Artigo de Aleksandr Karpets, jornalista ucraniano, tirado de Outras Palavras (aqui). Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel. O negrito é de nosso.
Fora uma reação natural às ações autoritárias do governo, esta
revolta insana foi consequência da incapacidade e da impossibilidade de
resolver, de forma racional, os problemas catastróficos acumulados na
Ucrânia após a desarticulação da União Soviética. Problemas que se
agravaram com a chegada ao poder de Yanukovich. Por um lado, a revolta
demonstrou a debilidade do seu governo e, por outro, que os líderes e as
massas não têm nenhuma compreensão racional do que acontecerá depois,
do mesmo modo como não sabem a que realmente aspiram, no caso de um
eventual triunfo.
O problema principal está nas contradições que se acumularam no
país durante quase um quarto de século: o saque dos bens nacionais por
parte dos novos ricos, o aparecimento e o forte aumento da injustiça
social, uma enorme desigualdade econômica e política e, como
consequência de tudo isso, uma incrível decomposição moral de toda a
sociedade, o que provocou a corrupção generalizada em todos os níveis.
Esse problema não tem solução nem em um protesto de rua, nem dentro
dos procedimentos legais do Estado, incluindo todo tipo de negociação ou
“mesas”, que servirão não mais que como válvulas de escape.
Em primeiro lugar, a solução do problema é impossível porque o atual
Estado ucraniano é uma organização política da oligarquia financeira e
econômica e da burocracia que representa seus interesses. O objetivo
dessa organização é a exploração de outros grupos sociais, ora
manipulando-os, ora reprimindo-os, para manter-se no poder. A mudança
dos personagens no governo, o cumprimento formal de alguns procedimentos
democráticos e inclusive a mudança de várias leis dentro de um Estado
desse tipo não significam muito, já que não mudam a essência do modelo.
Em segundo lugar, a mudança fica impossível porque, com a crise
econômica global, a situação degradou-se consideravelmente. Um relativo
bem-estar e um boom consumista às vésperas da crise, graças ao
sistema de crédito, geraram a ilusão da chegada ao “paraíso
capitalista”. A crise destruiu essa ilusão, levando o país de volta à
sua realidade, submergindo-o na pobreza e no desemprego. Da mesma
maneira que no resto da resto de Europa, isso agudizou as contradições
econômicas e sociais. A degradação rápida das condições econômicas de
uma imensa maioria dos ucranianos foi acompanhada de um igualmente
rápido enriquecimento dos clãs oligárquicos e de certas figuras.
Além disso tudo, chegou ao poder o grupo mais reacionário de toda a
história da Ucrânia independente, grupo que instalou uma ditadura do
capital de origem criminosa, e que se apóia na força da polícia e de
delinquentes comuns, à semelhança de alguns regimes latino-americanos do
século XX. Se o “fundador” do sistema oligárquico criminoso, o primeiro
presidente da Ucrânia independente, Leonid Kuchma, compreendia e
respeitava a existência de certos limites que não deviam ser
ultrapassados — o que demonstrou os acontecimentos não violentos da
“revolução laranja” de 2004 —, os representantes do clã de Yanukovich
simplesmente não veem esses limites. Kuchma pôde aposentar-se
politicamente, e agora é conhecido como mecenas, vendendo a imagem de um
“avozinho generoso” que ajuda as crianças. As figuras do atual governo
não podem deixar o poder, porque entendem que, se o abandonam, serão
alcançados pelo castigo por aquilo que fizeram.
A construção de um regime fascistóide começou imediatamente depois da
chegada de Yanukovich ao poder. Essas são algumas das etapas: a mal
chamada reforma judicial, que permitiu ao governo tomar o controle total
da justiça do país; um golpe constitucional no outono de 2010, que
permitiu ao governo, e a Yanukovich pessoalmente, usurpar o poder,
arregimentando prerrogativas excepcionais para as quais não fora eleito;
a imposição de um novo Código Fiscal, contendo um ataque contra a
pequena e média empresa, acompanhada da repressão policial dos seus
tímidos protestos; a imposição de um Código de Trabalho abusivo e de um
Código de Moradia expropriador, com o objetivo de suprimir ao máximo os
direitos sociais e trabalhistas dos cidadãos; e, logo em seguida, uma
série de expropriações arbitrárias de dinheiro e de imóveis em favor do
capital oligárquico, que, como dissemos, é a base econômica e social do
governo. A isso tudo acompanhou-se um permanente enriquecimento dos clãs
oligárquicos, incluindo o mais próximo ao governo, chamado “A Família”,
junto com a concentração dos bens públicos nas mãos de um pequeno grupo
de novos ricos.
Antes de 19 de janeiro deste ano, os protestos se limitavam a
declarações exaltadas, promessas, ameaças, festa e cantos na Praça da
Independência de Kiev, que hoje é midiaticamente conhecida como
Euro-Maidan (“maidan” é praça em ucraniano). Os “líderes” estavam
preocupados com seus futuros ganhos eleitorais. Dava a impressão de que
eles tinham medo de tomar decisões e depois ter que arcar com elas. A
massa repetia o refrão delirante de uma “revolução apolítica”. A
assembleia popular de 19 de janeiro, a poucas horas dos enfrentamentos,
acabou com um escândalo: diante da verborreia dos “líderes”, o povo
vaiou e exigiu a apresentação de um plano concreto de ações e a nomeação
de um dirigente capaz de encabeçar o processo e tomar as
responsabilidades.
Falou-se muito de formas não-violentas de protesto, das quais a mais
forte deveria ser a greve geral. Ela foi prometida em reiteradas
oportunidades, mas nunca se concretizou, por conta da mesma incapacidade
organizativa e ideológica dos “líderes” “pró-europeus”.
Um dos traços mais repugnantes do atual governo é o fato que as
forças da ordem pública começaram a incorporar maciçamente delinquentes e
o lumpesinato na luta contra os ativistas. Os delinquentes, contratados
pelo governo, realizaram vários ataques contra pessoas, bens públicos e
privados, para que, em seguida, os manifestantes fossem acusados de
tais fatos. A delinquência urbana aumentou enormemente. Os próprios
manifestantes tiveram que organizar “guardas populares” para manter a
ordem no centro da cidade.
A apoteose da reação ao governo seguiu-se, sem dúvida, à aprovação,
em 16 de janeiro, da lei que proibia todo tipo de protesto cidadão. Esse
foi um ato absurdo e ilegal, aprovado em poucos minutos pela
unanimidade dos obedientes deputados. A mensagem parecia dizer o
seguinte: somos uma elite, podemos decidir e fazer o que quisermos e o
seu dever é obedecer ou ir presos. Essa atitude demonstra uma total
incapacidade do poder ucraniano em ver a realidade, superestimando sua
capacidade de controlar o país.
Nesses dias, muitos falam de uma aplicação na Ucrânia do sistema
russo-bielo-russo, onde qualquer protesto se reprime já no seu
surgimento. Mas isso não é possível. Na Rússia, o governo conta com uma
potente base econômica, principalmente pela exportação de matéria-prima.
A taxa de aprovação de Putin, depois de quase 15 anos de governos
consecutivos com estabilidade, supera os 50%. Na Bielo-Rússia, apesar
dos problemas, as empresas industriais e agrícolas funcionam, há
praticamente pleno emprego, a saúde e a educação continuam gratuitas e
estatais, os programas sociais, culturais e esportivos funcionam
bastante bem, e Lukashenko tem o apoio da grande maioria da população. O
atual governo da Ucrânia não tem forças nem meios comparáveis aos
russos ou bielo-russos. Além disso, Yanukovich e seu grupo não têm o
mesmo nível de aprovação cidadã que gozam Putin e Lukashenko.
Durante muito tempo, a Ucrânia, apesar da complexa situação econômica
e política que se seguiu à desarticulação da URSS, se manteve em paz
cidadã, à diferença de quase todos os vizinhos da região. Yanukovich e
seu governo já entraram para a história como os que conseguiram quebrar
essa tradição, levando o país à beira de uma guerra civil.
Causa surpresa e admiração o fato de que, em uma sociedade que há
pouco parecia definitivamente sumida na corrupção, na indiferença e no
individualismo, apareçam hoje tantas pessoas dispostas a lutar por uma
ideia, chegando às últimas consequências.
Os protagonistas dos combates de rua são nacionalistas radicais, mas
justamente eles parecem refletir agora os ânimos das massas indignadas.
Durante os choques de 1º de dezembro de 2013, chamavam os
ultranacionalistas violentos de “provocadores”. Agora, ninguém mais se
atreve a criticá-los. O motivo dessa mudança é evidente: o poder cruzou
um limite, e isso radicalizou os cidadãos. Um claro exemplo são as
imagens de 19 de janeiro, durante os primeiros combates no centro: um
senhor de idade, quase um velhinho, de aspecto claramente “não radical”,
parecido com um operário, levantando um ferro de construção gritava:
“—Basta! Vão à merda! Basta de aguentar essa corja! Agora é guerra!”
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