20/11/2013

Sucinto resumo do cientifismo canalhesco. A propósito do derradeiro livro de Francisco Fernández Buey

Ernesto Castro. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por À revolta entre a mocidade. O jovem filósofo madrileno Ernesto Castro, colaborador habitual de SinPermiso, reflete a propósito do livro póstumo do nosso malogrado amigo Paco Fernández Boi (1943-2012): Para la tercera cultura, Barcelona, Edições El Viejo Topo, 2013, 410 páginas, 22 euros.





Nada mais que a verdade

Fará em um ano que a morte de Francisco Fernández Buey supôs um considerável varapau para qualquer racionalista moderado. Algo similar tem por subtítulo um livro seu, Ideas para un racionalismo bien temperado, uma etiqueta que resume uma trajetória profissional dedicada -entre outras coisas- a estudar a Marx sem quartel, a Gramsci sem escola. Também a escrever sobre Einstein com singeleza. Aparece este outono um livro seu póstumo, Para la tercera cultura, onde Fernández Buey recolhe boa parte do debate atual sobre as ciências e as letras (como tender pontes entre ambas?), refletindo as suas inclinações intelectuais sem ignorar as coletivas, sabendo que a aposta em o conhecimento científico também implica uma conceção da política, aquela onde a verdade -toda a verdade e nada mais que ela- seja absolutamente revolucionária.

Talvez carregue muito as tintas no último enunciado, outorgando à ilustração uma capacidade redentora que a todas luzes parece reclamar sem muito sucesso, e ademais Fernandez Buey mesmo inicia o livro com uma reflexão sobre as limitações que lastram o imaginar aos sábios como faros do intercâmbio razoável de posições ideológicas, duchas do aseio contra o enviesado e a mentira, em local dos ver como indivíduos participes do processo político mesmo. Em palavras do geneticista Albert Jacquard: "o conceito de raça carece de fundamento e, consequentemente, o racismo deve desaparecer. Faz em uns anos eu aceitaria de bom grau que, uma vez feita esta afirmação, o meu trabalho como científico e como cidadão concluía. Hoje não penso assim, pois embora não tenha raças a existência do racismo é indubidável."

É bem sabido que a atividade política tem compromissos que o compromisso científico desconhece por completo. A questão estriba em achar o ponto de união entre ambas esferas de atividade humana. Para isso convém fazer um repasso por algumas disputas sobre a terceira cultura que Fernández Buey não recolhe. Isso não implica tanto criticar o trabalho do filósofo, sobressalente quando cartografia alguns debates centrais dos últimos duzentos anos, quanto ajudar a completar um ensaio vibrante cuja leitura seguro melhora em ausência spoilers.

Contra Darwin

Há uma polémica científica, entre todas as analisadas com detalhe por Fernández Buey, que nos permite enlaçar com o presente imediato. Falamos da crítica que fez Uexküll a Darwin tomando  os equívocos fáceis da vulgata darwinista novecentista (que a natureza evolui progressivamente e sem saltos, sobretudo) como carta de morte do pensamento de Darwin para maior glória de uma biologia holista, organicista e teleológica, cuja vanguarda científica seria (surpresa?) nada menos que o próprio Uexküll. Este salto impropio (criticar a Darwin pelos seus herdeiros) parece ter-se convertido em todo um desporto nacional entre filósofos analíticos desde que Fernández Buey ultimasse o seu manuscrito, fará uns cinco anos. Desde então fizeram aparecimento textos que põem entre parênteses a habitual afinidadr eletiva entre pensamento anglo-saxão e divulgação científica, coisa fixa desde o positivismo lógico em adiante.

Entre estes ataques destaca sobretudo a rejeição da teoria da seleção natural por parte de Jerry Fodor, famoso filósofo cognitivo cuja incursão no campo da biologia alguns colegas de profissão tomaram como uma intentona desesperada de reter uma autonomia sobre o estudo da mente, campo que estava a ser cercado pela neurologia desde diversas frentes. A polémica ocorrida nas páginas da New York Review of Books, junto à publicação em formato livro das suas considerações, constitui um exemplo bastante fidedigno da ilusão ótica que podem chegar a sofrer quem reproduzem a destempo saber cientista estabelecido como se fosse pouco menos que a destruição definitiva do paradigma baixo o qual -malgré tout- os mesmos cientistas seguem identificando-se. Alguma razão terá, digo eu.

Atractores políticos

Como podem se imaginar, esta sorte de disputa entre as artes e as ciências não é para nada nova. Vem desde quando Goethe dissesse que sem metáforas não fazia sentido a sua teoria das cores. Os newtonianos contiveram então o riso. Os seus homólogos contemporâneos, os físicos com certa presença mediática interessados nas humanidades, costumam gastar níveis de tolerância diferentes para os charlatães. Todos ouvimos falar sobre o caso Sokal, esse mítico zás-em-toda-a-boca dirigido com especial carinho e lembranças para a família a quem tentem utilizar a retórica científica com fins de postureu intelectual.

Um resumem do debate: o físico Alain Sokal escreveu um artigo carregado de referências a todo o panteão teórico francês, incluído o epic fail lacaniano sobre o falo sendo igual a -1, um texto muito louco a respeito de uma possível hermenêutica transformadora [sic] no campo da física cuántica que publicaram os crédulos editores de Social Text, uma revista de inclinação pós-moderna; quando Sokal revelou a fraude, a polémica estava servida: a denominada french theory, vale algo mais que um rabicó?; a correção via peer review, talvez reforça a jíria, os sesgos e a deformação profissional em local de melhorar a qualidade dos textos feitos na Academia?

Menos famosa é a disputa que teve local em Espanha a raiz de Caos y Orden, o livro onde Antonio Escohotado pretendia justificar a sua posição política liberal indo a razonamentos científicos entre-sacados da física do caos e a teoria cuántica, uma estratégia argumentativa que foi recolhida com caixas razoavelmente destempladas pela comunidade investigadora. Antonio Fernandez-Rañada abriu a veda das resenhas negativas indicando até que ponto Escohotado assumia uma conceção trasnoitada sobre a evolução do conhecimento ao presumir que somos incapazes de comparar paradigmas de explicação sucessivos, uma ideia que foi eliminada inclusive até pela sua ideador original, Thomas Kuhn.

O Kuhn maduro aceitava que o conhecimento científico fosse cumulativo em todo o ponto, que a teoria da relatividade e a mecânica cuántica fossem perfeitamente conmensuráveis, que nenhuma das duas negasse à física newtoniana o seu peculiar âmbito de validade como aproximação compreensível aos fenómenos macroscópicos. "Nada sabemos a ciência verdadeira" replicava o Escohotado maduro enquanto se amparava na revolução cognoscitiva que supôs o abandono da mecânica clássica para uma visão do mundo, a nossa, que seguro estará submetida a mudanças similares no futuro. Nisto último percebia Fernández-Rañada uma confusão entre "não saber algo" e "não saber nada", duas coisas bem diferentes, para terminar concluindo: "Se o autor quer dizer, como faz na segunda parte, que o estado-nação é um atractor político, o faça assim em boa hora. Afinal de contas, só é outra maneira de dizer que é uma ideia política atraente, mas não acrescenta nada sacar os conceitos do seu contexto".

Meros factos

Quem pode duvidar que a polémica contenha elementos políticos relevantes, concernentes em primeiro lugar aos programas de estudo ou o I+D+i, mas para além destes óbvios campos de batalha académico, onde a cada quem subscreve uma noção diferente de formação pessoal e profissional através da educação, as fronteiras ideológicas se diluem. Quem pretenda estabelecer uma correlação entre espírito científico e carácter apolítico (segundo aquele motto da teoria crítica: um saber a respeito dos factos gera homens de meros factos, burocratas especializados do conhecimento, modestos baluartes do statu quo), tem que enfrentar a complexa realidade dos nossos intelectuais: Jean Bricmont, o companheiro de Sokal quando tocava sacar a vassoura, mostrou como estava à esquerda dos intelectuais pós-modernos varreduras pelas suas críticas quando eles, os sobreviventes do estruturalismo afrancesado, calaram em matéria de política exterior (como faziam desde a guerra de Argélia) enquanto ele publicava o seu Imperialismo Humanitário, uma defesa dos direitos humanos contra os militares que pretendem apropriar da ilustração com fins petrolíferos inconfesáveis.

O oposto, estar à direita de uma inteligentsia humanista ultraradical, também vem sendo verdadeiro. Muitos criticam de facto a focagem ordoliberal que costumam destilar as receitas extraídas pelos principais divulgadores da terceira cultura uma vez terminam os capítulos descritivos e começam a enfiar as conclusões ou "conselhos do sábio", quando está a flor de pele a tentação de devir canalha (para Marx: "pessoa que procura acomodar a ciência a um ponto de vista que não deriva da ela mesma"). Bem sabidos são para muitos os sesgos que lastra a popes como Steven Pinker, cujo último volume sobre a violência (Os anjos que levamos dentro) chega a negar os principais consensos científicos sobre como explicar a baixada do número de homicídios nos anos 90 (segundo os experientes seria fruto dos métodos anticonceptivos introduzidos várias décadas antes que frearam multidão de nascimentos indesejados) até o ponto de dizer que esta hipótese resulta demasiado simples para ser certa (sendo a simplicidade considerada normalmente uma virtude em local de um detrimento explicativo). A explicação alternativa proposta nos anjos? Resumindo muitíssimo: muita polícia, pouco crime. Agora resulta que, contra a lição intuitiva de The Wire e a explicação estatística manejada das faculdades de ciências sociais, o Bálsamo de Fierabrás contra o crime é nada menos que a conversão do polícia em robocop. Tenho aqui as virtudes de semelhante distorção ideológica.

O caminho até Hitler

Vá isto pelos junta-provetas metidos a conselheiros do príncipe. Agora bem, que acontece ao inverso? Talvez os resultados costumam melhorar quando estudamos casos de humanistas travestidos de sabe-o-todo cientificistas? Ignoremos por um momento aos figurantes do amateurismo entusiasta como Eduard Punset, um genuíno alumiado do assunto cuja capacidade de estender a curiosidade intelectual vem sendo inversamente proporciona à coerência do seu discurso político. Tomemos pelo contrário a questão do caminho desde o irracionalismo e o romantismo até Hitler, por utilizar a expressão de Gyorg Lukacs citada por Fernández Buey. É algo bem notório que a imunidade intelectual que mostram alguns filósofos ante as mais elementares ferramentas do razoamento coerente tem a sua origem última em certos alemães sabichados da República de Viena como Ernst Jünger ou Martin Heidegger, ambos nazistas. A pergunta é clara: em que medida conduz o irracionalismo filosófico a posições políticas aloucadas? (A inversa também resulta válida para algumas escolas: é Auschwitz o epítome da metafísica falogocéntrica racionalista tecnificada?)

Sobre o caso Heidegger (até que ponto estão unidos a sua ontologia e as suas inclinações ideológicas?) Fernández Buey reproduz umas palavras atinadas de Karl Löwith sobre o famoso discurso dado em 1933 pelo filósofo de Ser e tempo convertido no reitor nazista da Universidade de Friburgo: "O serviço social e o serviço militar voltam-se um com o serviço do saber, e ao final da exposição não se sabe se um deve ir em procura dos presocráticos de Diles ou marchar junto às SA. Daí que este discurso não possa ser julgado de modo puramente político nem filosófico. Politicamente tanto faz de débil que como tratado."

A posição de Fernández Buey tem a sorte do matiz, não obstante, assim que termina julgando que "entre a formulação filosófica ou a invenção da teoria (em sentido amplo) e a decisão prática de se vincular a uma determinada ideologia ou a uma opção política há sempre demasiadas mediações (disposição, vontade, expectativas pessoais, etnia, classe, tribo, etc.) como para estabelecer derivações fixas. Só o jornalismo sensacionalista opera como se estas não existissem."

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