando as liberdades públicas. Por enquanto, o único efeito visível da profundidada do protesto foi a multiplicação exponencial dos deputados que a Esquerda Unida obteve nas últimas eleições gerais. A EU é a única formação política com alcance nacional que se opõe aos ajustes fiscais recomendados pela União Europeia e os grandes organismos internacionais de crédito, mas suas práticas estão demasiado ligadas ao que os “indignados” identificam como “velha política” e seus dirigentes não conseguem entusiasmar amplos setores populares.
Enquanto os debates se sucedem na rede e na multidão de assembleias por bairro que mantiveram uma discreta atividade durante os últimos meses, o país continua submerso nos marasmos da crise sem solução à vista. A catastrófica situação econômica, entretanto, começa a pressionar os partidos políticos de um modo acelerado. Enquanto os socialistas não se recuperam do duro golpe sofrido nas urnas em novembro, o Partido Popular perdeu pelo menos 10 pontos de intenção de voto, segundo as últimas sondagens, em apenas alguns meses de governo, sem que apareçam alternativas sólidas.
Diante de um cenário de decomposição tão virulento, muitos temem que aconteça o que está ocorrendo na Grécia, onde em poucos meses disparam por igual as agrupações neonazistas e os grupos de extrema esquerda, fragmentando a vontade do eleitorado até tal ponto que o país resulta agora ingovernável. Tudo isto os “indignados” também o sabem, embora ainda não saibam o que fazer para mudar tal situação.
Motivos para a raiva e a indignação sobravam: desde 2008 a economia espanhola não havia feito mais que cair vertiginosamente, enquanto sua classe dirigente concedia tudo aos inclementes “mercados” que exigiam um ajuste fiscal atrás do outro para recuperar a famosa “confiança” que nunca chegava, enquanto o desemprego crescia e o estado de bem-estar, que tantas décadas custou construir, se ressentia até limites impensados. Como se fosse pouco, a ressaca de um boom imobiliário sem precedentes, que havia começado no final dos anos noventa e havia acabado abruptamente, depois da crise das “subprime” nos Estados Unidos, maltratava um grupo numeroso de famílias que haviam comprado sua casa nova acedendo a hipotecas baratas que agora não podiam pagar por algum de seus membros ter perdido seu trabalho, motivo do aumento dos desalojamentos.
O ambiente na praça era variado. Os jovens preponderavam sobre os demais com suas demandas de emprego – mais de 40% de desemprego entre o segmento que vai dos 18 aos 35 anos de idade –, mas também havia adultos e idosos. Os cartazes deixavam claro quais eram os motivos do protesto. Estavam os que pediam que se freassem os desalojamentos e os que exigiam uma reforma eleitoral para garantir maior transparência e representatividade ao sistema político, estavam os que clamavam contra a corrupção e os que estavam cansados da prepotência dos bancos, havia quem defendia o meio-ambiente da agressão dos especuladores imobiliários e quem pedia o fim das corridas de touros em defesa dos direitos dos animais, estavam os que se queixavam pelos cortes em saúde e educação e os que pediam maiores impostos para as grandes fortunas. Entre todos os cartazes, um gigante que no dia seguinte seria capa em vários periódicos: “Não somos antissistema, o sistema é anti nós”.
Com o correr dos dias o protesto foi se expandindo. Às manifestações na madrilenha Praça do Sol logo se somaram a maioria das grandes cidades espanholas e até às pequenas capitais de província chegou o murmúrio dos “indignados”, como começou a chamar-se um movimento que resistia a ter líderes visíveis ou agrupações que o representasse oficialmente. Depois vieram os acampamentos. O protesto havia chegado para instalar-se e logo floresceram improvisadas barracas nas cidades onde a mobilização havia vingado com mais força: Madri, Valência, Barcelona. Alguns dias mais tarde houve eleições regionais e o governante Partido Socialista desmoronou até níveis nunca vistos desde o retorno da democracia ao país, em 1977. Mas as eleições, que lhe outorgaram uma vitória inaudita ao conservador Partido Popular, deixaram também em evidência a escassa ou nula capacidade dos manifestantes de incidir no debate político tradicional e, por conseguinte, no governo de seu próprio povo. Os elementos para um áspero debate, que não tardaria em começar, estavam servidos. Um ano depois, o 15-M enfronta seu difícil balanço.
Mais indigandos do que antes
Com o correr dos dias e enquanto o país ia se envolvendo pouco a pouco na campanha eleitoral às eleições de novembro, onde haveria de eleger o novo governo nacional, o 15-M foi perdendo fôlego. As manifestações, depois de alcançar um pico durante seu primeiro mês de vida, foram rareando e os acampamentos se transformaram em lugar de passagem de uma variada fauna urbana que muito pouco tinha para oferecer ao debate em torno de uma crise que, com o correr dos meses, foi se tornando mais e mais angustiante.
A “Democracia, Já!”, uma das plataformas fundadoras, não demorou em dividir-se em duas, fruto de suas próprias contradições internas, depois de haver desistido da ideia de transformar-se em um partido político, como sugeriam alguns de seus militantes. E o resto das agrupações, como a Plataforma de Afetados pela Hipoteca (PAH), se concentrou em tratar de mitigar os efeitos da crise aí onde era mais visível, à espera que apareça em cena uma alternativa política capaz de aglutinar o entusiasmo cidadão.
Mas o movimento não foi de todo em vão, sobretudo se for medido por sua capacidade de instalar certos temas na agenda pública e por sua contribuição ao debate cidadão em torno a um modelo econômico em plena eclosão, que não encontra o modo de devolver o crescimento a uma economia exausta de tanto ajuste. Os protestos dos afetados pela crise hipotecária conseguiram frear vários desalojamentos e conseguiram que o governo e a banca se comprometessem em tratar de modificar a legislação vigente, que não permite que uma dívida hipotecária seja saldada com a entrega do imóvel afetado, algo inédito no resto dos países europeus.
Os protestos contra os bancos e os escandalosos salários que recebem seus executivos, motivou que o atual ministro de economia do governo de Mariano Rajoy, Luis de Guidos, decidisse limitar o salário dos executivos das entidades intervidas pelo estado, embora não haja um só responsável pelo desastre processado pela justiça, como ocorre na Islândia. Muito pelo contrário: o estado se viu obrigado a continuar injetado dinheiro público nos bancos privados, um dos pontos que mais criticavam os “indignados” em seus discursos.
As exigências de maior transparência pública e de uma reforma política profunda tampouco chegaram a bom porto. O novo governo do PP aprovou uma morna lei que obriga à administração pública a informar sobre como gasta o dinheiro, mas excetuou à Casa Real de suas exigências e até ganhou as críticas da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) por “não reconhecer que o acesso à informação é um direito fundamental e por excluir a alguns organismos”. Da ansiada reforma eleitoral tampouco há notícias. O sistema vigente está construído para premiar o bipartidarismo e as formações nacionalistas regionais, mas é escassamente representativo. Cada vez que se levou a discussão ao recinto parlamentar, os dois grandes partidos (PP e PSOE) se negaram a modificá-lo.
As demandas por trabalho também caíram num saco sem fundo. Um ano depois da eclosão do 15-M, não só há mais desempregados que antes, como há ainda uma virulenta reforma trabalhista impulsionada pelo Partido Popular, que barateou a demissão e flexibilizou os contratos. Com a desculpa de gerar mais emprego se facilitou que fossem destruídos: em poucos meses o índice disparou e o drama já afeta quase 25% da população ativa. As reivindicações para salvaguardar o estado de bem-estar não tiveram melhor sorte: um ano depois, em que pese as promessas eleitorais do PP, a saúde dispõe de sete bilhões de euros a menos e muitos de seus serviços deixaram de ser gratuitos e a educação tem três bilhões a menos e até multiplicaram o número de crianças nas aulas para ter menos custos. Ao pedido de maiores impostos para os mais endinheirados, o governo respondeu aumentando os impostos à classe média e aos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se negou rotundamente a elaborar uma taxa que grave as grandes fortunas.
Dilemas indignados
Um ano depois de haver irrompido em cena, o 15-M se pergunta, a seu modo: e agora o que fazer? O movimento continua sem ter líderes claros e sua capacidade de mobilização já não é a mesma. Como se isso não bastasse, o governo ameaça com modificar a legislação vigente para penalizar as manifestações convocadas pelas redes sociais, limitando as liberdades públicas. Por enquanto, o único efeito visível da profundidada do protesto foi a multiplicação exponencial dos deputados que a Esquerda Unida obteve nas últimas eleições gerais. A EU é a única formação política com alcance nacional que se opõe aos ajustes fiscais recomendados pela União Europeia e os grandes organismos internacionais de crédito, mas suas práticas estão demasiado ligadas ao que os “indignados” identificam como “velha política” e seus dirigentes não conseguem entusiasmar amplos setores populares.
Enquanto os debates se sucedem na rede e na multidão de assembleias por bairro que mantiveram uma discreta atividade durante os últimos meses, o país continua submerso nos marasmos da crise sem solução à vista. A catastrófica situação econômica, entretanto, começa a pressionar os partidos políticos de um modo acelerado. Enquanto os socialistas não se recuperam do duro golpe sofrido nas urnas em novembro, o Partido Popular perdeu pelo menos 10 pontos de intenção de voto, segundo as últimas sondagens, em apenas alguns meses de governo, sem que apareçam alternativas sólidas.
Diante de um cenário de decomposição tão virulento, muitos temem que aconteça o que está ocorrendo na Grécia, onde em poucos meses disparam por igual as agrupações neonazistas e os grupos de extrema esquerda, fragmentando a vontade do eleitorado até tal ponto que o país resulta agora ingovernável. Tudo isto os “indignados” também o sabem, embora ainda não saibam o que fazer para mudar tal situação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário